Meti direito, serra acima, com o calor a derreter a sola das botas! No Vale do Alto Homem, o silêncio das primeiras horas do Sol intercalava-se com o cantar do Rio Homem e o cantarolar dos pássaros.
É assim que gosto de caminhar, a montanha que se ergue é como que uma extensão de mim, sentindo toda a sua alegria e toda a sua dor, todas as suas emoções. Todo o vale é História, Natureza e Vida.
A subida do Vale do Alto Homem é, em si mesma, uma descoberta. Como já referi noutro texto, de difícil ou impossível compreensão para alguns, para mim, caminhar na montanha é muito mais do que fotografias bonitas e declarações no Facebook. Uma caminhada sem uma «descoberta», uma caminhada sem algo de novo, quase que acaba por ser tempo perdido. E chegamos a uma altura em que, de facto, tempo é coisa que não queremos perder.
Assim, todos os sentidos estão em alerta! Em alerta por marcas da História, e ignorá-la é apenas uma marca da ignorância e estupidez. A História marcou a paisagem e a simbiose entre Homem e Montanha, e ignorar os seus sentimentos, o que ela nos diz só porque pensamos que somos o centro de tudo, o que somos o objectivo máximo de ali estar, é só uma tentativa de justificar o que fazemos quando o que fazemos não é nada do que estamos a fazer.
Em alerta pela vida que nos rodeia na montanha; quer seja a vezeira, quer sejam os animais e a Natureza que está na sua casa; quer seja respeitar quem ali vive. Se não for assim, então é tudo um vazio... tão vazio como as publicações de vã glória e de um efémero nas redes sociais.
Em alerta por nós próprios. Se não saímos dali mais ricos e melhores do que quando ali chegámos, então foi tempo perdido.
O percurso do Vale do Alto Homem até às Minas dos Carris sempre me trará o prazer da descoberta e da partilha daquilo que fui aprendendo ao longo destes anos que tenho dedicado ao estudo daquele complexo mineiro.
O percurso para as Minas dos Carris inicia-se a uma altitude de 720 metros e rapidamente nos apercebemos que não será um caminho fácil para os mais desprevenidos. A sua dificuldade vai aumentando ao longo do percurso não tanto pela inclinação, mas mais pelo estado do próprio caminho. Em quase 9,8 km de extensão, este é na sua maioria composto por pedra solta que dificulta a progressão. São escassas as extensões em que o terreno é suave.
Na quase totalidade do seu comprimento o trilho é acompanhado pelo Rio Homem e o seu rumor por entre as rochas acompanha-nos quase sempre.
Convém salientar que o caminho para as Minas dos Carris está inserido num vale de extrema importância para o Parque Nacional da Peneda-Gerês e que está integrado numa das duas áreas de protecção total existentes naquela área protegida, logo convém solicitar uma autorização ao Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas.
Tenho por hábito dividir o percurso em duas partes... A primeira parte termina no que eu considero ser a metade do caminho na ponte junto do Cabeço do Modorno e após se ter vencido já cerca de 300 metros de altitude por entre pedra solta e alguma vegetação. A fase inicial da segunda parte do percurso é muito semelhante à primeira parte, mas este vai-se tornando mais suave há medida que nos aproximamos da Ponte das Águas Chocas, sendo um caminho mais fácil a partir daí e até ao final do planalto onde se inicia a subida final para o complexo mineiro, passando nas Abrótegas e já na Corga da Carvoeirinha. A passagem pela Ponte das Abrótegas é muito fácil e somos presenteados por uma paisagem única que nos leva desde o alto de Lamas de Homem até às alturas do Altar de Cabrões já na raia.
No início dos anos 90 ainda era possível observar ao longo do Vale do Alto Homem uma linha de postes de madeira sobre os quais assentava o cabo metálico do telefone, que permitia as comunicações com o complexo mineiro. Nos nossos dias são raros os sinais, ao longo do caminho, daquilo que mais tarde iremos encontrar no sopé dos Carris. Tirando os trabalhos mais «recentes» levados a cabo pelo Parque Nacional da Peneda-Gerês, com o objectivo de melhorar o caminho para a reflorestação de zonas de alta montanha, é possível observar, mesmo no início do percurso, conjuntos alinhados de rochas que marcam o que então foi uma estrada em terra batida que permitia a passagem de camiões para o transporte do minério e não só. Como curiosidade, posso referir que no início da sua construção existia um pequeno caminho que ligaria a Portela de Leonte ao complexo mineiro e pelo qual as largas telhas que iriam cobrir as casas mineiras e outros elementos, eram transportadas em ombros pela quantia de 2$50 nos idos anos de 40.
