A minha mais recente visita às Minas dos Carris foi uma experiência interessante... tal como as anteriores. Já por várias vezes referi que um dos grandes prazeres que sinto quando visito os Carris com algum grupo, é a partilha empolgante da paixão que me leva repetidamente a visitar e a estudar aquele local.
Estas visitas tornam-se assim uma experiência única de conhecimento, tanto para mim (que tenho a oportunidade de partilhar e de transmitir as emoções e sentimentos de anos de «descobertas») como para quem me acompanha. A compor todo este cenário, surge a paisagem que nos envolve a partir do momento que deixamos os carros na Portela do Homem e enveredamos na aventura que nos levará aos píncaros da Serra do Gerês. Um dia azul e paisagens de largos horizontes vai-nos trazer maior satisfação. Um dia cinzento de vento, frio e chuva, trás o desespero relativo do desconforto do corpo e da alma estampados no olhar de quem luta contra os elementos com o interesse em escutar as velhas histórias daquelas paragens.
Se a penúltima passagem pelos Carris havia sido temperada pelo vento, frio e chuva, havia também a vã esperança de que esta mais recente visita fosse um pouco mais amena. De facto, o dia surgiu cinzento a contrastar com o dia anterior onde o astro rei havia aquecido o ambiente. Neste dia, por vezes no horizonte, o Sol espreitava por entre as nuvens e fazia antever os grandes espaços com as nuvens pesadas a fazer par com o azul do céu... são sempre belas estas fotografias. O facto de não chover já era, em si, uma boa notícia... ao menos a caminhada seria um pouco mais seca.
Assim, a progressão pelo Vale do Alto Homem foi feita sem a pressão de fugir a algo que nos caía em cima. Depois de passar pelo bosque e Fonte da Abilheirinha, entramos num cenário de fantasia que nos vai acompanhar todo o dia. Olhando para a Encosta do Sol na outra margem do Rio Homem, faz-me pensar que já é altura de repetir a caminhada que percorre as alturas. Os grandes espaços e horizontes que se abarcam desde ali, mostram-nos algumas das paisagens mais magníficas que se conseguem em todo o Parque Nacional. Mas voltemos ao fundo do vale...
De todas as vezes que percorri aquele vale, a margem direita do Rio Homem sempre constituiu um mistério para mim. Nos nossos dias, o percurso que fazemos até às minas no topo da montanha percorre sempre a margem esquerda do rio até às alturas das Abrótegas. Em tempos assim não foi. Iniciando na Portela de Leonte, o caminho florestal descia até à Albergaria e depois de passar o chalet dos Serviços Florestais e o Rio do Forno, seguia pelo fundo do Peito de Escada, bordando a encosta até entrar no Vale do Alto Homem, aproximando-se do rio junto da cascata que nos nossos dias faz as delícias veraneantes de milhares de visitantes. Neste ponto o caminho dividia-se em dois percursos distintos, com um deles a atravessar o rio sobre uma frágil ponte de madeira para mais adiante se juntar ao caminho das legiões de César a passar a Portela do Homem. O outro caminho subia pelo vale e acedia aos currais e pastagens de altitude. Porém, a ocupação daquele território não se limitava somente à pastorícia. Nas alturas serranas fazia-se o carvão (Teixo, etc.) e plantava-se também centeio (Abrótegas, Couce, etc.), sendo também local de passagem (quando as neves desapareciam) entre as terras do Barroso e o Minho (para não falar nos «escondidos» carreiros do contrabando).
Assim, em vez de termos uma montanha deserta e parca de uso, aquelas paragens acabavam por fervilhar de vida e em princípios do século XX uma nova actividade veio marcar o dia-à-dia de muitos homens, mulheres e crianças. De parca economia e com uma luta diária pela sobrevivência, a busca daquelas pedras negras e pesadas tornou-se num afazer diário para muitas famílias. Aqui e ali, o volfrâmio aflorava à superfície e esses locais tornavam-se pequenas explorações clandestinas de onde saía o sustento de alguns dias. Não faltam na Serra do Gerês os sinais dessas actividade que por vezes abrangia uma área de maiores dimensões (Lomba de Pau) ou uma área mais pequena (Cabeço da Cova da Porca, hoje conhecido como Torrinheira), para lá das grandes explorações (Salto do Lobo, Lamalonga, Garganta das Negras, Cidadelhe, Borrageiro, Arrocela, etc.)
