As previsões já se faziam há vários dias e o esperado nevão chegava em força na noite de 17 para 18 de Janeiro. A Serra do Gerês começara a vestir-se de branco no dia anterior, com um vento forte a varrer as encostas e a antecipar o que iria chegar.
A noite começou com chuva e o insistente som das goteiras nas ruas da aldeia marcaram os últimos minutos do despertar. Adormecia embalado pelo ritmo da chuva e pelo grave compasso do vento. Porém, de repente, acordara com uma estranha luminosidade que enchia o corredor vindo da rua. Parecia que a luminária aumentara de intensidade e uma luz, mais brilhante do que a ténue claridade das últimas noites, inundava os recantos. Em simultâneo, a casa estava mergulhada num silencio que profundamente contrastava com o embalo que me levara para o mundo dos sonhos. Levantei-me e pegando a Freya no colo, abri a porta da rua. Uma estranha luz reflectia-se de todos os lados, vinda dos telhados já quase cobertos de neve que caía lentamente. Teria mesmo acordado, ou estaria ainda a dormir. Uma súbita brisa gelada arrebatou alguns flocos de neve na minha direcção e logo apercebi-me da realidade fria do momento. Nevava calmamente no Campo do Gerês e isso era sinónimo de que a serra estaria já coberta de um espesso manto branco. Voltei a dormir...
Acordaria então para um dia de neve na Serra do Gerês. Havia pensado em visitar as Minas dos Carris caso a neve chegasse, mas tal visita estaria já prevista para o dia seguinte. Assim, decidia caminhar aos Prados da Messe subindo a Costa de Sabrosa.
Saindo do Campo do Gerês, a primeira paragem seria logo no entroncamento da Guarda para fotografar as encostas da Serra Amarela cobertas de neve. Imagino como teriam sido as paisagens nestes dias de nevada quando Vilarinho da Furna ainda riscava o céu com o fumo das suas lareiras e fornos? Paisagens que se perderam e memórias que vão pelo mesmo caminho. Rumei então pela Estrada da Geira à medida que ia olhando as encostas das vertentes geresianas; A Fraga do Sarilhão com uma capa nevada, restos de neve aqui e ali pelo caminho.
A chegada à Volta do Covo mostrou-se uma imagem única do Rio Homem na sua passagem pela Mata de Albergaria e as encostas da Sabrosa e do Vale do Rio do Forno cobertas por um intenso manto branco. Carro estacionado na Albergaria, mochila às costas e rumei em direcção ao Curral de Albergaria que estava coberto de neve. Tirando o som de fundo do Rio do Forno, a Mata de Albergaria estava imersa num silêncio típico destes dias. Parece que a Natureza se silencia para que o «espectáculo visual» seja absorvido com maior intensidade.
Estando a latitudes baixas, e apesar de tempos a tempos sermos brindados com a chegada da neve, nos últimos anos Portugal não tem assistido a grandes nevões. Temos histórias de resgates de mineiros e do árduo trabalho e de vivência nas serranias, mas estas são cada vez mais histórias para contar ao borralho. Por outro lado, é sempre difícil nos livrarmos de um esquema bem montado há já muitos anos e no qual Portugal é uma imensa planície com uma única montanha no centro, da mesma forma que é bordejado para o oceano por um leito pedregoso, excepto nas praias do extremo Sul, e que neste país só se escuta uma música que caracteriza o «ser Português». Aliando estas situações e temperando-as com a falta de senso comum apimentada com Facebooks e Instagrams, compreendemos uma certa reacção geral à chegada da neve.
Por entre o silêncio escutei um motor e pelo canto do olhar vejo um carro-patrulha da GNR que, com ar de espanto, olha-me qual ser estranho naquele ambiente frio. Saúdo-o. Em lenta marcha de emergência, desaparece na curva e eu sigo o meu caminho, enveredando serra acima. A Costa de Sabrosa estava coberta de neve logo nos primeiros metros, neve esse que vai aumentando de espessura à medida que o altímetro ganha volume. Em pouco tempo deixei de caminhar, mas marchava costa acima, sozinho.
Conselho de leitura: A Complete Guide to Solo Hiking.
