Virgílio de Brito Murta (Chefe dos Serviços Técnicos) e José Antunes Inácio (Sócio gerente da Sociedade das Minas do Gerez) no dia da chegada das equipas que trouxeram mantimentos para as Minas dos Carris em Março de 1955.
A mina representava um universo à parte onde na escuridão das galerias se forjavam alianças e cumplicidades, e onde os problemas e as desavenças eram muitas vezes resolvidas com uma queda num abismo escuro.
Nas palavras de Virgílio Muta “a vida era muito dura e o vento Norte era um inferno. Entre Outubro e Maio, ou nevava ou chovia, e à noite no mês de Fevereiro, a temperatura chegava a baixar até aos 17º C negativos. Na mina, a perfuração era feita com martelos pneumáticos, cuja parte principal, e mais cara, era o cilindro. Por cada metro perfurado além duma certa metragem, os marteleiros e ajudantes tinham um prémio, que era muitas vezes superior aos próprios salários. Claro que eles não queriam perder tempo e, por isso, qualquer falha ou avaria os irritava demais. Ora, aconteceu que um dia, o mestre Angelino, que era o encarregado dos trabalhos subterrâneos, me participou que tinha aparecido um martelo com marcas de marretada no cilindro. Disse-lhe para ver se descobria quem fora o habilidoso, acreditando que isso nunca aconteceria, pois, nas minas subterrâneas, a delação era coisa rara e muito perigosa. Mas, ao invés do que eu desejava, o mestre Angelino um dia informou-me que já sabia quem tinha sido o autor da proeza. Era um marteleiro, e eu não tive outro remédio senão chamá-lo ao meu gabinete. O homem negou tudo, jurou pelas alminhas, deu a sua palavra de honra, etc., etc. O mestre Angelino foi então buscar o delator, que garantiu ser aquele companheiro o autor da dita marretada. Este, imediatamente confessou tudo, disse que estava irritado por o martelo se ter avariado e, impensadamente, fez o que fez. Que não confessara antes, porque queria saber quem tinha sido o filho da puta que o denunciara. Perguntei-lhe se sabia o que ia acontecer. Respondeu que sabia muito bem, que eu o ia despedir. E, de facto assim foi; com muita pena minha, porque ele era realmente um bom marteleiro. Perguntei depois ao denunciante, qual era a recompensa que pretendia: era um lugar de auxiliar do encarregado (vigilante). Disse-lhe que também ia ser despedido, o que de modo algum esperava, ficando extremamente ofendido pelo prémio que recebeu. O autor da marretada deu duas gargalhadas, despediu-se e foi ao escritório pedir a conta. O denunciante ainda ficou para ver se me convencia a mudar de ideias, que não esperava que lhe pagasse daquela maneira, que era muito meu amigo, etc., etc. Eu consolei-o dizendo que ele ainda me devia agradecer, porque, se continuasse a trabalhar, arriscava-se a levar um empurrão para dentro de algum poço, ou até uma marretada, o que seria um bocado desconfortável para ele e incómodo para a Companhia. E dessa vez, com toda a certeza, não haveria ninguém para contar como tinha sido… Lá se foi embora, não muito satisfeito, mas mais conformado.
O tempo passou e, numa noite do Porto, chuvosa e fria, lá pelas três da manhã, vinha eu descendo uma rua escura e estreita, quando vi dois indivíduos, com todo o aspecto de já terem bebido uns bons copos, subindo na minha direcção. Quando passaram por mim, pararam e interromperam aquela conversa de bêbados. Um deles voltou-se para o meu lado e disse «Deus o salve, meu senhor» – e eu achei que iria mesmo precisar da salvação Divina. «O Sr. se calhar já não se lembra de mim, mas eu lembro-me bem de si.»
Nessa vida de minas, lida-se com tantos trabalhadores, que é difícil a gente lembrar-se de todos. Mas daquele eu lembrei-me, e muito bem. Era o mineiro da marretada, que eu tinha despedido. Pensei cá comigo que «…agora é que a coisa ia aquecer…» O homem aproximou-se de mim, cambaleando um pouco, e eu encostei-me à parede esperando pelo pior, pois fugir era muito feio. Então, ele voltou-se para o companheiro e, apontando na minha direcção, contou, rindo às gargalhadas, o caso que se tinha passado na mina, e que atrás relatei. Disse-me que nunca mais tinha visto o denunciante, mas que ainda havia de ajustar as continhas com ele. «E comigo?» Pensei eu… Não é para me gabar (até porque não estava nada à vontade), mas fiquei muito satisfeito e muitíssimo aliviado, com o que ele a seguir disse ao companheiro, e que foi mais ou menos o seguinte «este foi o melhor chefe com quem eu já trabalhei. Ainda me farto de rir quando me lembro da cara daquele gajo que me denunciou, quando aqui este senhor lhe disse que também estava despedido…”
Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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