Desde que comecei a visitar o Parque Nacional da Peneda-Gerês e a partir do momento em que entramos neste mundo mágico de Natureza e presença humana, que procuro saber cada vez mais sobre as suas características, pequenas curiosidades e histórias de definem estas paisagens entre o Planalto de Castro Laboreiro e o Planalto da Mourela com a sua paisagem montanhosa moldada pelo Homem.
Recordo as primeiras visitas ao Soajo e a imensidão dos vales na passagem para a Peneda, uma paisagem que na altura seria das mais selvagens do país e que ainda nestes dias me proporciona uma sensação de entrar em algo único em Portugal.
Nessas viagens nas quais se vai conhecendo um pouco mais do território, sempre me intrigou o momento físico no qual «passava» da Serra de Soajo para a Serra da Peneda. Aquele instante que tão bem é definido noutros limites, aqui sempre me trouxe a curiosidade da sua definição. Por vezes, esta definição não é tão fácil, pois para mim a serra é sempre algo (numa primeira aproximação) definida à distância e temos de aprofundar um pouco mais para conseguir estabelecer limites que a distância não nos deixa definir.
Nos últimos anos, tem surgido um «debate» interessante sobre estes limites, mas que rapidamente se torna numa troca de argumentos muito pouco esclarecedora quando entramos no palco do insulto e da exaltação. O debate é ainda menos esclarecedor quando surgem no éter opiniões que são apenas caixas de eco sem sentido crítico, reflectindo apenas a sua postura de analfabetos funcionais sobre o tema.
O trabalho que hoje aqui vos apresento faz parte de um estudo do Paulo Costa que será publicado em cinco partes e que somente pretende esclarecer-nos um pouco acerca desta temática, ajudando a compreender um pouco mais a dinâmica do território a Norte do Rio Lima. Quem nestas palavras escritas vir algo mais do que isso, não vai compreender o objectivo destas linhas e não será merecedor de consideração num debate que posteriormente possa surgir noutros espaços no éter.
Este texto representa apenas, e nada mais do que isso, uma visão sobre o assunto. Em tempos, convidei outros para o fazerem sobre o mesmo tema aqui neste blogue; infelizmente, não houve vontade para isso...
Fica o texto do Paulo Costa...
Serra do Soajo ou Serra da Peneda?
- Notas para aprofundamento de estudo -
A – INTRODUÇÃO
Menciona a história que William Shakespeare (1564-1616) escreveu algumas das suas maiores e melhores obras durante um período de quarentena, que cumpriu na sequência de uma série de pragas que assolaram Londres e Inglaterra entre o fim do século XVI e o século XVII, sendo a Peste Bubónica uma das mais letais, matando um terço da população da cidade britânica e tendo efeitos semelhantes no resto da Europa e outras partes do mundo.
Esta epidemia ficou comummente conhecida como Peste Negra, não apenas devido à sua taxa de mortalidade, mas sobretudo em virtude das manchas negras que fazia surgir na pele dos infectados. A Peste Negra terá atingido o seu auge na Europa entre 1347 e 1351, mas foram surgindo novos surtos ao longo do tempo na Europa, que perduraram até ao início do século XX. A Peste Negra foi uma das maiores pandemias da História, se não mesmo a maior.
Terá sido, precisamente, durante um desses surtos e num período de confinamento, que Shakespeare terá escrito, nomeadamente, “King Lear”, “Macbeth” e “António e Cleópatra”.
Como é óbvio não pretendo, de forma alguma, comparar-me com tão enorme vulto da literatura mundial, mas a situação actual de pandemia traz à memória aquele exemplo e, na verdade, foi também a situação de isolamento social e os grandes constrangimentos que se me depararam na minha vida profissional, que vieram a ditar que me lançasse à obra em relação a um tema que me suscita muita curiosidade há já cerca de três décadas.
Não pretendo apresentar aqui um trabalho verdadeiramente científico, pois faltam-me, entre outras virtudes, a “bagagem” e o lastro académico.
De todo o modo, se não posso criar um “Hamlet”, nada me impede que faça uma espécie de “Omelete”, ainda que eu possa não ter queda para a cozinha.