Ao longo do caminho vamos observando um ou outro pequeno muro, ou um ou outro alinhamento de pedras que nos podem sugerir a existência de uma rude estrada serrana. O primeiro sinal sólido da existência de algo mais complexo na serra, surge-nos junto da zona que dá pelo nome de ‘Água da Pala’. Aqui, e já coberta pela vegetação, observamos à nossa esquerda uma área delimitada por um pequeno e baixo muro. Em tempos terá servido de curral para abrigo dos rebanhos. Do lado direito podemos observar, também por entre a vegetação, uma pequena construção com tijolos de cimento que nos dá a ideia de ser uma pequena guarita, mas que já foi referenciada como um pequeno abrigo dos cantoneiros que mantinham o estradão em estado de circulação. Esta zona antecede uma ponte de pedra. Toda este lugar é extremamente peculiar e bucólico.
Na Água da Pala iniciava-se um trilho de pé posto que atravessava o Rio Homem e subia ao longo do rio pela sua margem direita no sopé da Encosta do Sol até atingir o topo do Cabeço do Modorno, algumas centenas de metros após atravessar novamente o Homem sensivelmente à cota de 1050 metros de altitude. Não havendo registos cartográficos deste trilho em direcção a Carris, documentos fotográficos atestam a sua continuação para as zonas mais elevadas da serra. Quem observa a Encosta do Sol a partir da Água da Pala, terá a sensação de ainda poder vislumbrar o traçado deste pequeno trilho que, sem dúvida, nos proporcionaria uma visão distinta do vale. Porém, e após várias tentativas de observar no terreno a sua progressão, cheguei à conclusão de que este trilho já desapareceu e será extremamente difícil tentar seguir o seu antigo percurso, senão mesmo impossível.
Após passar a Água da Pala, o trilho para Carris entra numa zona mais plana. Até aqui, e olhando para a nossa direita, temos a oportunidade de observar os picos escarpados que delimitam os Prados Caveiros. Esta fase mais plana do trilho segue pela Ponte do Cagarouço sobre a Ribeira do Cagarouço, um pequeno afluente do Rio Homem que parece surgir das escarpas da Ravina do Cabeço da Porca. É nesta fase que o caminho se volta a inclinar ligeiramente e ouvimos o rugido do jovem rio a poucos metros de distância. Por entre a vegetação é por vezes fácil ter um olhar sobre lagoas que no Verão são sempre uma forma de retemperar forças.
O trilho ultrapassa a cota dos 1.000 metros de altitude, a poucos metros de entrarmos numa fase do caminho onde vamos superar vários metros de altitude em pouca distância, ultrapassando assim um bom declive. Em Carvalhas Vrinhas, o percurso flecte para a direita no que são conhecidas como as ‘Curvas do Febra’ e em pouca distância subimos 30 metros em altitude antes de flectir para a nossa esquerda. Nesta parte do caminho podemos ter uma imagem do Vale do Homem só superada pela paisagem que nos aguarda poucos metros após a passagem da Ribeira do Modorno. Poucos metros mais à frente entramos numa parte do caminho que é ladeado, à direita, por uma parede sólida de granito e, à esquerda, por uma queda de 50 metros que termina no Rio Homem. O declive aqui é acentuado e notório, mas o esforço para chegar à meia distância merece a pena.
Somos chegados a meio do caminho e o descanso na Ponte do Modorno é merecido. A água da ribeira é sempre fresca e corrente, mesmo no Verão. Ao entrar neste pequeno vale temos a visão de uma pequena queda de água por debaixo da ponte e são poucos os que resistem a uma fotografia. Situados na ponte em direcção ao final do vale, por onde vemos o Rio Homem, temos à nossa direita o imponente Cabeço do Modorno, uma escarpa granítica que atinge os 1.317 metros de altitude. Conheci todas as pontes até ao Modorno já em cimento, mas o meu fascínio por estes espaços começou a ser despertado pelas velhas pontes de madeira que antigamente permitiam a passagem célere e um tanto ou quanto aventureira.
