No longínquo ano de 1944, durante um duríssimo Inverno, as condições de trabalho tanto nas Minas dos Carris como na Mina de Borrageiros pioraram de forma drástica levando à necessidade de se proceder a acções de emergência para de certa forma socorrer os homens ali retidos.
Nas transcrições em baixo não foi corrigida a ortografia.
A extrema dureza do trabalho nas minas e na Serra do Gerês vai ser sublinhado pelos acontecimentos que marcaram o fim do mês de Fevereiro e os primeiros dias de Março de 1944.
Com as condições atmosféricas a piorarem, os últimos dias de Fevereiro assistiram a um intenso nevão que impossibilitou a circulação pelas estradas serranas e a actividade mineira. A certa altura temeu-se o pior para os trabalhadores que se encontravam em Carris e na Mina do Borrageiro. De facto, foram estes que despertaram a maior preocupação por não estarem minimamente equipados para suportar os rigores do inclemente Inverno geresiano. Nesta altura as vias de comunicação terminavam pouco depois da Portela de Leonte, a partir de onde se caminhava em trilho de montanha até atingir o estradão pelo Vale do Homem que conduzia até ao complexo mineiro. Já a 29 de Fevereiro o jornal ‘O Comércio do Porto’ noticiava que o mês que então findava, o fazia “chuvoso e nevado” referindo “…mais uma vez não falhou em seus prognósticos. ‘Apareceu a rir… estava o Inverno para vir.’ E veio. Tardio embora, mas bravo. Frio de rachar pedras, cobrindo todas as serras e muitas das terras do País de grandes nevões. E não só por alturas da Estrela e do Gerez e por burgos das Beiras e de Trás-os-Montes, onde há nevadas frequentes (…)” Por se tratarem de documentos com interesse histórico, são aqui reproduzidos os textos dos jornais ‘Diário de Notícias’ e ‘O Comércio do Porto’ que eloquentemente relataram esses dias. O primeiro texto é do jornal ‘Diário de Notícias’ e refere o drama que se desenrolava na Serra do Gerês.
Bloqueados pela neve estão no alto do Gerez
200 homens sem recursos
Os bombeiros de Braga e Vieira do Minho procuram restabelecer as comunicações
Lá no alto da serrania brava, onde se ligam Trás-os-Montes e o Minho, sob vistas galegas, o Gerez parece abandonado por esta época do ano. As rochas descarnadas que se alcantilam com medonho aspecto entre os rios Homem e Cávado e cujos picos eriçados tocam o céu, são rondados pelos lobos enfurecidos, que a fome desvaira e traz até aos povoados. A serra enorme touca-se de neve, e embora linda nos surpreendentes véus de gase com que a enfeitam os nevões, enche-se medos e pavores.
Os serranos recolhem-se com os gados ás suas choupanas, o transito reduz-se ao essencial e a grande serra fica como que abandonada. Não lá circulam trenós, não a frequentam os desportistas que adoram a patinagem no gelo, não passam por ela automóveis que, providos de «lagartas» possam vencer os caminhos cobertos de neve.
Ora, desde que a guerra principiou e a febre do volfrâmio desvairou muitas e variadas gentes, o Gerez passou a contar com uma população nómada, que vive longe dos povoados e que, sem recursos nem habitações próprias, sente avolumarem-se á sua volta os perigos naturais da cordilheira inhospita: são os mineiros.
Por isso se explica o alarme trazido até os centros civilizados por um acontecimento que devia estar previsto e não seria de molde a assustar quem quer que fosse, se na serra existissem os recursos de defesa indispensáveis.
Em resumo, o caso limita-se ao seguinte: no domingo á noite começou a cair um forte nevão no alto do Gerez. E ontem á tarde os mineiros que lá trabalham estavam sem recursos e sem poderem comunicar com a povoação mais próxima, que fica apenas a 27 quilómetros de distância. Não se percebe como não haja reservas de alimentos e combustíveis em local onde trabalham duas centenas de homens, mas o facto parece infelizmente certo, como se verifica pela notícia que recebemos ontem á tarde e que damos a seguir.
CALDAS DO GERES, 29 – Desencadeou-se uma grande tempestade de neve na serra do Gerez. No alto dos Carris, a 1.600 metros de altitude, onde estão as minas deste nome, encontram-se mais de 200 pessoas bloqueadas.