Posto isto, perante a minha ousadia e atrevimento, fico na expectativa que se contraponha a vossa paciência e generosidade, pois a minha impreparação, traduzida na abordagem muitas das vezes superficial de algumas componentes deste trabalho, acabaram, ainda assim, por não me impedir de aqui trazer um “coçar de cabeça” relativo a tão apaixonante temática.
Face às confessadas fragilidades que me impedem de elaborar um estudo de maior rigor científico, também não tenho grandes expetativas em vir a reunir consensos, ou tampouco um aplauso da parte de quem me possa vir a ler.
Porém, uma coisa é certa, procurei ser honesto e objectivo na feitura deste trabalho
Dito isto, e porque tenho essa liberdade, passo a aventurar em contar-vos o que descobri e o que penso acerca da querela respeitante ao tema acima enunciado, aproveitando a maré para aqui trazer algumas curiosidades que, creio, gostareis de reencontrar, ou de tomar conhecimento.
B - O Surgir do Espanto
Romanceando um pouco, direi que a minha história de namoro” com o tema que aqui me traz terá começado num dia, agora já distante, em que me encontrava junto ao marco geodésico denominado “Peneda”, que costuma estar referenciado como pertencente à serra do mesmo nome, ou seja, “Serra da Peneda”, constituindo a sua maior proeminência.
Dei então por mim, entre um copo de tinto e uma bucha de pão com chouriço, a questionar-me acerca do seguinte: Porque será que o cume do “Alto da Pedrada”, com os seus 1416 mts, que está ali “à mão de semear”, constitui o ponto mais alto da “Serra do Soajo”, e o lugar onde me encontrava era considerado como sendo parte integrante da “Serra da Peneda”?!
Na verdade, entre o local onde descansava e o “Alto da Pedrada” (que se constitui um prolongamento da proeminência do denominado “Outeiro Maior”), nada, aparentemente, justificava, quer em termos de acidentes geográficos, quer de distância (são cerca de 3 kms), que pudesse estar na presença de duas serras distintas.
Sendo incontroverso que o Alto da “Pedrada” é o ponto mais elevado da “Serra do Soajo”, que lógica terá que o cume denominado “Peneda” esteja integrado na dita “Serra da Peneda”?! É que entre um cume e outro – apenas – existe, em traços gerais, uma zona de vale planáltico correspondente à zona de “Lamas de Vez” (local da nascente do rio Vez).
Assim, de um lado ao outro o que se verifica existir é um longo e largo vale planáltico, que em tempos terá albergado um glaciar, desprovido de qualquer acidente geográfico digno ou susceptível de justificar uma qualquer diferenciação geofísica no que respeita à respectiva nomenclatura serrana.
Ora, uma vez que não encontrei a resposta para tal questão no fundo da garrafa de tinto que então desbastava, ela passou a acompanhar-me na mochila do pensamento, ainda que sujeita a períodos de maior ou menor hibernação.
C – Breve análise geomorfológica do espaço em questão
I - Tal como acima mencionei, não encontro motivos de ordem geológica, ou quiçá melhor dito, de ordem geomorfológica, para que seja traçada uma qualquer fronteira, ou demarcação, no espaço geográfico vindo de analisar.
Todavia, existem na vasta área montanhosa que rodeia aquele planalto, vários acidentes geográficos que assumem verdadeira relevância, desde logo toda a extensão do percurso do rio Vez, que faz uma espécie de “U”, virado à esquerda, a partir do momento em que este ganha maior declive (sensivelmente a partir da “Branda de Real”), até chegar à Vila de Arcos de Valdevez, bem como os vales dos rios Ramiscal, do rio Pomba e o rio Castro Laboreiro, os quais de algum modo delimitam ou ganham expressão geográfica naquele espaço em termos de, potencialmente, dar lugar a eventuais “fronteiras”.
De todo o modo, esses acidentes geográficos não possuirão, à primeira vista, o condão de estabelecer uma qualquer clara demarcação territorial relativamente aos seus territórios adjacentes, pois que nos surgem à vista como um único maciço montanhoso.
