segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Histórias de Inverno nas Minas dos Carris (III)


Esta é a terceira de várias histórias sobre o Inverno na Serra do Gerês com particular ênfase nas Minas dos Carris. É possível que já tenha publicado aqui este texto que nos conta a dureza da vida na Serra do Gerês no longínquo ano de 1944 durante um duríssimo Inverno.

As histórias servem também de aviso e conselho para aqueles que nos próximos dias irão demandar as paisagens serranas. As duas primeiras partes foram quase premonitórias tendo em conta os acontecimentos do dia 9 de Janeiro de 2016. Sublinhando a importância da segurança e da gestão do risco em montanha, fica aqui mais uma parte deste conjunto de histórias.

Na transcrição em baixo não foi corrigida a ortografia.

A primeira parte deste artigo pode ser lida em Histórias de Inverno nas Minas dos Carris (I) e a segunda parte em Histórias de Inverno nas Minas dos Carris (II).

O ‘Diário de Notícias’ continuava a 2 de Março, o relato do drama que se vivia na Serra do Gerês.


Estão livres de perigo os 200 trabalhadores bloqueados pela neve no Gerez. As comunicações com as minas ficaram ontem praticamente restabelecidas  

Foi como que um pesadelo, um sonho sombrio na montanha vestida de branco. Estão salvos os duzentos homens que, no alto do Gerez, fechados entre o céu e as cristas da penedia agreste, tinham julgado chegada a sua última hora.

O nevão intenso, multiplicando as armadilhas da serra, tinha erguido em torno deles muralhas de gelo, de cinco metros de alto. A morte, com o seu cortejo de fantasmas, rondava aquelas existências, que o trabalho fizera correr uma perigosa aventura. Tiritavam os corpos de frio e as almas de medo, no desconforto da montanha povoada de pavores.

Mas como sempre nas grandes cenas trágicas, quando há vidas em risco entre os portugueses, surgiram homens heróicos, que, arrostando com todos os perigos, romperam as muralhas em que iam sepultar-se vivos tantos trabalhadores. Já ontem, em «Últimas Notícias» dávamos conta de que uma expedição se metera ao caminho, saindo pelas 16 horas do lugar de Água da Pala, em direcção ás minas dos Carris, e acrescentámos que nas Caldas do Gerez, era gerada a crença de que os audaciosos expedicionários haviam atingido a meta desejada estabelecendo comunicação com os bloqueados e levando-lhes o conforto e o auxílio de que estavam carecidos.

Assim aconteceu, de facto. A brigada era constituída, como dissemos, pelos Srs. José Rodrigues de Sousa, delegado da Empresa Mineira Lisbonense, Lda.; engenheiros António Cruz e Alípio Martins e por cinco trabalhadores, que levavam mantimentos e material de socorro em cinco mulas, dada a impossibilidade de se fazer o transporte por outro meio. Mas, em dado momento, a neve era tão alta e tão farfalhuda, dificultava por tal forma o avanço dos animais que estes foram trazidos por António Espada ao ponto de partida e os expedicionários decidiram seguir sozinhos, carregando eles com os mantimentos.

Heróica foi a sua caminhada, no destemido arranco pela serra acima, indiferentes á dureza dos elementos e aos perigos que os cercavam. Abrindo clareiras na ininterrupta muralha de neve, caindo aqui e acolá, tateando o caminho á beira dos precipícios, guiados mais pelo instinto do que por pontos de referencia, lá chegaram enfim.

A recepção que lhes fizeram os que já se julgavam para sempre isolados do Mundo excede quanto se pode imaginar. Deve dizer-se, pelo menos que até nós chega, que não houve nunca tão expressivas lágrimas de alegria e de gratidão.

Esses escassos vinte quilómetros que vão de Água da Pala aos Carris foram palmilhados, com denodado esforço, em oito horas. Á meia-noite a brigada anunciando-se por lumes que punham reflexos de ouro ao vasto lençol de neve, chegou á mina, acolhida com grandes manifestações de júbilo.

Todos os mineiros e operários se encontravam, felizmente, bem. Não se confirmavam as notícias alarmantes que circulavam nas povoações em volta, segundo as quais havia mortos.


27 homens salvos

Apenas na véspera 27 homens tinham corrido risco de vida. Pernoitavam num barracão e a neve, durante a noite, cobriu este totalmente. Ao despertar, sentindo-se sepultados, tentaram por todos os meios vencer a densa camada de neve que os isolava. Mas todos os seus esforços foram baldados.
Sentindo, porém, a falta deles no trabalho, os companheiros foram em sua procura. E assim os salvaram de morte certa.

Os outros 12 homens localizados no Burrageirinho  já tinham sido salvos anteontem, como referimos.