Partiu do Gerez uma camioneta com voluntários e o pessoal superior da mina, engenheiros Cruz e Martins, e o delegado na Mineira Lisbonense, com sede no Porto, Sr. José Rodrigues de Sousa, que leva mantimentos e vai procurar socorrer os bloqueados.
Para Braga partiu o capitão Olegário Antunes, inspector-chefe das minas, que foi pedir o auxílio dos bombeiros daquela cidade, que estão a chegar ás Caldas na ocasião em que damos esta notícia.
Um grupo de 8 homens procurou fugir ao bloqueio. Na altura do Modorno sucumbiu um deles, de nome Domingos Pereira de Olívio, natural de Vila Verde, casado, e pai de 2 filhos menores. Outros dois ficaram muito abalados. No Burrageirinho há 12 homens perdidos por completo. A neve atinge 5 metros de altura e, por esse facto, a camioneta que partiu das Caldas só conseguiu avançar 3 quilómetros. As minas estão situadas a 27.
Um avião deve voar sobre o alto do Gerez
Á noite estivemos em comunicação telefónica com o sr. Engenheiro Luiz de Ávila e Castro, director do posto dos serviços florestais do Gerez.
Por ele soubemos que a situação não é tão grave como se apresentava de tarde.
Os 12 homens dados como perdidos na Burrageirinha já foram encontrados. E o mineiro Domingos Pereira de Olívio que se dizia ter morrido, encontra-se são e salvo. Aconteceu com ele apenas que, anteontem, á noite, muito embriagado por causa do frio que fazia – segundo declarou – decidiu romper o bloqueio da neve e seguir em busca da povoação mais próxima.
Caiu, porém, num barranco e, sem forças para se levantar, ficou toda a noite com neve até ao pescoço. Ontem, de manhã, já quando lhe tinha passado os fumos do álcool, sentiu que não podia sair dali, por ter as pernas e os braços enregelados. Gritou, porém, e uma das brigadas de socorro, que andavam em busca do seu cadáver, foi buscá-lo, tendo causado geral alegria e seu aparecimento. Depois de algumas massagens ficou bem e bebeu-lhe mais uns copos – para se restabelecer…
Os mineiros continuam, todavia, bloqueados pela neve. Três carros de pronto-socorro com bombeiros de Braga e de Vieira do Minho procuram abrir caminho, limpando a estrada. Apesar da baixa temperatura trabalharam com singular denodo durante toda a noite de ontem, tentando restabelecer as comunicações com os mineiros.
Se tal não se conseguir até a manhã de hoje, admite-se a hipótese de fazer sair de Espinho um avião, que sobrevoará o Gerez e deixará cair na mina mantimentos e agasalhos, visto ser aflitiva segundo parece, a situação dos 200 trabalhadores que se encontram bloqueados no lugar dos Carris.
Já foram desobstruídos, pelo menos, 6 quilómetros de estrada
BRAGA, 29 – Com os bombeiros voluntários e municipais saídos desta cidade e de Vieira do Minho, para socorrerem os mineiros bloqueados na serra do Gerez, e os habitantes das localidades próximas dos Carris, devem andar por 200 as pessoas que se entregam á afanosa tarefa de restabelecer as comunicações com a mina de volfrâmio da Empresa Lisbonense. A mina confina com o concelho de Montalegre, onde se organizaram também brigadas de socorro.
Até ás 21.30 de hoje estavam desobstruídos 6 quilómetros adiante do lugar de Leonte. Daí para cima o trajecto faz-se por caminhos de cabras até ao ponto onde existe uma estrada larga e boa que a Empresa mineira está a construir há meses, em direcção ás Caldas do Gerez. É natural que os mineiros e os trabalhadores que se empregam na construção da estrada estejam a procurar, por seu turno, desbravar caminho, sendo de prever, pois, que uns e outros se encontrem com os seus salvadores amanhã á noite ou depois de amanhã, se o nevão não aumentar de intensidade.
Mas, entretanto, como faltam os mantimentos no lugar dos Carris, impõe-se que sejam enviados aos bloqueados socorros por via aérea.
Na mesma edição, o jornal adiantava na secção de última hora.
O nevão no Gerez
Uma brigada de socorro deve ter chegado já á mina dos Carris
CALDAS DE GEREZ, 1 (De madrugada pelo telefone) – O trabalhador Domingos Pereira, que fora dado como morto e foi, afinal, encontrado bem de saúde, está nesta localidade e tem recebido muitas felicitações por haver sido salvo. No momento em que o encontraram estava tão enregelado que, se os socorros tivessem demorado mais algum tempo, sucumbiria de frio e de fome.