II - No entanto, as conclusões já poderão ser outras de um ponto de vista – digamos – científico. A este propósito encontra-se um resumo muito interessante retirado do site do PNPG que, por comodidade, aqui reproduzo parcialmente:
“A área do PNPG integra-se no Maciço Hespérico ou Maciço Ibérico, que constitui uma das unidades estruturais da Península Ibérica e um segmento da Cordilheira Varisca da Europa. A edificação desta estrutura, pela actuação de forças compressivas, inicia-se no Devónico, há cerca de 380 Ma (milhões de anos), tendo-se prolongado até ao Pérmico (280 Ma) - orogenia Hercínica ou Varisca.
O Maciço Ibérico apresenta-se zonado, definindo-se, habitualmente, cinco zonas características paleogeográficas, tectónicas, magmáticas e metamórficas distintas.
[…] Assim, na área do Parque, à semelhança de toda a região Noroeste de Portugal, predominam rochas graníticas [que se] instalaram na crusta terrestre no decurso da orogenia Varisca. As rochas graníticas mais antigas (aprox. 320-310 Ma) afloram na Serra do Soajo, Serra Amarela, planalto de Castro Laboreiro e no extremo oriental da Serra do Gerês. Na restante área (Serra da Peneda e Serra do Gerês) afloram os granitos mais recentes que constituem um mesmo maciço intrusivo (maciço granítico de Peneda-Gerês), com cerca de 297-290 Ma de idade. Estes granitos destacam-se perfeitamente na paisagem dado que conferem àquelas serras um relevo mais vigoroso e desnudado do que a área circundante.
No NW do PNPG, muito próximo do seu limite, são observáveis indícios claros de glaciarismo na Serra da Peneda, principalmente ao longo do alto vale do Rio Vez. A ocorrência de blocos erráticos graníticos […] sobre uma vertente pouco inclinada de xisto é uma das melhores evidências. Estes blocos, outrora deslocados das áreas graníticas pela massa de gelo, repousam agora no substrato xistoso, depois do glaciar ter derretido.”
Ou seja, aquela zona do conjunto serrano ali designado como “Serra da Peneda”, aparentará uma maior juventude, apresentando um relevo mais caótico (caos de blocos), com paisagens mais acasteladas, e diferenciadas relativamente a outras zonas serranas circundantes.
Na verdade, existe uma vasta zona que congrega, de uma maneira geral, cumes mais escarpados e caóticos, por contraponto com a zona montanhosa que corresponde ao dito altiplano da nascente do Vez, delimitada a sul pelo “Alto da Pedrada” e, sensivelmente a norte/poente pelo cume até aqui identificado como “Peneda”, dotada com relevos bem mais suaves.
Também parece reencontrar-se essa “suavidade” mais a Nascente, em toda a zona correspondente ao planalto de Castro Laboreiro.
III - Todavia, voltando à “vaca fria”, é inequívoco que os dois preditos cumes (“Pedrada” e “Peneda”) situam-se nesta zona de relevos mais suaves (mais antigos). Ou seja, o pico “Peneda” não está localizado naquela zona mais jovem e de relevos mais pronunciados, motivo pelo qual não terá sentido que, pelo menos essa zona em particular, seja alvo de qualquer separação de nomenclatura serrana relativamente à zona do “Alto da Pedrada”.
Dito de outro modo e em conclusão preliminar, em termos meramente geomorfológicos, fazendo ambos os cumes parte de um mesmo conjunto, aquele denominado “Peneda” deverá integrar a “Serra do Soajo”, pois se o “Alto da Pedrada” é, indiscutivelmente, o ponto mais elevado desta serra, e o cume “Peneda” (mais baixo que aquele) integra o respetivo conjunto serrano, não existe um motivo – digamos – científico, para que façam parte de serranias distintas.
IV – Por sua vez, aquela que poderá constituir essa zona distinta, caracterizada pela sua caótica juventude (a fazer lembrar a “Serra do Gerês”, que será sua contemporânea em termos de idade geológica), desenvolve-se por séries de cumeadas, uma espécie de pequenas cordilheiras, paralelas entre si e todas com a orientação norte-sul.
