terça-feira, 25 de outubro de 2022

"O engenheiro que brincava com o fogo"

 


Um interessante artigo da autoria de Rui Cardoso, publicado no jornal Expresso a 27 de Abril de 2020 sobre José Moreira da Silva, segundo director do Parque Nacional da Peneda-Gerês. O artigo original pode ser acedido aqui.

José Moreira da Silva (1923/2007) não podia ter chegado à direção do Parque Nacional da Peneda-Gerês em pior altura. O seu antecessor, José Lagrifa Mendes, acossado pela contestação local e deixado cair pelo poder central, acabara por se suicidar em 1975. Tinha uma missão impossível: dar continuidade à lógica de protecção da natureza consagrada na lei 9/70, da qual resultara a criação do Parque em 1971, restabelecer a autoridade e dialogar com os residentes.

Foram cinco anos decisivos, exercendo sempre funções como “encarregado de direcção”. Chegara com fama de direita, mas foi afastado em 1980, após a vitória da coligação conservadora Aliança Democrática (PPD/CDS/PPM).

Residindo no Porto, mas trabalhando no Gerês, percorreu milhares de quilómetros, umas vezes com motorista, outros ao volante e conduzindo sempre tão depressa que a Guarda Republicana lhe passou a chamar “o engenheiro Ascari” … [Alberto Ascari, bicampeão do mundo de Fórmula Um, morto em 1955]

Tempos de cólera

Estava nos Serviços Florestais desde 1950 e conhecia a lenda negra destes. Com a queda da ditadura seguiu-se no Gerês um processo caótico onde se misturavam desejo de liberdade, rejeição das condicionantes inerentes à atividade em área protegida e pressões de grupos de interesses.

Em 1975 houve reuniões muito tensas. Em Adrão (Castro Laboreiro), as coisas podiam ter acabado muito mal para o meu pai”, conta Isabel Moreira da Silva, também engenheira florestal. Uma das razões pelas quais o Gerês estava em brasa prendia-se com prepotências da Guarda Florestal para com os habitantes e os trabalhadores eventuais.

Símbolo ainda vivo da imposição de um modelo exógeno de desenvolvimento, a submersão da aldeia de Vilarinho das Furnas pela albufeira homónima em 1971. Outro conflito envolvia o Grupo dos Amigos do Parque, constituído em parte por pessoas afetas ao antigo regime com diversos privilégios, incluindo um campismo em plena reserva biogenética. Entretanto, o executivo de então da Câmara de Terras do Bouro tentava impor uma nova estrada para a Portela do Homem através da preciosa Mata da Albergaria.

Águias de Espanha

Os conflitos foram-se diluindo e Moreira da Silva lançou-se num processo de dinamização do parque, praticando um serviço público profissional, sem prepotências nem favores. Francisco Rego, docente do Instituto de Agronomia que o conheceu bem, conta que um dia mandou chamar um guarda-florestal que era acusado de ter abatido uma águia de Bonelli.

– Ó sr. engenheiro, eu era lá capaz de fazer mal a uma águia do Parque…

– Então?

– É que aquela não era das nossas, é das que vêm de Espanha…

Tentou que o parque fosse visto com respeito por quem lá entrava, os residentes se sentissem honrados por o ser e os cientistas ali afluíssem para estudar a riqueza natural. Organizou um curso para operadores de escavadoras para aprenderem a reconhecer vestígios arqueológicos. Em 1978, pediu ajuda a Oliveira Fernandes da Faculdade de Engenharia do Porto para instalar energias renováveis numa Casa da Guarda. “Queria ter casos exemplares para mostrar aos residentes que pertencer ao parque não significava apenas restrições”, conta Isabel Moreira da Silva.

Domesticar o fogo

Tendo descoberto os trabalhos do californiano Edwin Komarek levou-o ao Gerês, onde confrontou o americano com o que achava serem os efeitos perversos das queimadas feitas pelos residentes.

– Aqui os pastores queimam demais…

– O que é que o faz pensar que seja demais?

– Pois, de facto, nunca tinha olhado para isso assim…

Nascia a ideia do fogo controlado como técnica de ordenamento e prevenção, juntando o saber empírico dos Florestais a investigadores da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, como Francisco Rego. Esta visão presidiria, mais tarde, ao projecto de reflorestação do Marão (ardido em 1985). Já reformado, ajudaria a fundar, em 1992, a Forestis, associação nacional dos produtores florestais.

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