O nevão abrandou muito e o estado do tempo facilita o trabalho de desobstrução da estrada. Á meia-noite, devido ao frio intenso e depois de um esforço verdadeiramente heróico, os bombeiros suspenderam os trabalhos, que devem recomeçar ás primeiras horas da manhã. A estrada foi limpa até cerca de 200 metros do lugar de Leonte. Daí para cima, até ao começo da nova estrada, fica o trecho mais difícil de desbravar.
Uma brigada constituída pelos Srs. José Rodrigues de Sousa, delegado da Empresa Mineira, engenheiros António Cruz e Alípio Martins e 5 trabalhadores largou do lugar de Água da Vala , ás 16 horas, para ir aos Carris levar mantimentos aos mineiros que se encontram bloqueados.
Não há ainda notícias deles. Mas crê-se que já se encontrem na mina, apesar da dificuldade de percorrer vinte quilómetros de serra com neve de muitos metros de altura, e tenham levado aos pobres trabalhadores isolados a certeza de que não se encontram ao abandono e vão ser socorridos dentro em breve.
A 1 de Março o jornal ‘O Comércio do Porto’ noticiava também o que classificava de “dramática e aflitiva situação” dos mineiros nos Carris.
É dramática e aflitiva a situação de cerca de 200 trabalhadores bloqueados pela neve que, na Serra do Gerez, atingiu cinco metros de altura
Os caminhos estão obstruídos, tornando-se difícil a chegada de socorros ás Minas dos Carris, onde está o maior número de sinistrados, que têm lenha e mantimentos, apenas, para dois ou três dias. De doze homens isolados no lugar do Barraquinho , sem mantimentos e sem lenha para se aquecerem, dois conseguiram juntar-se aos seus colegas nas Minas dos Carris e um ficou sepultado pela neve
GEREZ, 29 – Nas Minas dos Carris, situadas a cerca de 1.500 metros de altitude, a neve bloqueou mais de duzentos trabalhadores.
A direcção das Minas está a empregar todos os esforços para que sejam socorridos e salvos os referidos trabalhadores, tendo pedido o auxílio das corporações de Bombeiros Municipais e Voluntários de Braga e Bombeiros de Vieira do Minho.
Na concessão mineira do Barraquinho, estão perdidos, há três dias, doze homens. A direcção dos Carris também mandou seguir de automóve l, para esse local, um piquete de trabalhadores, que empregará todos os esforços para encontrar os desaparecidos.
BRAGA, 29 – Os Bombeiros Municipais e Voluntários partiram, ao princípio da tarde, para o Gerez, onde vão tomar parte nas tentativas de salvamento de numerosos trabalhadores que estão, desde ontem, bloqueados pela neve.
O grande nevão de que ontem demos notícia, atingiu, no Gerez, proporções extraordinárias. Em alguns sítios – o que parece nunca ter acontecido – a neve mede cinco metros de altura.
Os caminhos ficaram obstruídos por formidáveis muralhas de neve, sendo difícil, portanto, o acesso até junto das minas, que pertencem a Empresa Mineira Lisbonense.
Segundo parece, os sinistrados reuniram-se próximo da cantina e depósitos de lenha, podendo abastecer-se ainda durante dois ou três dias.
O pequeno grupo de doze homens isolado no lugar do Barraquinho não dispõem de mantimentos e lenha. A sua situação é desesperada. Três dos componentes desse grupo, num esforço supremo, tentaram alcançar o Gerez, e, dois deles, exaustos, mais mortos que vivos, conseguiram ver realizados os seus intentos. O outro perdeu-se, ficando sepultado na serra. Chama-se Domingos Pereira e residia, até á pouco tempo, no lugar do Alívio, Soutelo, Vila Verde. Deixa viúva e oito filhos menores.
Fazem-se tentativas arrojadas para socorrer os restantes, e várias colunas de trabalhadores, conduzidas de automóvel, até Ruivães, na estrada Braga – Chaves, tentam atingir, por este lado, subindo a encosta Sul da serra, o lugar onde se julga estarem os desaparecidos.
Os trabalhos de libertação do grupo reunido junto da cantina deve demorar alguns dias.
O ‘Diário de Notícias’ continuava a 2 de Março, o relato do drama que se vivia na Serra do Gerês.
