Memórias do "comboio" nas palavras de Agostinho Moura publicadas no seu livro "Memórias Geresianas" (Outubro de 2011, pág. 156 - 159).
Há tempos, e com o duplo objectivo de revermos um recanto geresiano para nós recheado de memórias da meninice e, ao mesmo tempo, recolhermos localmente elementos fidedignos para esta crónica, subimos até à Boavista. E ficámos siderados com as diferenças que lá encontrámos comparativamente com algumas dezenas de anos atrás.
Desde logo, estranhámos o silêncio quase sepulcral que lá se fazia sentir. Ao contrário doutros tempos, não se ouviam a gritaria da miudagem, nem os raspanetes das mães a repreendê-la pelas suas traquinices, nem muito menos se escutava o cadenciado ritmo da mó do velho moinho que lá existiu, onde durante muitos anos se trituraram os grãos de milho para se fazer "o pãp nosso de cada dia"... Muito menos divisamos por lá qualquer farda ou boné dalgum guarda fiscal, em direcção à respectiva Secção que, durante mais de um século, lá funcionou. E no largo da velha Árvore - que saudades, Deus meu! - não vimos nenhuma criança a brincar à macaca, nem tão pouco nenhuma das castiças figuras locais de que o João Oliveira, o Méquinho, a Ana Neta, a "tia" Emília Côta ou a Bina da Tributina são apenas e só alguns exemplos. Todos já partiram...
O rebuliço que se registava numa das zonas mais populosas do Gerês noutros tempos deu agora lugar à desertificação quase total da velha Boavista, de que é, aliás, flagrante exemplo a sua principal referência durante muitos anos: o castiço casario humilde que o povo baptizou com o nome de "comboio", onde viveram diversas famílias, e hoje, desalojado já de "passageiros", não só deixou de "apitar" - como diz a popular canção...- como também, em estado de adiantada agonia, aguarda pacientemente pela sua derrocada total.
Acompanhados de um colega de escola, lá nado e criado, quisemos revisitar tão castiço bairro, cheio de histórias e não poucas memórias da nossa infância. E a desolação, se bem que já esperada, foi total. Por momentos, e a décadas de distância no tempo, constatámos as condições humilhantes em que sobreviveram os moradores daqueles autênticos cubículos, em que famílias inteiras ocupavam um único quarto e uma acanhada cozinha térrea, sem condições higiénicas na maioria dos casos. Numa construção anexa, do lado direito de quem entra na agora denominada Travessa da Guarda Fiscal, em homenagem a esta extinta corporação, havia o forno comunitário, em que cada família, em dias certos da semana, cozia as broas de milho, para além de uma retrete pública no mesmo prédio.
Se bem que sujeita a eventuais alterações, famílias houve que lá viveram ao longo de várias décadas como inquilinos do Sr. João da Ponte, proprietário desse bairro humilde. (...)
A Árvore, nome com que era apelidado o pequeno largo junto à casa do João Oliveira, era o "ponto de encontro" das gentes da Boavista de há 50 e mais anos atrás. Era lá também que, todos os anos, a mocidade de então montava a sua cascata de S. João (...).
As gentes do Rigor também não se calavam, respondendo ao salutar despique com as mesmas armas, dando igualmente asas à folia, até às tantas da madrugada... Infelizmente, com o Rigor silenciado para sempre pelas razões conhecidas, para os lados da desertificada Boavista, quase reduzida a meia dúzia de famílias, as perspectivas não são nada animadoras. Será que um dos principais centros populacionais geresianos de outrora, como o foi esta Boavista, passará a ser, a curto prazo, e tal como o Rigor, uma indesmentível saudade?
Fotografia extraída do livro "Memórias Geresianas", de Agostinho Moura
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