O Vale do Alto Homem tornava-se assim a porta de acesso aos grandes jazigos volframíticos do Gerês que em meados de Junho de 1941 são descobertos no Salto do Lobo por Domingos da Silva, que regista o seu manifesto mineiro na Câmara Municipal de Montalegre a 24 de Junho desse ano. A luta pelo volfrâmio daquelas paragens vai-se arrastar por cerca de dois anos, prejudicando a sua exploração de forma mais ou menos ordenada.
Em 1943, a Sociedade Mineira dos Castelos adquire as concessões e manifestos mineiros das partes que até então se haviam envolto em intermináveis e inconciliáveis litígios, e inicia a exploração industrial do volfrâmio na Mina do Salto do Lobo (Carris). Ora, com a necessidade de se aumentar a exploração e de construir um couto mineiro em tais remotas paragens, o velho carreiro de montanha deixava de ser útil para a passagem de pessoas e bens para o alto da serra. O caminho teria de ser alargado e melhorado para permitir a passagem de viaturas que deveriam transportar os equipamentos, máquinas e homens para os píncaros serranos.
Lembro que, entrando no Vale do Alto Homem, o carreiro percorria a encosta de declives relativamente suaves até à Água da Pala. Aqui, e contando com um caudal menos volumoso a partir dos idos de Maio, o carreiro atravessava o Rio Homem para a sua margem direita e seguia vale acima até encontrar as profundezas dos declives fechados no sopé do Modorno. Um pouco mais adiante, e após passar a magnífica Água da Laje do Sino, o carreiro saltava de volta para a margem esquerda do Homem, passando o Teixo e enveredando na direcção das Águas Chocas e Abrótegas, chegando a esta chã onde se encontram já grandes currais à vista do geodésico dos Carris.
As explorações iniciais de volfrâmio terão sido à custa da força de braços e de algumas velas de dinamite. Aflorando na Corga do Salto do Lobo logo após as Lamas da Carvoeirinha, o aluvião terá exposto o ouro negro à vista dos homens. Abrigando-se inicialmente em construções toscas de pedra solta, com a chegada da Sociedade Mineira dos Castelos e com a necessidade de se construir um acampamento mineiro de razoáveis dimensões, os primeiros materiais eram transportados a ombro desde a Portela de Leonte. Muitas vezes estes serviços eram pagos a 2$50 por transporte, o que para muitos era razão suficiente para fazerem dois serviços num só dia. De notar que a estrada que hoje conhecemos a partir da Portela de Leonte até à Portela do Homem só começa a ser construída em 1943 e como tal as cargas eram transportadas através de um estreito caminho florestal e depois através de um carreiro de pé-posto, montanha acima. A extenuante viagem fazia com que muitos tivessem de pernoitar e de se abrigar em pleno vale em abrigos que existiam na margem do Rio Homem. Estes abrigos ainda estão lá na margem direita do Rio, sendo testemunhos silenciosas de uma época não muito longínqua da História, mas distante na memória dos homens.
Sendo zona de passagem durante décadas, senão séculos, por aquele vale, a margem direita do Rio Homem entre a Água da Pala e o Modorno, deverá guardar segredos, pequenas peças de um puzzle que constitui a história da ocupação humana daquele território a que hoje chamamos Serra do Gerês e que se estende 'de Bouro a Barroso.'
Como referi anteriormente, o caminho pelo Vale do Alto Homem atravessava o Rio Homem na Água da Pala. A razão para tal é muito simples, pois a orografia do terreno torna-se muito difícil na margem esquerda daquele rio logo após a Água da Pala, enquanto que os declives na margem direita são mais suaves, permitindo então a progressão de homens e animais de forma muito mais fácil.
As construções que existem na Água da Pala são testemunho da utilização daquele local como viveiro florestal dos Serviços Florestais. Se a pequena construção é fácil de contextualizar no tempo, sendo contemporânea da exploração mineira, já a outra construção será de mais difícil contextualização. Infelizmente, desconheço as datas da sua construção. Aspecto curioso na Água da Pala é a existência, mesmo junto do actual caminho, de um abrigo tosco. Uma fotografia possivelmente datada de 1942/1943 atesta a sua existência já naquela altura. Este abrigo foi construído por debaixo de um rochedo (pala) e composto com algumas pedras a fazer um pequeno muro. Localizado junto do ribeiro que por ali passa a caminho do Rio Homem, leva-me a especular que a origem do topónimo (orónimo) 'Água da Pala' possa estar relacionada com este singelo abrigo! Bom, esta é uma mera especulação sem outro apoio a não ser os elementos ali existentes e o topónimo poderá (deverá) ter uma origem distinta.