Estão livres de perigo os 200 trabalhadores bloqueados pela neve no Gerez. As comunicações com as minas ficaram ontem praticamente restabelecidas
Foi como que um pesadelo, um sonho sombrio na montanha vestida de branco. Estão salvos os duzentos homens que, no alto do Gerez, fechados entre o céu e as cristas da penedia agreste, tinham julgado chegada a sua última hora.
O nevão intenso, multiplicando as armadilhas da serra, tinha erguido em torno deles muralhas de gelo, de cinco metros de alto. A morte, com o seu cortejo de fantasmas, rondava aquelas existências, que o trabalho fizera correr uma perigosa aventura. Tiritavam os corpos de frio e as almas de medo, no desconforto da montanha povoada de pavores.
Mas como sempre nas grandes cenas trágicas, quando há vidas em risco entre os portugueses, surgiram homens heróicos, que, arrostando com todos os perigos, romperam as muralhas em que iam sepultar-se vivos tantos trabalhadores. Já ontem, em «Últimas Notícias» dávamos conta de que uma expedição se metera ao caminho, saindo pelas 16 horas do lugar de Água da Pala, em direcção ás minas dos Carris, e acrescentámos que nas Caldas do Gerez, era gerada a crença de que os audaciosos expedicionários haviam atingido a meta desejada estabelecendo comunicação com os bloqueados e levando-lhes o conforto e o auxílio de que estavam carecidos.
Assim aconteceu, de facto. A brigada era constituída, como dissemos, pelos Srs. José Rodrigues de Sousa, delegado da Empresa Mineira Lisbonense, Lda.; engenheiros António Cruz e Alípio Martins e por cinco trabalhadores, que levavam mantimentos e material de socorro em cinco mulas, dada a impossibilidade de se fazer o transporte por outro meio. Mas, em dado momento, a neve era tão alta e tão farfalhuda, dificultava por tal forma o avanço dos animais que estes foram trazidos por António Espada ao ponto de partida e os expedicionários decidiram seguir sozinhos, carregando eles com os mantimentos.
Heróica foi a sua caminhada, no destemido arranco pela serra acima, indiferentes á dureza dos elementos e aos perigos que os cercavam. Abrindo clareiras na ininterrupta muralha de neve, caindo aqui e acolá, tateando o caminho á beira dos precipícios, guiados mais pelo instinto do que por pontos de referencia, lá chegaram enfim.
A recepção que lhes fizeram os que já se julgavam para sempre isolados do Mundo excede quanto se pode imaginar. Deve dizer-se, pelo menos que até nós chega, que não houve nunca tão expressivas lágrimas de alegria e de gratidão.
Esses escassos vinte quilómetros que vão de Água da Pala aos Carris foram palmilhados, com denodado esforço, em oito horas. Á meia-noite a brigada anunciando-se por lumes que punham reflexos de ouro ao vasto lençol de neve, chegou á mina, acolhida com grandes manifestações de júbilo.
Todos os mineiros e operários se encontravam, felizmente, bem. Não se confirmavam as notícias alarmantes que circulavam nas povoações em volta, segundo as quais havia mortos.
27 homens salvos
Apenas na véspera 27 homens tinham corrido risco de vida. Pernoitavam num barracão e a neve, durante a noite, cobriu este totalmente. Ao despertar, sentindo-se sepultados, tentaram por todos os meios vencer a densa camada de neve que os isolava. Mas todos os seus esforços foram baldados.
Sentindo, porém, a falta deles no trabalho, os companheiros foram em sua procura. E assim os salvaram de morte certa.
Os outros 12 homens localizados no Burrageirinho já tinham sido salvos anteontem, como referimos.
Abrindo caminho por entre a neve
A chegada aos Carris da brigada de socorro encheu de uma nova alma os isolados. Ao conhecerem os esforços que se faziam para desobstruir os caminhos e libertá-los do círculo de neve que os cercava, principiaram, por sua vez, a abrir caminho na direcção das caldas do Gerez.
Aqui os serviços de socorros estavam centralizados no Hotel Maia e eram dirigidos pelo Sr. Capitão Olegário Antunes. Haviam sido três dos trabalhadores da mina que, na segunda-feira, á tarde, com pormenores alarmantes, tinham trazido ali a notícia de que os companheiros estavam bloqueados. A tempestade de neve não só apagara os vestígios de todos os caminhos, como obrigava os trabalhadores a saírem de suas casas pelas janelas e pelos telhados, para não serem sepultados sob a avalanche. Mas a neve crescia e não se vislumbrava meio de a arredar ou de fugir ao inferno branco que, a 1.507 metros de altitude, enchia de angústia tantas existências.