Assim, mencionando as mais relevantes, temos uma “cordilheira”, ou cumeada, situada a Nascente da zona do altiplano do Vez, ponteada pelos escarpados cumes da “Rajada”, “Penameda” e “Outeiro Alvo”. Depois encontramos uma outra cordilheira, a nascente desta, onde encontramos desde a “Fraga das Pastorinhas” (a sul), que englobará a “Fraga da Nédia” (também iria jurar que já lhe ouvi chamar “Cebola”), cordilheira que “sobe” depois, entre outros cumes, a “Águas Santas”, “Veiga”, “Matança” e à “Fecha”.
Por último, ainda mais a nascente e abaixo da zona do planalto de Castro Laboreiro, é ainda possível encontrar zonas bastante escarpadas, como seja a “cordilheira” das Infantas/Bico do Patelo e, logo ali ao lado, a oriente, como que uma última resistente ao eterno combate com a erosão, a “Fraga de Anamam” (ou Anumão/Numão).
V - Por sua vez, aquele planalto de Castro Laboreiro - também ele – reúne as características geomorfológicas idênticas àquelas das referidas áreas que circundam a mencionada área central/oriental, caracterizada por relevos mais planos (mais antigos).
Assim, com a mera observação, fica-se com a certeza de que a zona central do conjunto serrano em questão será mais jovem do que as áreas que a circundam.
Efetivamente, essa zona central apresenta-se bem mais agreste, preenchida por caos de blocos, quando comparada com a – quase – tranquila área adjacente, mais plana esta por força de uma mais antiga exposição aos elementos e, entre eles, entre esses factores de erosão, pontificarão as glaciações que a trabalharam.
Efetivamente, também se perceciona que a mais recente época glaciar que “castigou” a zona de “Lamas de Vez” e que ali causou os seus efeitos erosivos até, sensivelmente, aos pés da “Branda da Aveleira” e da “Branda do Furado”, terá também contribuído para a diferenciação geográfica nas zonas onde o glaciar foi actuando com maior “peso”.
Mais, essa glaciação, muito provavelmente, de acordo com informações que se apresentam lógicas e fidedignas, terá mesmo abarcado, por exemplo, a zona do vale do rio Peneda.
Atrevo-me mesmo a especular e é provável que algum trabalho científico já o tenha mencionado, que também o espaço onde se reúnem as várias linhas de água que, a montante, vêm depois a criar o rio Ramiscal, aparenta constituir também uma bacia glaciária e uma espécie de derivação do glaciar que “nasceria” no sopé do “Alto da Pedrada”, ali ocupando, nomeadamente, a zona de Lamas de Vez.
VI - Com tudo isto que venho de expor, pretendo defender, voltando à ideia original, que não se constata uma justificação geomorfólogica para que possam subsistir na concreta zona montanhosa sob estudo, ou seja, no planalto de Lamas de Vez, duas serranias distintas.
No entanto, abstraindo dessa zona em particular, na hipótese de se equacionar a existência de duas serras, então talvez se deva ponderar a seguinte hipótese de trabalho:
a) Uma zona serrana mais antiga, nascida com os movimentos orogénicos ocorridos há 380 a 320 milhões de anos. Essa zona abrangerá, a sul, a Vila do Soajo, subindo a Norte ao “Alto da Pedrada”. Ela estende-se depois a Poente (Sistelo, Carralcova, Cabana Maior), abrangendo, a Sudoeste, a montanha do Gião. A Norte será delimitada pelo “Monte do Fojo”, em cujo sopé onde se encontram, por exemplo, a Branda de Vale de Poldros, ou a da Aveleira, junto ao vale do rio Vez.
Para o lado Nascente essa zona antiga prolonga-se para o “Batateiro” e “Branda da Bouça dos Homens”. Daí, acompanhando o rio Pomba, ela “desce” abrangendo, sucessivamente, as localidades da Gavieira, Roussas, Adrão e Tibo, continuando até à Várzea e, daí, à foz do Rio Castro Laboreiro, na sua união com o Rio Lima, na actual Albufeira de Lindoso.
b) Uma zona serrana mais recente, talvez com os referidos 290 milhões de anos, ou menos, que abrange uma zona mais central do maciço, situada entre o rio Pomba/Peneda e o rio Castro Laboreiro. Ela terá uma extensão a Nascente à cumeada onde pontuam as “Infantas” e o “Bico do Patelo”, prolongando-se a Sul até à “Fraga das Pastorinhas”, onde predominam os caos de blocos e os alcantilados. Ou seja, corresponderá, genericamente, à zona a que o site do PNPG, no trecho acima transcrito, apelida de “Serra da Peneda”.