Ao longo de todo o caminho, o percurso vai ganhando altitude e este ganho torna-se evidente quando deixamos para trás a Ponte do Cagarouço. Esta ponte permite a passagem da ribeira de mesmo nome no final de um profundo vele de paredes alcantiladas. Erguendo-se quase a pique, estas paredes graníticas parecem mostrar a entrada para um mundo desconhecido e de facto o fim deste vale encurvado é-nos escondido do olhar. Esta será uma zona de abrigo para parte da fauna selvagem que povoa o vale e deve ser mantida como um verdadeiro santuário sagrado naquelas paragens!
Com a crescente e implacável erosão e a falta de manutenção a que este caminho foi condenado desde o princípio dos anos 90 do século passado, após passar o Cagarouço entramos num verdadeiro mar de pedras. Este traiçoeiro caminho torna-se um pesadelo para aqueles que o percorrem até atingir terrenos mais suáveis. Em dias de chuva, o caminho transforma-se quase como num afluente do Rio Homem e todos nós temos a oportunidade de ter uma breve experiência da prática do cannyoning! Felizmente, nesta última caminhada não tivemos de «caminhar sobre as águas» antes de atingir as Curvas do Febra.
É nesta parte do caminho onde observamos os abrigos na outra margem do Rio Homem e não muito longe da Corga do Concelho. O maior destes abrigos permita que dez homens descansassem das jornadas árduas a percorrer aquele imenso vale.
Ganhando altitude neste 'z' desenhado na paisagem, afastamo-nos do Homem e entramos na parte mais agreste do vale. Esta parte do caminho mostra-nos o porquê de já anteriormente o velho caminho atravessar o rio na Água da Pala. O Rio Homem corre, ruidoso, no fundo do vale e a paisagem abre-se perante nós, revelando a zona onde o glaciar enchia o vale. Rasgando a terra, a paisagem ficou marcada pelo lento desgaste dos gelos que deslizavam para Oeste. O rio e os pequenos regatos que para ele correm, foram aprofundando as corgas ao longo dos milénios e a paisagem que hoje conhecemos foi-se lentamente formando. De paredes e vertentes intransponíveis, a estrada mineira permite-nos hoje ultrapassar este obstáculo natural. A abertura desta estrada terá sido uma obra memorável para a época, perguntando-me nesta altura se algures existirão registos (escritos e fotográficos) dos trabalhos ali realizados? Sem dúvida que aquela obra terá ficado na memória de quem nela participou. Infelizmente, nunca fui capaz de encontrar grandes registos que refiram o encaminhar dos trabalhos. Quem foram os homens que ali rasgaram a montanha? Como foram feitos aqueles trabalhos e que vítimas provocaram? Pergunto-me se serão questões que alguma vez terão resposta?
A paisagem é aqui marcada pelos colossos graníticos e pela grande queda de água a que se dá o nome de 'Água da Laje do Sino'. Para quem caminha pela Encosta do Sol, esta queda de água é quase passagem obrigatória e as vistas são de tirar a respiração!
Talhado nas encostas, o caminho parece suspenso à medida que avança perante nós. A certa altura, e na sua passagem pela encosta de Modorno, o percurso parece seguro por um frágil muro de pedra. Encurvando e acompanhando a encosta, o caminho vai proporcionar ao visitante uma estonteante vista do Vale do Alto Homem. A nossa visão abarca as duas margens do Rio Homem e é limitada a Oeste pela vertente Poente da Serra Amarela, contraforte do Gerês, vislumbrando-se a encosta sobranceira ao Ramisquedo e as antenas do Muro, na Louriça. Em dias limpos e após os nevões, esta é uma paisagem única em Portugal e comparáveis às vistas alpinas e pirenaicas de muitos outros momentos... Uma outra característica que marca a paisagem são as peculiaridades geológicas que esculpiram os granitos visíveis desde aquele lugar. Em particular é a grande fenda e os tectos que ao longos das eras do mundo se foram formando naquela paisagem, embelezando-a e tornando-a cada vez mais única e espectacular a cada pestanejar.
Considerando a visita às Minas dos Carris pelo Vale do Alto Homem, este ponto marca sensivelmente um quarto do percurso que temos de percorrer na totalidade. Como tal, é então hora de arrepiar caminho e continuar em direcção a uma História que apesar de já escrita, jamais terá fim.