Com os bombeiros de Braga e de Vieira começara-se, logo que chegou a notícia, a desbravar caminho, do lado do sul. Por volta da meia-noite, depois de um trabalho insano, estavam desbravados uns escassos seis quilómetros. Os bombeiros de Vieira, que haviam tido um desastre, porque a sua viatura caíra por um talude, retiraram-se então; e os de Braga, depois de pernoitarem no Gerez, regressaram ás 9 horas á sua cidade.
Mas como, entretanto, tinham vindo, em camionetas, grupos de trabalhadores de Vilar da Veiga e Rio Caldo, foi com eles que os trabalhos de desobstrução prosseguiram durante toda a noite. Pelas duas horas da madrugada de ontem, depois de um trabalho heróico, as brigadas atingiram a povoação de Leonte, o pitoresco lugarejo tanto da predilecção do grande pintor Artur Loureiro. Existe ali um posto da Guarda Florestal com telefone.
Cerca de duas centenas de homens, armados de pás, picaretas, enxadas e até machados, porque havia árvores atravancando o caminho, continuaram a abrir brecha na grande muralha de neve, apesar das dificuldades crescentes da empresa.
Nas Caldas do Gerez compareceram ás, primeiras horas de ontem, o sr. Trindade dos Santos, administrador do concelho de Terras de Bouro, e vários vereadores, que tomaram as providencias necessárias para que os trabalhos de desobstrução se activassem.
As comunicações estão praticamente restabelecidas
O Sr. Engenheiro Luiz de Avila e Castro, administrador dos serviços florestais do Gerez, chegou, ontem á noite, a Lisboa, vindo da serra, de onde saiu ás 9 horas. Encontrou na estrada, muito contente e alegre, o trabalhador Domingos Pereira, de quem se disse, como referimos, que tinha morrido no meio da neve. A mulher, que recebera a notícia de que ele morrera, ia desfeita em pranto com outras mulheres suas vizinhas, quando o encontrou em grande alegria. Caíram nos braços um do outro a rir e a chorar, dando-se uma cena que a todos impressionou.
O Sr. Engenheiro Ávila e Castro pôs á disposição dos serviços de socorros os guardas sob as suas ordens e a rede telefónica privativa da administração florestal. O temporal avariou algumas linhas, mas conservou intacta, felizmente, a de Leonte, o que muito facilitou os trabalhos.
Ontem de manhã saíram das Caldas do Gerez para o posto de Leonte, término da estrada, três camionetas, que dali, rompendo a neve, com dezenas de trabalhadores a abrir caminho, atingiram á tarde Albergaria. Os trabalhos de desobstrução, de um lado e do outro, entre Albergaria e Carris, continuaram á noite, mas as comunicações consideram-se praticamente restabelecidas, estando completamente livres de perigo os trabalhadores das minas.
Eles pertencem, em corporação, á Sociedade Mineira dos Castelos e á Empresa Mineira Lisbonense. Na sede desta, na rua do Comércio, 8, 2º, foram recebidas, ontem, á tarde, informações que confirmam que os trabalhadores de Carris se encontram livres de perigo.
Cabe dizer, a propósito, que nos Carris não faltavam alimentos, porquanto mensalmente seguem para ali, por intermédio da Empresa, os géneros alimentícios necessários, com as capitações estabelecidas pelo Grémio dos Retalhistas de Mercearia. O que aconteceu foi que os géneros, tal como as casas, ficaram cobertos pela neve. Daí o alarme estabelecido nas populações em torno e a que responderam as prontas providencias tomadas.
Na mesma linha dos artigos anteriores, ‘O Comércio do Porto’ relatava a 2 de Março o salvamento dos mineiros dos Carris.
Podem considerar-se salvos os duzentos trabalhadores que a neve bloqueou na Serra do Gerez graças aos esforços dos bombeiros de Braga e Vieira do Minho e de muitos populares
O mineiro que num esforço supremo, tentou alcanças a estância do Gerez e se perdeu na neve, foi encontrado, ainda, com vida, e salvo
(Do nosso enviado especial)
BRAGA, 1 – Melhorou, consideravelmente, a situação dos 200 trabalhadores, bloqueados pela neve na concessão denominada dos Carris, no Gerez, explorada pela Mineira Lisbonense.
