quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Histórias de Inverno nas Minas dos Carris (I)


Esta é a primeira de várias histórias sobre o Inverno na Serra do Gerês com particular ênfase nas Minas dos Carris. É possível que já tenha publicado aqui este texto que nos conta a dureza da vida na Serra do Gerês no longínquo ano de 1944 durante um duríssimo Inverno. Sou-vos sincero, não vou procurar para trás se isto já terá sido publicado ou não, até porque as histórias servem também de aviso e conselho para aqueles que nos próximos dias irão demandar as paisagens serranas.

Na transcrição em baixo não foi corrigida a ortografia.

A extrema dureza do trabalho nas minas e na Serra do Gerês vai ser sublinhado pelos acontecimentos que marcaram o fim do mês de Fevereiro e os primeiros dias de Março de 1944.

Com as condições atmosféricas a piorarem, os últimos dias de Fevereiro assistiram a um intenso nevão que impossibilitou a circulação pelas estradas serranas e a actividade mineira. A certa altura temeu-se o pior para os trabalhadores que se encontravam em Carris e na Mina do Borrageiro. De facto, foram estes que despertaram a maior preocupação por não estarem minimamente equipados para suportar os rigores do inclemente Inverno geresiano. Nesta altura as vias de comunicação terminavam pouco depois da Portela de Leonte, a partir de onde se caminhava em trilho de montanha até atingir o estradão pelo Vale do Homem que conduzia até ao complexo mineiro. Já a 29 de Fevereiro o jornal ‘O Comércio do Porto’ noticiava que o mês que então findava, o fazia “chuvoso e nevado” referindo “…mais uma vez não falhou em seus prognósticos. ‘Apareceu a rir… estava o Inverno para vir.’ E veio. Tardio embora, mas bravo. Frio de rachar pedras, cobrindo todas as serras e muitas das terras do País de grandes nevões. E não só por alturas da Estrela e do Gerez e por burgos das Beiras e de Trás-os-Montes, onde há nevadas frequentes (…)”  Por se tratarem de documentos com interesse histórico, são aqui reproduzidos os textos dos jornais ‘Diário de Notícias’ e ‘O Comércio do Porto’ que eloquentemente relataram esses dias. O primeiro texto é do jornal ‘Diário de Notícias’ e refere o drama que se desenrolava na Serra do Gerês.

Bloqueados pela neve estão no alto do Gerez

200 homens sem recursos

Os bombeiros de Braga e Vieira do Minho procuram restabelecer as comunicações

Lá no alto da serrania brava, onde se ligam Trás-os-Montes e o Minho, sob vistas galegas, o Gerez parece abandonado por esta época do ano. As rochas descarnadas que se alcantilam com medonho aspecto entre os rios Homem e Cávado e cujos picos eriçados tocam o céu, são rondados pelos lobos enfurecidos, que a fome desvaira e traz até aos povoados. A serra enorme touca-se de neve, e embora linda nos surpreendentes véus de gase com que a enfeitam os nevões, enche-se medos e pavores.

Os serranos recolhem-se com os gados ás suas choupanas, o transito reduz-se ao essencial e a grande serra fica como que abandonada. Não lá circulam trenós, não a frequentam os desportistas que adoram a patinagem no gelo, não passam por ela automóveis que, providos de «lagartas» possam vencer os caminhos cobertos de neve.

Ora, desde que a guerra principiou e a febre do volfrâmio desvairou muitas e variadas gentes, o Gerez passou a contar com uma população nómada, que vive longe dos povoados e que, sem recursos nem habitações próprias, sente avolumarem-se á sua volta os perigos naturais da cordilheira inhospita: são os mineiros.

Por isso se explica o alarme trazido até os centros civilizados por um acontecimento que devia estar previsto e não seria de molde a assustar quem quer que fosse, se na serra existissem os recursos de defesa indispensáveis.

Em resumo, o caso limita-se ao seguinte: no domingo á noite começou a cair um forte nevão no alto do Gerez. E ontem á tarde os mineiros que lá trabalham estavam sem recursos e sem poderem comunicar com a povoação mais próxima, que fica apenas a 27 quilómetros de distância. Não se percebe como não haja reservas de alimentos e combustíveis em local onde trabalham duas centenas de homens, mas o facto parece infelizmente certo, como se verifica pela notícia que recebemos ontem á tarde e que damos a seguir.

CALDAS DO GERES, 29 – Desencadeou-se uma grande tempestade de neve na serra do Gerez. No alto dos Carris, a 1.600 metros de altitude, onde estão as minas deste nome, encontram-se mais de 200 pessoas bloqueadas.

Partiu do Gerez uma camioneta com voluntários e o pessoal superior da mina, engenheiros Cruz e Martins, e o delegado na Mineira Lisbonense, com sede no Porto, Sr. José Rodrigues de Sousa, que leva mantimentos e vai procurar socorrer os bloqueados.

Para Braga partiu o capitão Olegário Antunes, inspector-chefe das minas, que foi pedir o auxílio dos bombeiros daquela cidade, que estão a chegar ás Caldas na ocasião em que damos esta notícia. 

