A neve transforma a paisagem de uma forma que por vezes é difícil imaginar. Incute em nós uma sensação de quase alheamento perante a paisagem pintada de branco que nos rodeia. Este quase alheamento faz-nos ficar ali parados, em plena borrasca, a contemplar algo que sabemos ser efémeros e é por isso que muitas vezes decidimos «enfrentar» a serra e compartilhar as paisagens únicas que uma aberta por entre as nuvens nos proporciona.
Com a ideia de passar pelo Curral de Bicos Altos e tentar visitar o local de uma forma que ainda não o tinha visto, encetei nesta jornada saindo da Malhadoura. Com a implementação do trilho PR14, teve-se o cuidado de colocar a identificação em vários locais de interesse e uma destas identificações está localizada no pequeno curral (Curral da Malhadoura) mesmo junto à estrada florestal que liga o Arado à Trilbela. O mesmo acontece com o Curral dos Portos um pouco mais à frente. É muito interessante este tipo de identificação que tira partido do saber local e não se baseia nos erros das nossas cartas topográficas militares que pecam pela má qualidade da informação e por vezes da localização dos topónimos.
Bom, então o trajecto a partir da Malhadoura não tem nada que enganar, é mesmo seguir a estrada florestal até à Tribela e aqui no cruzamento virar à esquerda em direcção à Ponte de Cervas e Pinhô. Este é um trajecto sobejamente conhecido no Verão para muitos dos que vão para o Poço Verde (Poço Azul). Na Tribela o caminho deixa de ser uma estrada florestal e transforma-se num carreiro que nos levará a descer para o Rio Conho atravessando-o pela Ponte de Cervas e depois subir a encosta em direcção ao Curral de Pinhô, encontrando novamente a estrada florestal que nos levaria a Fafião. Após subir a encosta e pouco antes de encontrarmos novamente a estrada florestal, vale a pela olhar para trás, para o vale, e através dos Portelos de Rio Conho ver a magnífica paisagem que aí nos é proporcionada. No fundo do vale, meio escondido por entre as densas nuvens, vislumbrava-se o Cutelo de Pias (Roca de Pias) coberto de neve.
Nesta altura, e antevendo as dificuldades que se perfilavam pelo caminho, é quando devemos começar a pensar nas alternativas que irão surgir. O objectivo principal era o Curral de Bicos Altos e depois uma visita ao Curral de Pradolã, mas outras possibilidades se iriam abrir um pouco mais à frente.
Deixando para trás o Curral de Pinhô segue-se então em direcção ao Trilho da Vezeira que o vamos encontrar depois de abandonar novamente o estradão e passando junto de uma pequena represa (tanque). O caminho termina aparentemente uns metros mais adiante, mas na verdade transforma-se no estreito carreiro por entre o pinhal. Serpenteando por entre rochedos e árvores (várias delas caídas devido às recentes intempéries), rapidamente chegamos ao Trilho da Vezeira. Aqui há que ter um certo cuidado e estar atento às (poucas) mariolas, pois a certa altura temos de flectir à esquerda e começar a subir em direcção a Pousada. É nesta chã, e pouco antes de chegarmos ao curral com o mesmo nome, que temos de encontrar o caminho para o Curral dos Bicos Altos. Por esta altura todo o cenário se preparava para proporcionar um espectáculo único. Numa metamorfose, o céu carregado de nuvens cinzentas rapidamente se havia aberto para mostrar o seu glorioso azul. Os píncaros serranos pintados de branco reluziam à luz do Sol que aos poucos ia espreitando pelas nuvens que se tornavam carregadas para os lados do Larouco e da Cabreira, mas ali, sobre o Gerês, o maravilhoso cenário mostrava a Serra de Fafião num espectáculo que naquele momento valeu por toda a jornada.
Aproveitando a oportunidade, contemplei o máximo que pude a paisagem que ali se mostrava só para mim. Naquele momento, sentia-me privilegiado por poder testemunhar o filme que se projectava naquela imensa tela e por momentos percorreu a sensação de que o que acontecia, acontecia por mim... coisas de maluco e fantasias de montanheiro!!!
Era então hora de decidir por onde prosseguir. Nesta altura duas opções se perfilavam: a primeira seria simplesmente voltar atrás até Pousada e daqui subir a Pradolã e ir avaliando as passagens até Rocalva; a segunda opção seria prosseguir até ao Curral da Amarela e daqui avaliar a passagem para o Estreito e depois as passagens até Rocalva. Certamente que a segunda opção era a mais apelativa, proporcionando paisagens únicas e a possibilidade de ir podendo acompanhar a evolução da paisagem num largo horizonte sobre a Serra do Gerês. Com um céu azul e as nuvens a dissiparem-se, decidi então seguir até à Amarela, fazendo a gestão dos riscos tendo por base o estado do terreno (a presença de gelo era muito mau sinal) e a evolução das condições meteorológicas (as correntes de convexão eram um pouco fortes a Sul para os lados da Cabreira e a Norte, com uma corrente sobre a Rocalva e o Iteiro d'Ovos). Nesta altura não conseguia vislumbrar completamente o céu a Este, e como tal só me apercebi das nuvens carregadas após chegar um pouco mais adiante.