Os Bombeiros Municipais e Voluntários de Braga e de Vieira do Minho, trabalharam, incansavelmente, até hoje ao romper do dia, na desobstrução da estrada que vai do Gerez a Leonte. Foi um esforço consideravelmente extenuante, mas que pôde realizar-se com êxito, porque a satisfação de valer a 200 vidas em perigo, redobrou o ânimo e a coragem não só dos bombeiros, mas também das muitas dezenas de operários, na sua maioria mineiros, que com eles colaboravam. A neve, que na própria estância do Gerez atingiu a altura de 30 centímetros, logo no início da estrada de Leonte acumulava-se em massas enormes que ultrapassavam um metro de profundidade.
A diferença de nível entre a estância e Leonte é, aproximadamente 800 metros, que a estrada, na extensão de 7,5 quilómetros, vence em declive por vezes acentuadíssimo. E à medida que ela galga a encosta, o volume de neve tornava-se maior. Foi necessário, portanto, uma dedicação extraordinária, para realizar tão monumental trabalho, vencido com admirável espírito de abnegação, e com risco iminente. Mas era essa, também, a maior dificuldade, porque a estrada, que prossegue, para além de Leonte e até Albergaria, submetida à administração do perímetro florestal, começa ali a descer, facilitando, por esse facto, a remoção da neve. Brigadas de trabalhadores, que se revezaram durante o dia, dirigidas pelo Sr. Capitão Olegário Antunes, continuaram para além de Leonte, o trabalho dos bombeiros – digno de maior apreço, como ouvimos, no próprio local – e, hoje, ao princípio da noite, atingiam Albergaria. Daqui aos Carris, ainda há uma distância de 14 quilómetros, mas como não existe estrada, bastará abrir uma pista, para peões e solípedes, esperando-se que o trabalho possa ser executado a tempo conveniente.
Hoje, durante o dia, alguns trabalhadores aventuraram-se a deixar a sua reclusão forçada e vieram ao encontro dos que abrem caminho para as minas. Chegaram, é certo, extenuados, mas satisfeitos por terem perfurado o «sítio» que a neve estabeleceu.
Contarem eles que ao clarear o dia de segunda-feira, se verificou nos Carris, ter a neve atingido a altura dos telhados das instalações. Procurou-se, imediatamente, abrir respiradouros, e, depois, desobstruir as portas. Reconheceu-se, porém, que era impossível ir mais longe. Importava aguardar socorros exteriores, pelo que, os superiores da cantina, aplicaram, imediatamente, um sistema de racionamento que permitiu assegurar o abastecimento até sexta-feira ou sábado. E como todos, agora, estão convencidos que os socorros chegam a tempo, reinam a calma e a confiança.
O pequeno grupo de trabalhadores que estava mais longe, para o cabril, na concessão do Borrageiro, constituído por 12 homens, foi todo salvo, embora depois de sofrimentos sem conta e nas mais dramáticas circunstâncias. Três desses homens deixaram o grupo, e dois conseguiram, com os seus recursos, chegar ao Gerez. O terceiro perdeu-se, e foi dado por morto. É o Domingos Pereira.
Mais tarde, uma brigada de socorro, constituída por mineiros tão valentes como ousados, foi, pela encosta Sul da serra, ao encontro dos nove restantes, e pôde salvá-los, içando-os em cabos, da ravina onde já esperavam uma morte certa. Foi essa brigada que descobriu, ao fundo de um barranco, inanimado e arroxeado com o frio, o Domingos Pereira, perdido havia 24 horas. Parecia morte, mas içado também, depois de recolhido na primeira cabana que ao grupo se deparou, e de tratado carinhosamente, embora por meios rudimentares, voltou á vida. No Gerez, o seu reaparecimento, causou a maior alegria.
A neve, por toda a serra, entrou, já, em liquefacção, mas teme-se que surjam outros nevões. Ainda esta noite, quando os bombeiros estavam próximos de Leonte, pela uma hora da madrugada, voltou a nevar em quantidade. Felizmente, foi só durante uns 20 minutos… Admitindo, a ausência de novas quedas de flocos, e o auxílio da temperatura, o regresso à normalidade levará, mesmo assim, ainda muitos dias. As montanhas de rama alvinitente, são muito extensas e espessas. Giestais crescidos, com dois e mais metros de altura, desapareceram sob interminável lençol branco: pinheiros, pequenos cedros e outras espécies da flora que reverdece nas encostas do Gerez, mostram, dificilmente, as suas cúpulas. O panorama, ainda hoje, não sendo, já, inédito, era de imponência e de grande arrebatadora, não isentas de perigos que os desprendimentos contínuos tornavam a todos os instantes iminentes.