Deixando o Modorno para trás, toda a paisagem que até ali nos estava enquadrada à medida que subíamos, está agora «abaixo» de nós. Os altos serranos estão mais próximos e mais próximos ficam (quase mesmo ali ao lado) enquanto nos aproximamos do Teixo. Localizado na margem esquerda do Rio Homem e na embocadura da Corga dos Salgueiros da Amoreira, o Teixo foi uma zona de de carvoaria, guardando também um pequeno curral. Era nesta zona onde também se comercializava o carvão vindo de Pincães e Fafião, atravessando a serra nos ombros dos homens que percorrendo a Corga de Valongo, subiam a Cidadelhe e desciam para as Águas Chocas e finalmente ao Teixo.
O antigo caminho, posto a descoberto por um recente incêndio naquelas paragens, passava esta zona mais próximo do Rio Homem, atravessando as ruínas dos toscos abrigos e subindo em direcção às Águas Chocas. Esta, é uma zona de difícil passagem nos dias mais frios e de neve quando as águas geladas tornam a progressão escorregadia. Também nestas paragens vislumbramos abrigos feitos em pedra solta que certamente serviam de resguardo a pastores, carvoeiros ou contrabandistas em apuros.
Passando as Águas Chocas, um outro local que certamente merece uma visita mais atenta num futuro próximo, o caminho vai-nos levar até à Chã das Abrótegas já à vista do marco geodésico dos Carris e de onde se vislumbra a raia nas alturas do Altar dos Cabrões. A Chã das Abrótegas, local de estadia da expedição venatória do princípio do século XX, é local da existência de um curral no qual é preservado um belo exemplar de um forno, ancestral abrigo dos pastores da Serra do Gerês. O Curral da Abrótegas (ou Curral do Armando Espada) não era utilizado somente para o abrigo dos gados por altura das vezeiras, sendo também usualmente utilizado para o cultivo do centeio como atesta a existência de uma eira que tira partido de uma larga superfície de granito ali perto.
Esta é uma zona onde os currais começam a marcar presença. Logo ali ao lado, e antes de se entrar no Barroco de Trás da Pala, surge um curral (do qual não sei o nome). A Sul encontra-se o Curral de Lamas de Homem, zona de nascente do Rio Homem com várias áreas de pastagem. A Norte está o Curral da Amoreira, em tempos partilhado com os vizinhos Galegos, e ainda um outro curral cuja designação também desconheço.
Aqui o caminho permite um descanso antes da subida final para as Minas dos Carris. Com um suave serpentear ao longo da imensa chã, o caminho leva-nos até às Lamas da Carvoeirinha e virando a Norte, começa a subir a Corga da Carvoeirinha. Mesmo ao longo deste vale, o olhar mais atento e o espírito mais inquiridor, irá encontrar vestígios das buscar frenéticas pelo volfrâmio. Afastadas da concessão do Salto do Lobo, talvez estas pequenas explorações, quase que complementares às grandes concessões mineiras ali perto, poderão corresponder aos vários manifestos mineiros que foram feitos e registados naquela área e cujos registos foram infelizmente perdidos nos arquivos da Câmara Municipal de Montalegre.
À medida que caminhávamos as nuvens iam cobrindo os topos serranos. À passagem do Modorno ainda nos foi possível vislumbrar todo o vale na sua plenitude. A subida e o caminhar tornam-se cansativos para os corpos e espíritos menos habituados, mas o desejo de chegar ao topo impele-nos a superar as dores e o cansaço que se vai instalando. O retemperar das forças a meio da subida é o suficiente para nos ajudar no presente alento de chegar mais além.
Entretanto o nevoeiro vai subindo o vale, o vento torna-se mais forte e a temperatura mais baixa começa a doer na pele. Os tons de cinza vão compondo a paisagem e tornando a visão. Um corpo a pouca distância torna-se quase indistinto, como que um vulto no nevoeiro. Por estas alturas, muito do gelo e da neve vão resistindo tornando assim mais difícil o caminho. Subindo a Carvoeirinha, o nevoeiro toma já conta de toda a paisagem.
Finalmente visível do outro lado da pequena corga, a ruína é um ténue fantasma quase imperceptível ao olhar. É notório o esforço destes últimos metros, mas a aldeia, o passado, as memórias e as presença estão já ali adiante.
Bem-vindos às Minas dos Carris, onde se sente o silêncio e a calmaria do lento passar das eras.
Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)