Logo após abandonar a Ponte do Modorno e seguindo o velho caminho mineiro, vamos encontrar uma das mais fantásticas paisagens que a Serra do Gerês e o Parque Nacional têm para nos oferecer. É com deslumbre que observamos o Vale do Alto Homem e a forma como este se projecta no céu. O seu delimitar pelos picos das serras leva-nos a imaginar, sonhar um mundo antigo. É aqui que nos começam a faltar as palavras... Ao longe vemos a Serra Amarela e com bom tempo facilmente se vislumbram as antenas do Muro localizadas em Louriça, bem como o Alto das Eiras e a Cruz do Touro, já nos extremos Geresianos, ou a magnificência da Quelha do Palão e da Água dos Vidos. Saindo do pequeno vale da Ribeira do Modorno entramos novamente no vale do Alto Homem e logo ali à nossa frente observamos uma estreita queda de água com uma altura superior a 110 metros, a Água da Laje do Sino. Toda este zona nos dá paisagens deslumbrantes em, ou após, dias de chuva com as paredes rasgadas pelos cursos de água que se precipitam no vale, ou então nos frios dias de Inverno com a imagem das quedas de água geladas que se amarram às paredes graníticas.
Prosseguindo ao longo do vale vamos ganhando altitude, atingindo os 1.200 metros de forma suave. Nesta fase o trilho chega a complicar-se devido ao estado do «pavimento». O Rio Homem é, nesta fase, constituído por uma série de pequenos ribeiros que têm origem nos inúmeros vales que golpeiam o topo da serra. Aos 1200 metros de altitude, na zona do Teixo, o trilho flecte ligeiramente para a direita seguindo um dos pequenos riachos que, juntamente com o riacho do Corgo dos Salgueiros da Amoreira, irá mais tarde formar o Rio Homem. O caminho segue a base da Rocha da Água do Cando, passando pela Ponte das Águas Chocas (1285 metros) e entrando nas Abrótegas até atingir a Ponte das Abrótegas (1325 metros). As Abrótegas definem, juntamente com o Outeiro Redondo, um pequeno planalto que é atravessado pelo trilho até atingir e seguir ao longo da base do contraforte de Carris. Foi neste planalto onde esteve montado nos dias 17 a 19 de Setembro de 1908 o acampamento da primeira expedição venatória levada a cabo na Serra do Gerês. Neste planalto têm origem vários trilhos de pé posto, sendo o mais interessante aquele que segue para as Minas das Sombras (Galiza, Espanha) e para os Cocões do Coucelinho (através das Lamas de Homem) e, mais tarde, Minas de Borrageiros e Lago Marinho.
Na Ponte das Abrótegas somos interrogados por umas peculiares construções semelhantes a pequenos pilares de rocha e cimento que tinham essa mesma função. Estas construções serviriam de ponto de apoio, certamente de uma conduta metálica para transportar água desde uma pequena represa ali existente até à lavaria nova situada no topo da Corga de Lamalonga. A paisagem aqui permite-nos observar o marco geodésico de Carris (1508 metros), o Altar de Cabrões ou Altar dos Cabros. Neste planalto podemos também observar vários currais destinados às pastagens de altitude (Curral das Abrótegas e Curral de Cabanas Novas) e à transumância ainda levada a cabo na Serra do Gerês.
