Poucos dias após a acção de plantação da Serra Amarela e da Serra do Gerês levada a cabo pelo Movimento Terra Queimada, um incêndio devastou parte da Bouça da Mó e parte das plantações feitas uns dias antes. Convidei a Teresa Markowsky a expressar os seus sentimentos sobre o que ocorreu e este texto é o resultado desse convite. Agradeço à Teresa e ao Bernardo pelo texto e pelo poema que se seguem...
A Bouça da Mó é linda! Com as suas nascentes e fontes da
mais pura água, correndo pelas suas encostas, o seu verde exuberante de matas
de carvalhos centenários, azevinhos e medronheiros.
Nunca te cansas de olhar esta beleza, quando sobes a sua
encosta íngreme e contemplas o rio Homem, a Serra Amarela, agora triste na sua
nudez, depois do incêndio de 2010. Vocês nunca compreenderão o que são estas
montanhas, estes lugares, senão caminharem por eles a pé.
Conheci este lugar imediático através de uma pessoa, também
ela imediática, que se encantou deste lugar. Viveu durante largos anos na Bouça
da Mó, numa roulotte e na companhia dos seus cães.
O seu nome era António da Silva Pichel, mas era conhecido
por Pichel, no Gerês chamavam-no Pai Natal mas eu chamava-o de pai Pichel.
Era meu vizinho na casa dos meus pais no Porto e como eles
tinha seis filhos: o Eduardo, a Tilecas, os gémeos Tó e Victor, a Bé e o Jonas,
meu companheiro de brincadeiras.
Ele era grande e forte, tinha um aspecto rude, com farta
cabeleira e longa barba branca e o seu olhar fazia-nos sentir um profundo e
estranho sentimento de solidão e de doçura. O que mais emanava dele era a sua
prodigiosa vivência da natureza com que se modulou e formou o seu carácter. A
natureza e ele viviam esplenderosamente e qualquer coisa que afecta-se essa
harmonia tirava dele agressividade e revolta, pois era uma luta pela vida, de
plena dignidade natural. Nada havia de sobre-humano nele, que não fosse o facto
admirável de um homem ser capaz de lutar e de sobreviver para além do que
parece ser o legítimo das suas forças.
Ele era professor de ginástica e daí veio a sua
extraordinária força física.
A sua casa era diferente de todas as outras. Grandes carvalhos,
eucaliptos e pinheiros cobriam-na a toda a volta e daí resultava que os
pássaros cantavam mais alto na nossa rua do que em qualquer outra. Chegou a
trazer do Gerês um cavalo garrano que muitas vezes cheguei a ver a espreitar da
janela do rés-do-chão. Se lhe perguntavam como era possível deixar o cavalo
estar dentro de casa ele dizia que este sabia se comportar melhor do que muitas
pessoas e que nunca fazia as necessidades lá dentro. Lá dentro também viviam o
Negro, um grande cão preto raçado de molosso, uma rapozinha, e mais uns três ou
quatro cães que o acompanhavam para todo lado.
Ele foi um homem da natureza e como a natureza, teve alguns
aspectos selvagens.
Poucas vezes, no nosso tempo, terá aparecido um homem tão
puro, em que a natureza e a humanidade estivessem, frente a frente, tão
verdade.
Lembro-me da sua grande mão sacudindo-me gentilmente a
cabeça, quando me via preocupada ou triste. Com ele experimentava sempre um
profundo e estranho sentimento de segurança.
Até então, jamais vira tão bondosos olhos. Não eram olhos
suaves e gentis, mas sim bondosos e fortes. Ele dizia-me: ”Teresa, um homem
pode ser destruído, mas não derrotado. Parei há muito tempo de fugir e agora
jamais ninguém poderá fazer com que eu fuja. Porque quando a fuga é longa, não
há sítio nenhum para onde possamos fugir. Quando alguém compreende isso,
torna-se um homem e aguenta qualquer embate. Tu também hás-de aguentar o
embate, um dia, mas não por enquanto. Estás ainda muito fraca.”
Quando recebia alguém na sua casa, dizia: “Olá, tu és bem
vindo para entrares, se gostares de partilhar.”
A sua razão de viver identificava-se com as suas relações,
ajudando quem mais carecia das injustiças e solidão e com a terra onde vivia.
Foi no coração do Gerês, que encontrou a paz e equilíbrio e
onde afincou as suas raízes ao solo, para poder pensar e sentir mais
profundamente os mistérios da vida e as forças vivas que o envolvem. Aí
aprendeu e desenvolveu uma relação de pleno respeito com todas as criaturas da
terra, e um grande sentimento de fraternidade com o seu semelhante.
Para mim o Pai Pichel era um sábio. Ele sabia que o coração
do homem afastado da natureza se torna duro; sabia que a falta de respeito para
com o que cresce e vive, depressa conduz também à falta de respeito para com o ser
humano. Por isso mantinha ele os jovens sob a mansa influência da natureza.
“O que é a vida?”perguntava-me ele. ”A vida é algo muito
simples. É o brilho do pirilampo na noite. É o sopro do vento nas árvores. É a
sombra que corre na erva e se perde ao fim do dia."
Quando morreu gostaria de o ter enterrado naquele lindo
monte virado para o rio Homem, na Bouça da Mó. Era esse pedaço de terra que ele
amava mais do que o resto do mundo.
Nos dias 24 e 25 de Março o Movimento Terra Queimada,
realizou um evento que consistia em fazer bolas de sementes de árvores autóctones e lança-las pelos montes queimados da Serra Amarela. Como se
defrontou com os problemas derivados da seca e consequente falta de chuva,
resolveu por as bolas nas encostas perto da Bouça da Mó.
O agradecimento foi que dois dias depois, um grande
incêndio, ateado por mãos criminosas, deflagrou na Bouça da Mó.
Na nossa dor e revolta, eu e o meu marido, Bernardo
Markowsky, escrevemos este poema.
A mó partida no chão
no meio das cinzas pesadas,
arrefecidas sobre o brasido
das coisas logradas ou perdidas.
A mó da vida parada,
em vez do pó da farinha
destroços e ossos negros
erectados para o céu azul,
dedos que apontam as riscas.
A mó da vida parou,
o ventre da terra secou, endureceu.
Um dia vamos humedecê-lo
com as lágrimas nossas.
O quê, meu amigo?
Que bárbaros andam à volta
cegos para a beleza,
surdos para o som das copas,
encobertos em cobardia?
Onde fica o espírito desta comunidade
que matou a besta faminta
em devorar toda a floresta?
Vieram com paus e enchadas,
homens, mulheres e crianças,
defender o que era deles,
o bosque sagrado que continha
o incrível cheiro da terra,
os espíritos dos antigos.
O juízo deste povo desvanece,
afogando-se como a sua aldeia,
está a cair em escombros, em pedaços
como a serra, herança pedregosa?
Mas mesmo a partir do mais negro
ascende uma fagulha da vida,
move-se no caminho debaixo da terra
e forma o caminho das águias.
Todos os verdadeiros caminhos são comuns.
A águia desassossegada
está chamar por ti, por mim:
O sagrado tem caule e tem raízes
é uma presença muda e vegetal
folhas – línguas discretas.
A sombra do silêncio a revestir
os gestos rituais dos ramos,
que são braços actuais
a receber o tempo que há-de vir.*
* Os últimas linhas são de Raúl Brandão
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