A vontade de caminhar era imensa, tão grande como a própria montanha. Não é que esta tivesse o sabor de ser a «última» caminhada do ano, mas o chamamento das paisagens e do sentir, lá me fez voltar para mais umas horas de caminho.
De facto o tempo não era muito; dividido entre os preparativos para o regresso à labuta brigantina e o desejo de respirar os ares geresianos, a manhã de Domingo proporcionava-se como uma última hipótese, ainda mais que as perspectivas da volta do tempo iriam tornar difíceis novas pegadas nos dias que correm.
Então lá me decidi deixar o conforto dos calor tépido dos lençóis e rumar à Montanha das Águas Quentes com o objectivo já bem traçado. Pequeno-almoço nas Caldas do Gerês para aquecer o corpo e dirigi-me à Portela do Homem. Pelo caminho, as milhentas folhas dançavam ao ritmo frenético do vento, ordenadas em sopros pelo ar ou arrastadas, barulhentas, pelo chão. Notava-se que, apesar de não estar assim tanto frio, o Inverno já ali havia assentado arraiais para os próximos tempos. Era o respirar fundo antes do mergulho, nas palavras do feiticeiro!
Leve mochila nas costas, máquina fotográfica «em punho», rumei estrada abaixo num caminho já tantas vezes percorrido. Perscrutava por entre os galhos desnudos de folhas da velha mata na esperança de ver de soslaio o passar de um animal. Porém, tudo o que via ou ouvia, era o correr da água, a dança do vento nas árvores e o leve balouçar destas. O Curral de S. Miguel estava calmo, mas o Rio Homem corria cheio de força no seu leio rochoso por entre a mata. Deixei a ponte para trás e segui o meu caminho pelo asfalto. Em breve chegava ao Rio de Monção e aqui iniciava a caminhada pela memória das gentes de Vilarinho da Furna.
É curioso como este caminho reflecte tão bem a presença e a marca secular destas gentes na Serra do Gerês. Se a mártir aldeia vivia no ventre da Serra Amarela, muita da vida deste povo foi vivida na Serra do Gerês e o caminho que agora percorria, trepando o Peito de Escada, é um testemunho inalienável desses tempos. O caminho, serpenteando como muitos outros serra acima, vai-nos fazendo ganhar altitude e a serra vai baixando perante os nossos passos. Com os horizontes cada vez mais largos, vamos vendo o Pé de Cabril e toda a lombada desde aí até à Costa de Varziela, passando por Bemposta e Corga do Mourinho, lá mais para trás. Na direcção da albufeira de Vilarinho da Furna, surge (como uma barbatana de um tubarão) o espigão de Pena Longa e em frente o Cabeço de Palheiros e as cristas graníticas que marcam o horizonte até à Louriça e a extremidade da Serra do Gerês no Alto das Eiras. Escondidas no início da subida, irão depois surgir a Serra do Soajo e a Serra da Peneda com a Sra. de Anamão, qual Urriello Português na distância. Já nestas alturas, quase no final da subida, surge-nos lá ao fundo a Portela do Homem e o início da Encosta do Sol. Que belo cenário de montanha!
O Peito de Escada esconde aqui e ali um pouco da história de Vilarinho da Furna. Acesso privilegiado aos Prados Caveiros, ainda são visíveis em muitos pontos os pequenos muros que delimitavam o caminho e em certas partes são notáveis os trabalhos de colocação de lajes que até aos nossos dias marcam a passagem dos animais e pastores na vezeira serrana.
Os Prados Caveiros guardam um peculiar silêncio. Os velhos carvalhos são os guardiões do local, cenário bucólico e pitoresco da Serra do Gerês, muitas vezes referido nas publicações e livros clássicos da primeira metade do século XX. O seu forno, velho abrigo do pastoreio, diferencia-se dos restantes existentes na Serra do Gerês devido à sua construção, tirando raízes dos abrigos existentes na Serra Amarela. Abandonado pelas gentes de Vilarinho da Furna, os prados são agora utilizados pela vezeira de Vilar da Veiga.
Chegado aos Prados Caveiros, enchi-me do seu silêncio intercalado pela dança do vento nos galhos dos carvalhos e pelo quase imperceptível correr do ribeiro ali perto. Abrigado à sombra do Cantarelo, este é um local único e singelo na Serra do Gerês.
O regresso foi feito pela vertente da Costa de Sabrosa, descendo em direcção à Mata de Albergaria. Seguiu-se depois uma rápida passagem pela Ponte Feia, enveredando de seguida pela Geira Romana e passando pela Milha XXXIII junto da triste ruína do abrigo de montanha do Clube Académico do Porto em direcção à (nova) Ponte de S. Miguel. O percurso continuou pela pegadas dos soldados romanos até pouco depois das ruínas das casas dos Guardas Florestais e passado ao lado do Curral de S. Miguel, entrei de novo na estrada que me levaria à Portela do Homem.
Algumas imagens do dia...
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