Um grupo de 8 homens procurou fugir ao bloqueio. Na altura do Modorno sucumbiu um deles, de nome Domingos Pereira de Olívio, natural de Vila Verde, casado, e pai de 2 filhos menores. Outros dois ficaram muito abalados. No Burrageirinho há 12 homens perdidos por completo. A neve atinge 5 metros de altura e, por esse facto, a camioneta que partiu das Caldas só conseguiu avançar 3 quilómetros. As minas estão situadas a 27.

Um avião deve voar sobre o alto do Gerez

Á noite estivemos em comunicação telefónica com o sr. Engenheiro Luiz de Ávila e Castro, director do posto dos serviços florestais do Gerez.

Por ele soubemos que a situação não é tão grave como se apresentava de tarde.

Os 12 homens dados como perdidos na Burrageirinha já foram encontrados. E o mineiro Domingos Pereira de Olívio que se dizia ter morrido, encontra-se são e salvo. Aconteceu com ele apenas que, anteontem, á noite, muito embriagado por causa do frio que fazia – segundo declarou – decidiu romper o bloqueio da neve e seguir em busca da povoação mais próxima.

Caiu, porém, num barranco e, sem forças para se levantar, ficou toda a noite com neve até ao pescoço. Ontem, de manhã, já quando lhe tinha passado os fumos do álcool, sentiu que não podia sair dali, por ter as pernas e os braços enregelados. Gritou, porém, e uma das brigadas de socorro, que andavam em busca do seu cadáver, foi buscá-lo, tendo causado geral alegria e seu aparecimento. Depois de algumas massagens ficou bem e bebeu-lhe mais uns copos – para se restabelecer…

Os mineiros continuam, todavia, bloqueados pela neve. Três carros de pronto-socorro com bombeiros de Braga e de Vieira do Minho procuram abrir caminho, limpando a estrada. Apesar da baixa temperatura trabalharam com singular denodo durante toda a noite de ontem, tentando restabelecer as comunicações com os mineiros.

Se tal não se conseguir até a manhã de hoje, admite-se a hipótese de fazer sair de Espinho um avião, que sobrevoará o Gerez e deixará cair na mina mantimentos e agasalhos, visto ser aflitiva segundo parece, a situação dos 200 trabalhadores que se encontram bloqueados no lugar dos Carris.

Já foram desobstruídos, pelo menos, 6 quilómetros de estrada

BRAGA, 29 – Com os bombeiros voluntários e municipais saídos desta cidade e de Vieira do Minho, para socorrerem os mineiros bloqueados na serra do Gerez, e os habitantes das localidades próximas dos Carris, devem andar por 200 as pessoas que se entregam á afanosa tarefa de restabelecer as comunicações com a mina de volfrâmio da Empresa Lisbonense. A mina confina com o concelho de Montalegre, onde se organizaram também brigadas de socorro.

Até ás 21.30 de hoje estavam desobstruídos 6 quilómetros adiante do lugar de Leonte. Daí para cima o trajecto faz-se por caminhos de cabras até ao ponto onde existe uma estrada larga e boa que a Empresa mineira está a construir há meses, em direcção ás Caldas do Gerez. É natural que os mineiros e os trabalhadores que se empregam na construção da estrada estejam a procurar, por seu turno, desbravar caminho, sendo de prever, pois, que uns e outros se encontrem com os seus salvadores amanhã á noite ou depois de amanhã, se o nevão não aumentar de intensidade.

Mas, entretanto, como faltam os mantimentos no lugar dos Carris, impõe-se que sejam enviados aos bloqueados socorros por via aérea.

Na mesma edição, o jornal adiantava na secção de última hora.

O nevão no Gerez  
Uma brigada de socorro deve ter chegado já á mina dos Carris
CALDAS DE GEREZ, 1 (De madrugada pelo telefone) – O trabalhador Domingos Pereira, que fora dado como morto e foi, afinal, encontrado bem de saúde, está nesta localidade e tem recebido muitas felicitações por haver sido salvo. No momento em que o encontraram estava tão enregelado que, se os socorros tivessem demorado mais algum tempo, sucumbiria de frio e de fome.
O nevão abrandou muito e o estado do tempo facilita o trabalho de desobstrução da estrada. Á meia-noite, devido ao frio intenso e depois de um esforço verdadeiramente heróico, os bombeiros suspenderam os trabalhos, que devem recomeçar ás primeiras horas da manhã. A estrada foi limpa até cerca de 200 metros do lugar de Leonte. Daí para cima, até ao começo da nova estrada, fica o trecho mais difícil de desbravar.
Uma brigada constituída pelos Srs. José Rodrigues de Sousa, delegado da Empresa Mineira, engenheiros António Cruz e Alípio Martins e 5 trabalhadores largou do lugar de Água da Vala , ás 16 horas, para ir aos Carris levar mantimentos aos mineiros que se encontram bloqueados.
Não há ainda notícias deles. Mas crê-se que já se encontrem na mina, apesar da dificuldade de percorrer vinte quilómetros de serra com neve de muitos metros de altura, e tenham levado aos pobres trabalhadores isolados a certeza de que não se encontram ao abandono e vão ser socorridos dentro em breve.

Texto adaptado de "Minas dos Carris - Histórias Mineiras na Serra do Gerês", Rui C. Barbosa - Dezembro de 2013

Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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