VII - Esta segunda zona, mais jovem, surge-nos assim, genericamente, como que abraçada pela sua zona envolvente, a zona “mãe”, caracterizada esta por relevos mais suaves em virtude de serem mais antigos e, como tal, por mais tempo sujeitos à “coça” do tempo.
Ora, a existirem duas serranias, a separação entre ambas passaria por essa clara diferenciação de idades em termos de formação orogénica, e que é mais claramente visível na linha correspondente ao Rio Pomba.
Assim, a existirem duas serras naquela zona montanhosa, a mais antiga corresponderá à “Serra do Soajo” (onde se integram quer o “Alto da Pedrada”, quer o “Alto do Pedrinho/Peneda”) e a mais jovem corresponderá à “Serra da Peneda”.
Essa é uma das poucas hipóteses que, humildemente, perspetivo como pertinentes para a concretização de uma qualquer divisão geomorfológica para o espaço de montanha aqui em apreço.
No entanto, outra coisa, bem diferente, e que deverá ter-se sempre presente, é o do – digamos – baptismo histórico e cultural daquele espaço serrano.
Em relação a essas circunstâncias antropológicas, chamarei de seguida à lide a “questão dos nomes”.
D – A Questão dos “Nomes”
I - Face ao que acabo de explanar, firmo aqui a minha convicção da inexistência de uma possível fronteira geográfica na zona do vale do Alto Vez e dos cumes mais altos que o delimitam (“Alto da Pedrada” e “Alto do Pedrinho/Peneda”). Isto porque não se objectivam motivos geomorfológicos, e mesmo lógicos, para a existência da dicotomia Serra do Soajo/Serra da Peneda naquele local concreto. Posto isto, passo a abordar a questão do baptismo, ou baptismos, serranos aqui em causa. Ou seja, quem primeiro nomeou aquele espaço, ou espaços, e quem teria, eventualmente, o “direito” a fazê-lo.
II - Será pacífico que o nosso belo planeta azul terá cerca de 4,5 mil milhões de anos e que desde a sua origem já passou por diversas fases até nos apresentar a atual configuração, nomeadamente em termos de relevo. Como sabemos e já dizia o ilustre poeta Luís de Camões, todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades …
Por sua vez, o planeta e as muitas partes que o compõem, não foram alvo de um qualquer baptismo não apenas aquando do respetivo surgimento, quer em 99,9% da sua existência, uma vez que, tanto quanto é dado a saber, não existia quem o pudesse fazer.
Foi a espécie humana que ao atingir a fase em que passou a ser denominada como sapiens, há cerca de 2 milhões de anos, terá atingido capacidades de utilizar a linguagem de um modo mais complexo.
Parece certo, pelo que pude ler, que o homo habilis e o homo erectus teriam já desenvolvido uma assinalável capacidade de comunicação e que, bem mais recentemente, os “primos” dos homo sapiens, os neandertais (que com este coexistiram ainda por muitos séculos), também já teriam desenvolvido significativas capacidades de comunicação, produzindo sons semelhantes aos do homem moderno.
De todo o modo, “o grande salto em frente” só ocorreu há cerca de 40 mil anos, quando os seres humanos modernos desenvolveram uma linguagem muito semelhante à nossa.
Desde que existe a capacidade de comunicação, passou, por exemplo, a ser também possível dispor da mui útil capacidade de referenciar lugares. Ou seja, passou a ser possível concretizar nomeações, “batismos”, nomeadamente de índole geográfica.
Por sua vez, com essa capacidade vieram a surgir, respectivamente, a toponímia, a oronímia e a corografia em geral.
Sendo, na sua origem, a espécie humana nómada, e encontrando-se sempre em busca de recursos (a agricultura que os viria a sedentarizar só surgiria muito mais tarde, cerca de 10.000 anos a.c, na zona do chamado “Crescente Fértil”), sobretudo de ordem alimentar, e também na procura de lugares mais acolhedores face às sucessivas alterações climáticas (como seja a última idade do gelo que terminou há cerca de 10.000 anos), normal seria que esses humanos procurassem explicar e nomear os lugares que percorriam, bem como aqueles onde se iam fixando, ou para onde se dirigiam. Foi-se criando, assim, uma nomenclatura que vinha a ser comum relativamente a todos os que partilhavam um qualquer grupo, ou que por ele se deixava “contaminar”.