A paisagem arrebatava-se a cada momento. Cada olhar era um esgar de espanto, uma ânsia a querer olhar para todo o lado numa vontade de tudo abarcar e recordar. No entanto, a cada paisagem conhecida, surgia a ideia de uma nova perspectiva: ou tentava vislumbrar o Pé de Cabril e a Corneda, as encostas de Bemposta e Varziela, as vertentes da Serra Amarela e o enquadramento com a Pena Longa, o contraste dos milhares de ramadas na Mata de Albergaria, as lonjuras do Soajo e da Peneda, a profundidade do Vale do Rio Forno imerso na neblina que rodopiava por entre as conjecturas do vento, a imponência do Pé de Medela e a altivez do Corno Godinho, ou a simplicidade de uma folha ou de um bugalho cobertos de neve.
O calor da subida fez-me trocar de roupa algumas centenas de metros após a Fonte da Costa de Sabrosa. Arfava e sentia o ar frio a entrar nos pulmões. Mais confortável, a caminhada tornou-se mais ágil, porém, o esquecimento do bastão de caminhada notava-se e o cansaço surgia mais rápido do que com aquela ajuda. Caminhando serra acima, a neve caía e ia acumulando na paisagem adornada com um nevoeiro que ora se abria e permitia o vislumbra de imensas paisagens brancas, ora - como o cair do pano - se fechava e tornava o mundo num espaço cinzento, escuro, onde o vento uivava por entre o granito cuja textura se realçava ao contraste com a neve.
Conselho de leitura: Solo Hiking: What You Need to Know to Hike Alone.
Vencida a Costa de Sabrosa, o olhar pousava agora nos Prados Caveiros após ter passado a pequena planície branca que a Lameira das Ruivas se transformara. EStava atento a todos os pormenores e os sentidos aprumavam-se na busca da vida selvagem: ora perscrutava o chão em busca de pegadas; ora mirava as encostas em busca de silhuetas; ora escutava o vento, atento ao chamamento dos lobos. Na Lomba de Burro jazia caído, meio enterrado na neve, o cadáver de um cavalo que aos poucos ia servindo de alimento aos animais que por ali passavam. Na neve, notava-se o frenesim da luta por um pedaço de carne, com o sangue a tingir a neve que ia caindo.
A descida para os Prados da Messe fez-se com cuidado. Abrigado do vento, os pequenos passos cobriam-se de placas de gelo sobre as quais todo o cuidado era pouco. Uma vez ou outra, o gelo cedia e o passo tornava-se mais longo. Os Prados da Messe pareciam um cenário de um filme por onde caminhava mergulhado no compasso ritmado do esmagar dos cristais de gelo e neve sobre as botas. Adoro o som do caminhar na neve... faz-me recordar cantigas de Revolução!
O cenário era perfeito e não é necessário ser-se um fotógrafo profissional para ter o enquadramento perfeito e fazer a fotografia do ano. Está lá tudo, basta apontar a câmara fotográfica. As ruínas da Casa dos Serviços Florestais estavam adornadas por colunas de neve e gelo, e as árvores pareciam guardiãs geladas daquele espaço. Por momentos, a Sul, as nuvens afastavam-se e o céu azul compunha o belo quadro. No entanto, a Norte, erguia-se um negrume que ia ganhando intensidade.
Apesar de ter começado a jornada um pouco tarde para o que me é habitual, a caminhada havia sido generosa e chegara à Messe antes do previsto. Assim, num arrebate de coragem, segui em direcção ao Porto de Vacas e Conho, caminhando por um mundo de neve e gelo que se ia tornando mais difícil e que começara a não me querer ali.
As caminhadas a solo permitem-nos apurar a nossa gestão do risco. Ele está sempre presente por muito que tentemos minimizá-lo. Se tivermos consciência desse risco, este será menor e cada passo é pensado ao pormenor. Se acharmos que o risco não existe e que o salto vale a pena, será meio caminho andado para o desastre.
Nesta caminhada, e mesmo sem a presença da neve, a parte mais difícil surge após a passagem do Conho. Aqui, já percorremos mais de metade do caminho e o cansaço começa a dar sinais de que se acumula. Com um intenso cenário de neve, multiplicamos este esforço por cem!
Caminhando na direcção do Curral da Pedra surgem-nos diversos cursos de água escondidos pela neve que foi fazendo ponte por entre a vegetação. Mesmo conhecendo o caminho, torna-se complicado navegar nos espaços e todo o cuidado é pouco. Aqui e ali a ajuda do bastão era essencial, mas esta ferramenta auxiliámo-nos do julgamento e dos sentidos. Ultrapassados estes pequenos grandes obstáculos, caminho na descida para o Porto de Vacas para encontrar um ribeiro intransponível e engrossado com a chuva e a neve. Caminho um pouco a montante e encontro uma zona onde o Ribeiro de Porto de Vacas se estreita, permitindo a passagem pedra a pedra de forma cuidadosa para evitar o resvalo. Inicio a longa e penosa subida para o Conho. A Norte um negrume avoluma-se.