A zona das Abrótegas permite o descanso antes da subida final, verdadeiro calvário para quem já está cansado da subida. Ao percorrer o início da subida, um pormenor passa despercebido à quase totalidade das pessoas. Logo no início do declive a antiga estrada dividia-se em duas, com uma a seguir a direcção do Salto do Lobo, local onde decorreram as primeiras extracções de volfrâmio tirando partido do aluvião vindo da Corga da Carvoeirinha. No terreno é difícil vislumbrar sinais desta parte da estrada e só andando alguns metros no caminho principal que segue em direcção à mina, e depois olhando para trás, é que se vê a antiga estrada já coberta de vegetação. Nesta área não existem construções ou edifícios, exceptuando uma ou outra pequena construção de pastores (os formos) ou outros abrigos. Esta zona provavelmente teria o apoio de edifícios de madeira dos quais não existem quaisquer sinais. Por esta zona deveria passar uma conduta de água que teria a sua origem numa pequena represa próximo da Ponte das Abrótegas e que, apoiada em pilares feitos com aglomerados de pedra, atravessava o pequeno planalto para lá das Abrótegas. Mais pilares são visíveis no extremo deste planalto, que serve de pastagem de altitude ao gado que nos meses da vezeira passeia pela serra, já próximo do caminho antes deste flectir para a esquerda para iniciar a subida final. Seguindo o prolongamento deste caminho secundário e depois entrando em trilhos de pé posto, chega-se às Minas dos Carris pela sua zona inferior junto da lavaria nova, no extremo topo do vale da Corga de Lamalonga.
A parte final da estrada vence um declive de 70 metros ao longo da Corga da Carvoeirinha e sem dúvida que é para muitos a parte mais complicada de todo o trajecto. No entanto, o final do árduo caminho é sempre uma motivação forte para vencer estes últimos metros.
No troço final o declive torna-se menos intenso, com a estrada a tornar-se quase plana mesmo a chegar ao muro que delimitava a entrada no complexo mineiro dos Carris.
Depois de uma visita às Minas dos Carris, segui na direcção do marco triangulado de Lamas de Homem. Não querendo baixar o Vale do Alto Homem seguindo o caminho mineiro, segindo-o ao longo da Corga da Carvoeirinha e, passando Cabanas Novas, até ao Curral das Abrótregas. Aqui, flectindo à esquerda, seguindo então na direcção do alto de Lamas de Homem. Mais uma paisagem soberba que se forma à medida que nos aproximamos do alto. Tudo é imenso, tudo é grande, tudo é magnánime. A serra, as montanhas tiram-nos o dom das palavras que se escondem por detrás da emoções. Dizê-las é um sacrilégio, pois o seu som não fará juz ao que contemplamos.
Aproveitando a brisa que me acalma a pele, e movendo-me de forma tranquila para não espantar as curiosas cabras motesas que me fitam como um «ser de outro mundo», segui pela base do Outeiro do Pássaro, calcorreando os velhos carreiros que se apagam na paisagem e na memória. A vegetação vai tomando conta do passado e a História confunde-se por entre os tons do granito quente. O carreiro leva-me ao Curral do Pássaro com o seu forno pastoril alagado e escondido, e não muito longe, o m+itico muro de pedra solta - talvez memória de tempos ainda mais longínquos. Atravessando a chã já sêca, desço então para os Currais de Cidadelhe, à sombra da grande escombreira mineira.
Descendo a corga que se alonga a Sul, e entrando já na Corga de Arrocela, tomei o caminho que liga a Cigarra aos Prados da Messe. Passando pequenas corgas, chegava à longa Corga de Valongo já à vista do Cabeço da Cova da Porca (Torrinheira) e descia para o Curral de Premoim com a sua fonte de ouro não muito afastada. Por esta altura, os pequenos cursos de água já não nos dão a confiança de uma água boa para beber, se bem que a surpresa surgiu quando uma fonte (Fonte de Arrocela) que usualmente está sêca, fazia brotar um confortável fio de água das entranhas da Terra, o suficiente para acalmar a sede que se faz sentir nos dias do Estio. No entanto, nestas longas jornadas de Verão, convém ter sempre alguma noção sobre onde se pode encontrar água potável por entre este «deserto» granítico.
Depois de passar pela Fonte de Premuinho, o caminho levar-me-ia então para os Prados da Messe passando pelo Rendeiro. Uma paragem na tranquilidade da Messe, e retomei o caminho que segue através da Lomba de Burro para a Corga da Água dos Vidros e Lameira das Ruivas, descendo então pela Sabrosa para a Mata de Albergaria, seguindo pela Vale de S. Miguel e chegando ao irritante rebuliço da Portela do Homem, no final de uma jornada de 27,4 km pelas mais belas paisagens da Criação.
Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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