Quando os caçadores recolectores se deslocavam, compreende-se que soubessem o nome do local de onde partiam, bem como daqueles por onde passavam e o daquele para o qual se dirigiam. Assim, além do mais, o baptismo dos lugares facilitava a comunicação e a troca de informações. Diriam: Vamos para o sítio “tal”, sítio esse que, por certo, adquiria o seu nome em função, muitas das vezes, de algum tipo de característica local, ou de algum acontecimento ali ocorrido em momento anterior.
Parte desses nomes iriam ficando memorizados, sedimentados, situação que, no entanto, não ocorreria de um modo geral, uma vez que o nomadismo das tribos da espécie humana seria muito dinâmico e sujeito, por exemplo, às mencionadas alterações climáticas que pontualmente se verificavam. Assim, haveria muitos locais a que se deixaria de regressar por força das condições adversas (e cujos nomes acabavam por cair em desuso) a que passavam a estar sujeitos, a par de outros que, entretanto mais acolhedores, passavam a contar com a presença humana.
Contra a eventual consolidação dos nomes, da toponímia, contribuiria - também - o facto de a escrita não existir por esses tempos, pelo que apenas a forma oral permitiria algum tipo de divulgação.
III - O advento da forma escrita, esse momento que nos fez saltar da pré-História, para a História, só terá acontecido há cerca de 5500 anos. Na verdade, quem estuda essas matérias informa-nos que a escrita terá surgido, sensivelmente, em 3500 a.c., na zona da já mencionada Crescente Fértil, mais concretamente, na Suméria. No entanto, verdade se diga que estudos mais recentes, e ainda em consolidação, permitem pensar que a escrita possa ter surgido em momento anterior.
Ora, com o surgimento da escritura passou a ser possível firmar os nomes e retransmitir, sem margem para maiores equívocos e até à posteridade, os “baptismos” dos locais onde se habitava, bem como de todas as referências geográficas com algum tipo de importância.
Por então já os espaços terrestres, aqueles que eram do conhecimento da espécie, tinham os seus nomes, a sua nomenclatura. Contudo, esses nomes podiam ver-se sujeitos a vários tipos de mudanças, mormente por efeitos da evolução da língua, e muitas vezes por efeito das invasões que, entre outras consequências, acarretavam novos baptismos nas línguas dos povos invasores.
De todo o modo, parte significativa dessas alterações faz parte da dinâmica intrínseca das línguas, da evolução da correspondente escrita, ocorrendo até em virtude de incomuns e desnecessários delírios que conduzem, por exemplo, a malfadados “acordos ortográficos”.
E – Serras, Montes e Montanhas
I - Ao dar uma olhadela à tão acessível e sabichona Wikipédia, lê-se ali que: “Serra (do termo latino serra) é o conjunto de montanhas e terrenos acidentados com fortes desníveis e muitos picos, que se assemelha, portanto, a uma serra (ferramenta) […] Uma serra distingue-se de um maciço por possuir montanhas singulares em vez de agrupadas. A serra é, portanto, um subconjunto de montanhas que está dentro de outro conjunto maior e mais extenso, ao qual se dá o nome de cordilheira.”
A mesma Wikipédia explica também que Montanha ou monte (do latim montanea, de mons, montis) é uma forma de relevo terrestre. Uma sequência de montanhas denomina-se cordilheira. Uma montanha tem imponência e altitude superiores a uma colina, embora não exista uma altitude específica para essa diferenciação.
O site Ciberdúvidas explica que: 'Serra é uma grande extensão de montanhas ligadas umas às outras. Montanha é um monte muito alto e extenso. Portanto, não confundir a grandeza dos dois acidentes geográficos.'
Lido isto, a distinção entre estes acidentes geográficos fica um pouco menos embrulhada, não deixando, ainda assim, de ser um grande embrulho!