Com as equipas de socorro a chegarem aos Carris, o ‘Diário de Notícias’ ainda irá referir o acontecimento dos dias 3 e 4 de Março.
A tempestade de neve no Gerez
Os mineiros foram libertados
BRAGA, 2 – Têm sido aqui muito apreciadas as reportagens do «Diário de Notícias» sobre a tempestade de neve que caiu na serra do Gerez e bloqueou centenas de homens nas minas dos Carris.
As comunicações entre as Caldas do Gerez e o alto da serra já se encontram inteiramente restabelecidas e os estafetas da Empresa Mineira Lisbonense retomaram o seu serviço habitual. Os últimos trabalhos de desobstrução dos caminhos ficaram concluídos hoje á tarde, assistindo a eles o Sr. Trindade dos Santos, administrador do concelho de Terras de Bouro. Mas trabalha-se ainda na remoção da neve, no percurso de 17 quilómetros, entre Albergaria e os Carris.
Como é muita e o frio intenso, foi suspensa a exploração das minas. Em consequência, logo que foram libertados do bloqueio, os mineiros dirigiram-se para as Caldas do Gerez e ali se conservam.
Havia o receio de que, por terem suportado o peso de 5 metros de altura de neve, as construções em volta das minas tivessem ficado inutilizadas. Os engenheiros que hoje se deslocaram aos Carris mandaram descobri-las e verificaram, segundo nos consta, que nenhuma sofrera qualquer prejuízo. A segurança das minas é completa. Para os Carris têm ido grandes quantidades de mantimentos.
Hoje regressaram ao Hotel Maia, nas Caldas do Gerez, de onde partiu a organização dos serviços de socorro, os srs. José Rodrigues de Sousa, engenheiros António Cruz e Alípio Martins e cinco trabalhadores que, como dissemos, constituíram a primeira brigada de assistência enviada aos bloqueados.
De tarde, na serra, começou a chover. Não tarda, pois, o degelo. O tempo coadjuva, assim, o esforço dos homens.
O degelo no Gerez
Aumentou o volume do Rio Homem
CALDAS DO GEREZ, 3 – Nas minas dos Carris continuam suspensos os trabalhos, ainda devido ao forte nevão dos últimos dias. Em toda a serra choveu hoje ininterruptamente, o que veio acelerar o degelo.
Pelas vertentes da serra correm grandes massas de água, que vão precipitar-se no rio Homem e aumentam consideravelmente o volume deste. Não há perigo, todavia, de inundações, porque as margens do rio são altas.
Nova situação problemática devido à forte queda de neve regista-se em Fevereiro de 1955...
Episódio singular das dificuldades originadas pelo mau tempo ocorreu em Fevereiro de 1955. Naquela altura, e durante mais de uma semana, nevou intensamente e de forma contínua na Serra do Gerês de tal maneira que em alguns pontos a neve chegou a atingir cerca de quatro metros de espessura, tornando impossível o trânsito de veículos e mesmo de peões. A mais de 1400 metros de altitude, os mineiros e o pessoal técnico e administrativo num total de cerca de duzentas pessoas que na altura trabalhavam nas Minas dos Carris, ficaram isolados nas suas instalações, tornando-se problemática a situação que de dia para dia o estado do tempo foi criando. Pelo telefone, uma vez que os fios resistiram ao peso da neve, foi sendo mantido contacto, até que as notícias se tornaram alarmantes, pois o pessoal, em especial os mineiros (que eram cento e vinte) estavam sem pão nem legumes, com escassa roupa e cada vez mais à mercê dos lobos, que segundo o jornal ‘O Século’ que uivavam famintos, noite e dia, por aquelas redondezas.
