Esta é a continuação de um conjunto de histórias sobre o Inverno na Serra do Gerês com particular ênfase nas Minas dos Carris. É possível que já tenha publicado aqui este texto que nos conta a dureza da vida na Serra do Gerês no longínquo ano de 1944 durante um duríssimo Inverno.
As histórias servem também de aviso e conselho para aqueles que nos próximos dias irão demandar as paisagens serranas. Sublinhando a importância da segurança e da gestão do risco em montanha, fica aqui mais uma parte deste conjunto de histórias.
Na transcrição em baixo não foi corrigida a ortografia.
A partes anteriores deste artigo podem ser lidas em Histórias de Inverno nas Minas dos Carris (I), Histórias de Inverno nas Minas dos Carris (II) e Histórias de Inverno nas Minas dos Carris (III).
Na mesma linha dos artigos anteriores, ‘O Comércio do Porto’ relatava a 2 de Março o salvamento dos mineiros dos Carris.
Podem considerar-se salvos os duzentos trabalhadores que a neve bloqueou na Serra do Gerez graças aos esforços dos bombeiros de Braga e Vieira do Minho e de muitos populares
O mineiro que num esforço supremo, tentou alcanças a estância do Gerez e se perdeu na neve, foi encontrado, ainda, com vida, e salvo
(Do nosso enviado especial)
BRAGA, 1 – Melhorou, consideravelmente, a situação dos 200 trabalhadores, bloqueados pela neve na concessão denominada dos Carris, no Gerez, explorada pela Mineira Lisbonense.
Os Bombeiros Municipais e Voluntários de Braga e de Vieira do Minho, trabalharam, incansavelmente, até hoje ao romper do dia, na desobstrução da estrada que vai do Gerez a Leonte. Foi um esforço consideravelmente extenuante, mas que pôde realizar-se com êxito, porque a satisfação de valer a 200 vidas em perigo, redobrou o ânimo e a coragem não só dos bombeiros, mas também das muitas dezenas de operários, na sua maioria mineiros, que com eles colaboravam. A neve, que na própria estância do Gerez atingiu a altura de 30 centímetros, logo no início da estrada de Leonte acumulava-se em massas enormes que ultrapassavam um metro de profundidade.
A diferença de nível entre a estância e Leonte é, aproximadamente 800 metros, que a estrada, na extensão de 7,5 quilómetros, vence em declive por vezes acentuadíssimo. E à medida que ela galga a encosta, o volume de neve tornava-se maior. Foi necessário, portanto, uma dedicação extraordinária, para realizar tão monumental trabalho, vencido com admirável espírito de abnegação, e com risco iminente. Mas era essa, também, a maior dificuldade, porque a estrada, que prossegue, para além de Leonte e até Albergaria, submetida à administração do perímetro florestal, começa ali a descer, facilitando, por esse facto, a remoção da neve. Brigadas de trabalhadores, que se revezaram durante o dia, dirigidas pelo Sr. Capitão Olegário Antunes, continuaram para além de Leonte, o trabalho dos bombeiros – digno de maior apreço, como ouvimos, no próprio local – e, hoje, ao princípio da noite, atingiam Albergaria. Daqui aos Carris, ainda há uma distância de 14 quilómetros, mas como não existe estrada, bastará abrir uma pista, para peões e solípedes, esperando-se que o trabalho possa ser executado a tempo conveniente.
Hoje, durante o dia, alguns trabalhadores aventuraram-se a deixar a sua reclusão forçada e vieram ao encontro dos que abrem caminho para as minas. Chegaram, é certo, extenuados, mas satisfeitos por terem perfurado o «sítio» que a neve estabeleceu.
Contarem eles que ao clarear o dia de segunda-feira, se verificou nos Carris, ter a neve atingido a altura dos telhados das instalações. Procurou-se, imediatamente, abrir respiradouros, e, depois, desobstruir as portas. Reconheceu-se, porém, que era impossível ir mais longe. Importava aguardar socorros exteriores, pelo que, os superiores da cantina, aplicaram, imediatamente, um sistema de racionamento que permitiu assegurar o abastecimento até sexta-feira ou sábado. E como todos, agora, estão convencidos que os socorros chegam a tempo, reinam a calma e a confiança.
O pequeno grupo de trabalhadores que estava mais longe, para o cabril, na concessão do Borrageiro, constituído por 12 homens, foi todo salvo, embora depois de sofrimentos sem conta e nas mais dramáticas circunstâncias. Três desses homens deixaram o grupo, e dois conseguiram, com os seus recursos, chegar ao Gerez. O terceiro perdeu-se, e foi dado por morto. É o Domingos Pereira.
Mais tarde, uma brigada de socorro, constituída por mineiros tão valentes como ousados, foi, pela encosta Sul da serra, ao encontro dos nove restantes, e pôde salvá-los, içando-os em cabos, da ravina onde já esperavam uma morte certa. Foi essa brigada que descobriu, ao fundo de um barranco, inanimado e arroxeado com o frio, o Domingos Pereira, perdido havia 24 horas. Parecia morte, mas içado também, depois de recolhido na primeira cabana que ao grupo se deparou, e de tratado carinhosamente, embora por meios rudimentares, voltou á vida. No Gerez, o seu reaparecimento, causou a maior alegria.
A neve, por toda a serra, entrou, já, em liquefacção, mas teme-se que surjam outros nevões. Ainda esta noite, quando os bombeiros estavam próximos de Leonte, pela uma hora da madrugada, voltou a nevar em quantidade. Felizmente, foi só durante uns 20 minutos… Admitindo, a ausência de novas quedas de flocos, e o auxílio da temperatura, o regresso à normalidade levará, mesmo assim, ainda muitos dias. As montanhas de rama alvinitente, são muito extensas e espessas. Giestais crescidos, com dois e mais metros de altura, desapareceram sob interminável lençol branco: pinheiros, pequenos cedros e outras espécies da flora que reverdece nas encostas do Gerez, mostram, dificilmente, as suas cúpulas. O panorama, ainda hoje, não sendo, já, inédito, era de imponência e de grande arrebatadora, não isentas de perigos que os desprendimentos contínuos tornavam a todos os instantes iminentes.
Texto adaptado de "Minas dos Carris - Histórias Mineiras na Serra do Gerês", Rui C. Barbosa - Dezembro de 2013
Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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