Abrindo caminho por entre a neve


A chegada aos Carris da brigada de socorro encheu de uma nova alma os isolados. Ao conhecerem os esforços que se faziam para desobstruir os caminhos e libertá-los do círculo de neve que os cercava, principiaram, por sua vez, a abrir caminho na direcção das caldas do Gerez.

Aqui os serviços de socorros estavam centralizados no Hotel Maia e eram dirigidos pelo Sr. Capitão Olegário Antunes. Haviam sido três dos trabalhadores da mina que, na segunda-feira, á tarde, com pormenores alarmantes, tinham trazido ali a notícia de que os companheiros estavam bloqueados. A tempestade de neve não só apagara os vestígios de todos os caminhos, como obrigava os trabalhadores a saírem de suas casas pelas janelas e pelos telhados, para não serem sepultados sob a avalanche. Mas a neve crescia e não se vislumbrava meio de a arredar ou de fugir ao inferno branco que, a 1.507 metros de altitude, enchia de angústia tantas existências.

Com os bombeiros de Braga e de Vieira começara-se, logo que chegou a notícia, a desbravar caminho, do lado do sul. Por volta da meia-noite, depois de um trabalho insano, estavam desbravados uns escassos seis quilómetros. Os bombeiros de Vieira, que haviam tido um desastre, porque a sua viatura caíra por um talude, retiraram-se então; e os de Braga, depois de pernoitarem no Gerez, regressaram ás 9 horas á sua cidade.

Mas como, entretanto, tinham vindo, em camionetas, grupos de trabalhadores de Vilar da Veiga e Rio Caldo, foi com eles que os trabalhos de desobstrução prosseguiram durante toda a noite. Pelas duas horas da madrugada de ontem, depois de um trabalho heróico, as brigadas atingiram a povoação de Leonte, o pitoresco lugarejo tanto da predilecção do grande pintor Artur Loureiro. Existe ali um posto da Guarda Florestal com telefone.

Cerca de duas centenas de homens, armados de pás, picaretas, enxadas e até machados, porque havia árvores atravancando o caminho, continuaram a abrir brecha na grande muralha de neve, apesar das dificuldades crescentes da empresa.

Nas Caldas do Gerez compareceram ás, primeiras horas de ontem, o sr. Trindade dos Santos, administrador do concelho de Terras de Bouro, e vários vereadores, que tomaram as providencias necessárias para que os trabalhos de desobstrução se activassem.

As comunicações estão praticamente restabelecidas

O Sr. Engenheiro Luiz de Avila e Castro, administrador dos serviços florestais do Gerez, chegou, ontem á noite, a Lisboa, vindo da serra, de onde saiu ás 9 horas. Encontrou na estrada, muito contente e alegre, o trabalhador Domingos Pereira, de quem se disse, como referimos, que tinha morrido no meio da neve. A mulher, que recebera a notícia de que ele morrera, ia desfeita em pranto com outras mulheres suas vizinhas, quando o encontrou em grande alegria. Caíram nos braços um do outro a rir e a chorar, dando-se uma cena que a todos impressionou.

O Sr. Engenheiro Ávila e Castro pôs á disposição dos serviços de socorros os guardas sob as suas ordens e a rede telefónica privativa da administração florestal. O temporal avariou algumas linhas, mas conservou intacta, felizmente, a de Leonte, o que muito facilitou os trabalhos.

Ontem de manhã saíram das Caldas do Gerez para o posto de Leonte, término da estrada, três camionetas, que dali, rompendo a neve, com dezenas de trabalhadores a abrir caminho, atingiram á tarde Albergaria. Os trabalhos de desobstrução, de um lado e do outro, entre Albergaria e Carris, continuaram á noite, mas as comunicações consideram-se praticamente restabelecidas, estando completamente livres de perigo os trabalhadores das minas. 

Eles pertencem, em corporação, á Sociedade Mineira dos Castelos e á Empresa Mineira Lisbonense. Na sede desta, na rua do Comércio, 8, 2º, foram recebidas, ontem, á tarde, informações que confirmam que os trabalhadores de Carris se encontram livres de perigo.

Cabe dizer, a propósito, que nos Carris não faltavam alimentos, porquanto mensalmente seguem para ali, por intermédio da Empresa, os géneros alimentícios necessários, com as capitações estabelecidas pelo Grémio dos Retalhistas de Mercearia. O que aconteceu foi que os géneros, tal como as casas, ficaram cobertos pela neve. Daí o alarme estabelecido nas populações em torno e a que responderam as prontas providencias tomadas.

Texto adaptado de "Minas dos Carris - Histórias Mineiras na Serra do Gerês", Rui C. Barbosa - Dezembro de 2013

Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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