Devido à situação alarmante que se desenvolvia nos píncaros do Gerês, foi decidido organizar uma brigada de socorro e depois de organizada, esta brigada saiu da Portela de Leonte e percorreu em circunstâncias difíceis a distância ate à Água da Pala, onde entrou em contacto com o pessoal dos Carris. Os mineiros tiveram de descer até ao ponto de contacto, ligados uns aos outros por uma corda e meio enterrados na camada de neve. Segundo relatos de Carlos Sousa, os mineiros percorreram o caminho no Vale do Homem cantando canções patrióticas e ‘A Portuguesa’ para assim manter o ânimo durante a difícil operação. Foram necessários oito dias de trabalho intenso para desobstruir as vias de acesso às minas bloqueadas. Vinte e oito operários ofereceram-se para essa difícil tarefa, a fim de se conseguir passagem para uma camioneta carregada de pão, visto ser este o alimento que fazia mais urgente falta e não ser possível levar simultaneamente legumes e roupas. Após trabalho fatigante e perigoso, pôde a brigada fazer chegar a camioneta ao ponto combinado onde os mineiros esperavam, havia bastante tempo, sob um frio cortante e com receio de que não desse resultado o plano que se traçara. Quase quatro horas duraram a heróica escalada daqueles sete quilómetros. Por fim viveu-se outra faceta da dramática e abnegada aventura: os mineiros tardavam a chegar ao ponto combinado e, dada a intensidade do nevão que caía e que tapava os sulcos abertos horas antes, receava-se que os homens se perdessem ou, ligados uns aos outros, perecessem todos na tragédia da queda em algum precipício encoberto. Quando o telefone tocou com as notícias da chegada, “…soltaram-se gritos de entusiástica alegria.”
Porém, os relatos descritos no jornal ‘O Século’ e depois na revista ‘O Século Ilustrado’, parecem representar mais um acto de propaganda do Estado Novo do que uma verdadeira descrição dos factos ocorridos. O nevão de Fevereiro de 1955 ficou na memória dos trabalhadores e segundo Augusto Vieira, que viveu os acontecimentos, “…chegamos a estar lá isolados sem os camiões puderem lá ir e sem alimentação.” No entanto Virgílio Murta coloca em dúvida a ocorrência dessa expedição de salvamento, “pois havia no Inverno sempre em stock uma boa quantidade de materiais e alimentos.” A mina ter-se-á mantido em actividade, com o nevão a afectar um pouco o ritmo de laboração. A imprensa da altura terá feito “um certo alarido mas não era caso para isso.” Também as memórias de Fernando Ferreira do Fundo, o ’Mil’, jovem operário que nesses anos trabalhava nas Minas dos Carris, lembram que “várias vezes tivemos que abrir caminho na neve até à Portela do Homem, para vir um camião reabastecer de géneros alimentícios para a mina. Ia uma equipa de 20 homens abrir a estrada até à Portela do Homem e quando vínhamos de regresso, tínhamos que abrir novamente o caminho, isto porque o caminho já estava tapado novamente com a neve.” Noutra ocasião, “o meu pai que era guarda na mina, e entrava em casa às 6 da manhã e para entrar, tinha que abrir um túnel na neve para puder entrar em casa, e eu saia 2 horas mais tarde e tinha que abrir novamente o mesmo túnel, porque senão eu já não podia sair” e da mesma forma recorda que “as fontes, eram fontes de poço, e com a neve ficava tudo tapado, e como não tínhamos referência da fonte, tínhamos que derreter a neve para conseguir água” para beber e para os afazeres diários. Em igual sentido refere Manuel Antunes Gonçalves, “quando nevava ou fazia muito frio, a água gelava nos canos e nós tínhamos de fazer uma fogueira por debaixo dos canos para a água descongelar.”
Localizadas nos pontos mais altos da Serra do Gerês, e como se constatou no Inverno de 1955, o acesso às Minas dos Carris tornava-se muito difícil. Apesar de a estrada ser habitualmente mantida em condições de circulação, tornava-se por vezes perigoso subir o Vale do Homem. Nas palavras de Virgílio Mura, “enquanto trabalhei e vivi nos Carris, eu saia de carro de duas em duas semanas, normalmente na tarde de Sexta-feira e regressava nas Segundas-feiras de manhã. A excepção verificou-se só na altura do nevão de 1955 em que ficámos retidos algum tempo. A Companhia, nos meses de Inverno, mantinha uma equipa de limpeza da neve na estrada, que a mantinha em razoáveis condições. Só duas vezes me aconteceu não conseguir subir de carro até à mina. Havia uma casa de apoio, com algumas tarimbas e telefone, ao lado esquerdo da estrada, na direcção da subida . Daí, se víamos muita neve na serra, telefonávamos a perguntar se podíamos subir. Nessas vezes disseram-nos que sim, que estavam limpando a neve. Mas realmente estavam um bocado atrasados. Uma vez, com o Zé de Sousa, deixámos o carro e fomos a pé pela neve. Da outra vez, sozinho, consegui voltar o carro e regressei à tal casa onde esperei que me informassem quando realmente a estrada estivesse transitável.”
Texto adaptado de "
Minas dos Carris - Histórias Mineiras na Serra do Gerês", Rui C. Barbosa - Dezembro de 2013
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