terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O Abrigo Pastoril na Serra do Gerês

Em continuação dos meus trabalhos relacionados com o estudo e catalogação dos abrigos existentes na zona dos Carris, li um texto muito interessante de Tude de Sousa incluído na sua obra "Gerez - Notas Etnográficas, Arqueológicas e Históricas" editada em 1927 pela Imprensa da Universidade de Coimbra e reeditada em 2009 pela Câmara Municipal de Terras de Bouro.

É uma descrição interessante dos abrigos e costumes das gentes do Gerês e faço aqui a sua transcrição mantendo o texto original. É uma ajuda para tentar esclarecer o elevado número de abrigos existentes naquela zona agreste da Serra do Gerês.

"O ABRIGO PASTORIL NA SERRA

«Em o derradeiro domingo de Abril de cada ano», depois da missa conventual, sem qualquer convocação prévia porque assim o estabelece o velho uso, e assim o determina o velho Livro que há-de servir para o Rol da Veseira das vacas da freguesia de Santo António do Vilar da Veiga, reunem-se no sítio da Moldeira todos os que têm vacas, para assentarem no dia dos Covais.

O dia dos Covais, ou seja aquele em que os vezeiros do Vilar da Veiga vão à serra percorrer os curreis que lhes pertencem e concertar os fornos e os caminhos, é o acto preliminar da subida dos gados à pastoreação dos altos, a êle nenhum faltando, sob pena de pagarem «de condena os costumes à Vseira que são trezentos réis excepto tendo Veseiro de rés ou gado, ou bôda ou Baptisado, ou cargo de justiça».

É por assim dizer, um dia de folgança, em que desde manhã se vêem passar os lavradores vezeiros, isoladamente ou em grupo, de sachola ao ombro e merenda a tiracolo, até ao ponto de reunião combinado, onde se dividem, voltando mais tarde, depois de colocados alguns torrões, mudadas algumas telhas de canudo nas cabanas e substituídas algumas mariolas, ou reconstruídos alguns lances de carreiros que a invernia arruinou, a reunir-se no curral de Vidoeiro, onde exibem as fartas merendas e borrachas cheias, no melhor capricho de cada um, recirpocamente se oferecendo e em comunidade consumidas.

O dia 1 de maio é o dia oficial de pôr a vezeira na serra, levando cada qual as suas vacas onde o Acôrdo o tiver estabelecido, ficando obrigado o pastor que nesse dia entrar, a levar consigo louça, o alvião, a caldeira, as cordas e outros utensílios à dita vezeira pertencentes.

Cada freguesia tem as suas zonas de pastoreção secularmente estabelecidas, com currais de longe em longe, onde as terras fizeram chã e as pastagens melhor cresceram, servindo êles para estabelecer os centros onde a vezeira, em rotação, se demora, percorrendo-os um a um, durante os dias em que os arredores de cada qual garantem a comida bastante.

Pastadas as terras à volta de um currak, a vezeira, quando o acôrdo assim o manda, desloca-se a seguir para outro, caminhand dos pintos altos e afastados para os mais baixos e próximos, até descer ao povoado quando as ervas entram a secar e o inverno se aproxima.

Da Borrageira - um dos pontos culminantes da serra - para baixo, só depois a Senhora da Abadia (15 de Agôsto) e daí para o eido quando o acôrdo o determina, ficando, porém, ainda lá alguns gados, mas então ao freirio e sem responsabilidades de guarda da vezeira.

Para o estadio em cada curral tem o pastor, como já dissemos, o seu fôrno, ou cabana, onde se recolhe e abriga. São construções tôscas, ligeiras, de pedras sêcas, mal dispostas geralmente, umas revestidas e outras não de torrões, tapando os intervalos. Cobertas umas de telhas redondas, à portuguesa; cobertas outras de torrão, guarnecendo pedras largas e delgadas.

As suas dimensões e capacidade não são grandes: 2 a 2,50 metros de alto, por 2,50 a 3 metros de comprido, com as portas baixas, por onde o homem passe bem curvado e por elas não entre o gado. Três a seis, ou oito pessoas é o máximo que nelas caberão.

A cobertura de uns fornos é redonda, aguçada; a de outros com armação em duas águas.

O pavimento coberto de fetos ou mato meúdo para amaciar a dormida e junto da porta, do lado de fora, em muitos fornos, a pia, ou pias, cavadas na rocha firma, ou móveis, para a comida e bebida do cão, inseparável companheiro e amigo da montanha. A porta de serventia, única, tapada apenas por alguns gravetos de mato ou ramaria, indicadores só de uma linha de respeito.

O travejamento é tôsco, como a construção em que se emprega, e fornecido sempre pelos carvalhos mais próximos, que os há com fartura na serra, brotando e crescendo com espontânea pujança naquela solo abençoado.

Esta habitação e os costumes que descritos ficam, são mais ou menos comuns a todos os povos da serra, e não só ao de Vilar da Veiga, pelo que, a não ser com alguma variação menos, se encontra nos homens e nos usos de Rio Caldo, de Covide, de S. João do Campo e Vilarinho, de Cabril e de Pitões e por aí fora, até termos de suajo e Lindoso, por um lado; até termos de Barroso e Montalegre, pelo outro.

Segue um ensaio de distribuição geográfica:

Perto da Galiza, o curral da Amoreira, gereziano português, mas no usofruto dos gados e dos vizinhos do lado de lá, um dos maiores da serra, de pedra e de torrão.

Na chã do Carvalho e nos Prados Caveiros dois de pedra e terra, pertencentes a Vilarinho e mais dois de pedra e telha em S. Miguel e Albergaria, e outros mais.

S. João do Campo tem o seu forno de pedra e telha no curral de Leonte de Baixo, e outros, de um e outro tipo dispersos.

Vilar da Veiga, quási todos de pedra e telha, tem os fornos dos currais dos prados da Messe, do Conho, de Leonte de Cima e outros, tendo em desuso os da Mijaceira e Vidoeiro, por estarem cortados e devassados agora pela estrada pública para a fronteira, e Rio Caldo tem o Vidoal, de pedra e telha, ao subir de Leonte e antes de chegar à Borrageira.

Esta é a habitação da serra, único refúgio noutros tempos, com alguma pala natural, de quem por lá deambulava, simples caminheiro, contrabandista, ou pastor, hoje já acompanhado pelas numerosas casas da guarda florestal, quebrando a solidão da floresta e das fragas.

O forno dos pastores gerezianos, ligado ao regimen comunalista e pastoril que os seus povos têm, é bem ainda, pelo espírito ancestral que representa, o esoêlho liso da tradição em que aquela gente, sequestrada do mundo, vivia noutras eras a vida de paz, a vida simples de fraternidade e de amos, que os novos tempos e as civilizações lhes vão dia a dia enfrequecendo e quebrando.

Conservá-lo, é conservar e respeitar uma típica característica geral do passado."

Fotografia: um forno pastoril não muito longe da Garganta das Negras, Serra do Gerês (fotografia de 1 de Maio de 2009.

Fotografia: © Rui C. Barbosa

1 comentário:

Mundo da Alma disse...

Muito prazer tive a ler esse pequeno documentário, sobre os abrigos e costumes pastorais.Obrigado por teres publicado. Esse abrigo da foto já me serviu umas vezes também.Abraço.