A subida para o Conho foi árdua e penosa. O coração bate forte no peito e o respirar descarrega um ar frio nos pulmões. O corpo já requer sustento num cenário polar, frio, gélido e onde o vento faz rodopiar a neve em volta dos cabeços. A chegada ao abrigo pastoril do Conho traz um certo alívio. A mochila fazia-se pesar, pois a roupa que ali havia guardado no início da caminhada ia fazendo-se notar. O cenário que encontrei no abrigo teria sido um pouco assustador... a neve cobria a mesa de pedra no exterior do abrigo, apesar de protegida, e a visão dos utensílios cobertos de gelo fizeram-me lembrar os épicos filmes de fantasia. Abrindo a porta do abrigo deparei-me com um cenário que não esperava: a neve e o gelo cobriam o interior do abrigo, tudo era uma escultura de neve e gelo. Quem ali estivera a dormir, havia removido umas pedras da parede criando uma saída para o fumo, saída essa aproveitada pela neve para tudo cobrir no interior. Tirei a mochila no meio daquele cenário de "Doutor Jivago" e sentei-me no colchão coberto de neve.
Entretanto, o vento parara e começara a nevar com os flocos de neve a cair lentamente no enquadramento da porta. Já cansado, troco a roupa suada e dou sustento ao corpo, hidratando-me e aquecendo com um chá. Embalado por este prazer, não noto que lá fora vai escurecendo e que de repente os flocos de neve estão mais nervosos. O negrume havia chegado e a tempestade caíra sobre o Conho. Não era tarde, mas querendo ter mais de uma horav de margem de segurança, retomo a marcha açoitado por rajadas de vento que vão encontrando maneira de trespassar a roupa. Inicio a árdua subida que se torna mais penosa a cada passo. Caminho 100 metros e vislumbro o curral por entre o nevoeiro; caminho mais 100 metros e estou mergulhado num mundo cinzento com a neve a incrustar-se no passa montanhas.
Caminhando com neve pelo joelho, cada passo custa mais do que o anterior. Doseando o esforço, vou vencendo o declive numa trepada dura pela neve. Curiosamente, tenho a sensação de que - nesta condições - não demoro muito maisdo que o normal a ultrapassar a subida que me levaria à Lomba de Pau, mas o esforço é imensamente superior. Entre as duas grandes mariolas encontro-me num inferno gelado. O vento é forte e a neve continua a cair de forma intensa. A visibilidade é de poucos metros, e a neve afunda-se obrigando a que cada passo seja feito em esforço. Aqui e ali, porém, as vicissitudes do local fazem com que caminhe quase em rocha, trazendo um descanso enquanto me preparo para ultrapassar as duas pequenas corgas que limitam a turfeira das Gralheiras. Não consigo um único vislumbre do Curral da Lomba de Pau e a passagem das corgas é um desafio de equilíbrio e gestão de massas...
Chegado à Chã das Gralheiras o vento empurra as nuvens e o céu surge com um azul intenso. A paisagem abre-se de takl maneira que consigo ver a antena no Borrageiro toda coberta de gelo. Olho para trás e vejo o meu caminho de esforço na neve. Atinjo o ponto mais elevado do dia à vista do Arco do Borrageiro e inicio a descida para a Chã da Fonte, seguindo depois para o Colo da Preza onde tenho o maravilho vislumbre do Vale de Teixeira nas suas vestes invernais.
Pouco depois de passar os teixos à vista da Roca d'Arte, cruzo-me com um montanhista que se dirigia ao Borrageiro. Depressa chego ao Vidoal e tudo á minha volta continua um cenário de neve. Novamente, a Norte, avoluma-se um negrume como uma parede imensa carregada de humidade e neve que logo depois iria compor a paisagem invernal da Serra do Gerês com mais um manto branco. Deixo o Vidoal e sigo a direcção da Chã de Carvalho onde chego com a neve a cair de forma intensa. A descida para a Portela de Leonte é feita ligeira, regressando depois à Albergaria pela estrada percorrida a forma veloz por muitos condutores.
Ficam algumas fotografias do dia...
Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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