O percurso entre os Bicos Altos e a Amarela foi feito quase sem problemas, exceptuando nas zonas com maior declive e possível acumulação de gelo. As perspectivas de poder vislumbrar a serra coberta de neve veio a confirmar-se. De facto, para muitos será pouco habitual assistir a tamanho cenário por terras lusas com o perfil do Iteiro d'Ovos a assemelhar-se a uma imensa montanha no tecto do mundo e tanto Porta Ruivas como o Borrageiro a mostrarem-se como poucas vezes são vistos.
Se em algumas zonas a neve parecia já sofrer de um processe de endurecimento que a transformava em placas de gelo, ao chegar ao Curral da Amarela esta característica alterou-se por completo. A neve ia caindo de forma tímida, mas dava para notar que aquela neve era fruto de um nevão recente. Apesar de batida pelo vento, não se havia transformado em gelo e permitia uma «fácil» progressão.
De novo era altura de decidir por onde seguir. Na Amarela surgem três possibilidades: voltar para trás pelo mesmo caminho, descer a Lagarinho ou prosseguir para o Estreito. Com as condições a permitir uma boa visibilidade e com a meteorologia a ajudar (ainda) nesta altura, enveredei em direcção ao Estreito (a possibilidade de descer a Lagarinho apesar de apelativa, ficava depois muito limitada com as opções de regresso, pois nestas condições era proibitivo tentar uma descida para o Rio Laço).
Saindo da Amarela a Norte, o caminho leva-nos a descer uma pequena corga para se juntar mais à frente a um trilho que nos levará ao Estreito. Toda a progressão é feita tendo por base a orientação por mariolas e um conhecimento prévio do trajecto. Se a situação meteorológica fosse distinta (para pior), a opção ideal teria sido voltar para o Curral de Bicos Altos. Nas condições que se proporcionavam no momento e perante a sua permanência pelo tempo suficiente para chegar ao Estreito, resolvi enveredar por aquele «curto» trajecto. Nas condições do terreno, a chegada e aproximação ao Estreito foi feita com o maior cuidado possível. Ali, o percurso segue por grande lages graníticas, já no topo do Vale do Rio Laço, que então estavam cobertas de neve e batidas pelo vento, isto é, com as condições ideais para a formação de gelo. Tirando proveito da observação que se ia fazendo passo a passo, e aproveitando em algumas zonas o pequenos cursos de água corrente, a passagem foi feita sem problemas.
A chegada ao Estreito permite-nos ver uma parte da Serra do Gerês que até aqui estava «escondida» e ao mesmo tempo permitiu-me ter a noção de como a meteorologia iria mudar. Aqui a acumulação de neve não permite ter o caminhar «normal» o que por si só é um elemento que em muitos casos leva à exaustão devido a um esforço físico extra. Por outro lado, começaria a nevar dentro de momentos com maior intensidade e com a neve a ser batida por um vento na nossa direcção, o que nos obriga (sem a protecção ideal) a caminhar a «olhar para o chão». A evolução no terreno vai-se fazendo de forma rápida e em pouco tempo dava-se a chegada ao Curral de Vidoeirinho. Atravessando o pequeno ribeiro, o caminho prossegue afundado na neve em direcção à Rocalva, onde se chega numa paisagem de um filme a preto-e-branco. Nesta altura as nuvens haviam descido e não se consegue ter a percepção do topo da Meda de Rocalva e mesmo a Roca Negra é uma sombra por detrás de um véu que se vai tornando por vezes mais espesso.
Após uma curta paragem na Rocalva estava na hora de iniciar o regresso ao ponto de partida. Mais uma vez colocava-se a escolha sobre o trajecto a seguir. O caminho mais curto seria enveredar pelo Curral do Canto e percorrer a vertente o vale em direcção à Arrocela e daí descer para a Malhadoura. Outras opções poderiam passar pelo regresso ao Estreito e passagem por Pradolã, descendo depois a Pousada e Pinhô; ou então atingir o Camalhão e Teixeira, mas isso implicava uma complicada subida para as vertentes do Borrageiro ou uma passagem para o Conho ou Lomba de Pau, cenário este que se afigurava o mais complicado de todos perante o piorar das condições meteorológicas e das condições do terreno. Optei então por descer até ao Cando e daqui seguir para Arrocela. Mais uma vez a presença de gelo poderia dificultar algumas passagens, mas a gestão seria feita a cada passo.
De toda esta parte do percurso, a descida para o Cando afigurou-se a mais parte mais complicada devido à acumulação de neve em alguns locais. O cenário que se colocava à minha frente era imenso ao ver todo aquele anfiteatro natural coberto de neve. O topo da Roca Negra manteve-se sempre mergulhado no denso nevoeiro e toda a sua imensidão granítica por vezes desaparecia encoberta pela cortina cinzenta que baixava dos céus. Todo aquele quadro tornava-se mais mítico quando a neve ia caindo de forma por vezes suave, por vezes arrebatada pelo vento.
O percurso pelo vale acabou por ser mais fácil do que previa, bem como a passagem pelo colo granítico para o Vale de Giesteira por onde acabaria por descer a partir do Curral da Arrocela para chegar ao Curral de Giesteira. Daqui, a chegada à Malhadoura foi feita subindo o recém reaberto carreiro até à velha estrada florestal, terminando assim esta jornada.