II - Penso que a zona em questão, ou melhor, a serra (ou serras) aqui em causa, qualquer que seja o nome de baptismo que se venha a revelar o mais correto, é constituída por várias montanhas, as quais poderão também ser designadas como montes.
A este propósito do subtema Monte ou Montanha, registos antigos existem que comprovarão que também a serrania aqui em causa possui, no seu interior, os ditos montes (ou montanhas). Essa situação, aliás, será extensível a todas ou, pelo menos, à maioria das serras.
A este propósito, refiro aqui que o site Garcias, que constitui uma compilação muito rica de todas as serras portuguesas, menciona que a Peneda é uma montanha da “Serra do Soajo”.
Também curiosa é a publicação intitulada “Hints to travellers in Portugal”, de John Murray e Albert Street, de 1853, no qual se recomenda uma visita à montanha de Outeiro-Maior.
Bem mais antiga é a menção que ressalta da “Carta de Foro de Monte Leboreiro quod vocatur Padron, de D. Afonso III, datada de 15 de Janeiro de 1271”, ou seja, a referência ali feita ao “Monte Laboreiro”.
III - Também já numa publicação de 1839, com o extenso nome de; “Taboa – Geográfica – Estatística Luzitana ou Dicionário abreviado de todas as cidades, vilas e freguesias de Portugal, com sua população, legoas de distância, correios e feiras principais; e juntamente de seus rios, correios, montanhas, cabos, portos &”, relata-se o seguinte: ”Gaviara ou Gavieira: notável serra, ramo do Marão, M. [Monte] perto de Castro Laboreiro: o seu píncaro tem 7.380 pés de altura sobre o nível do mar” (Feita a devida conversão corresponde nada mais nada menos do que 2.249 mts!).
Ali se acrescenta logo de seguida: “Gavieira – F. M. Cm de Monção, Cc. de Soajo, sit. Na serra de seu nome.” Ou seja, se não entendi mal, num parágrafo a Gavieira surge como uma serra e no parágrafo seguinte vem a ser uma localidade na “Serra do Soajo”!
No entanto, esta enunciação não é tão contraditória quanto isso, pois, como explanarei mais adiante, o “Alto da Pedrada”, ponto mais elevado da serra do Soajo, também foi conhecido em tempos por “Gaviarra”, sendo que esta é, como bem se percebe, uma outra forma de se escrever Gavieira.
Por sua vez, num trabalho de 2003, a Professora Elza Maria Gonçalves Rodrigues de Carvalho, que citarei em diversas ocasiões neste meu trabalho, surgiu a terreiro com uma obra que teve por título: “Na serra da Peneda, elemento integrante dos Montes de Laboreiro” – e ao fazê-lo citava a obra de Pintor, Padre M.A. Bernardo, “O Reencontro do Vez, Onde foi?” in Revista Independência, Separata nºs 17 e 18, Sociedade Histórica da Independência de Portugal, pp. 29-30.
IV – Ainda a propósito da palavra “Gaviarra”, será interessante, mencionar aqui o trabalho de Pedro Augusto Ferreira (1833 - 1913), bacharel formado em Teologia, o qual ali referiu que os habitantes de certos concelhos do Minho, mais próximos da Galiza, nomeadamente os de Monção e Melgaço, costumavam denominar-se gaviarras, porque ali abundariam os gaviões,
Refiro, na oportunidade, que igualmente credível é a teoria que nos refere que o nome “Gavieira” derivará do facto de os primeiros habitantes daquele local terem sido originários da freguesia de Gave (no concelho de Melgaço).
Já em relação à Vila de Soajo refere aquele Autor in: “Soajo: V. e F. M. Cm. De Monção, sit. em paiz desabrido na serra da Gavieira" "[…] ainda aqui se conservão alguns costumes assalvajados. Os h. do Cc de Soajo, e Castro Laboreiro; e de algumas Povoações da serra da Estrella, podem ser chamados os Laponios de Portugal."
Já agora, só por mera curiosidade, ensina-nos o dicionário que Laponio será: 1. [Depreciativo] Que ou quem vive no campo ou numa zona rural.
2. [Depreciativo] Que ou quem não mostra delicadeza nem cortesia; que ou quem é grosseiro ou malcriado.
Ora, não será caso para os bom povo Soajeiro incomodar-se com tais aleivosias, pois o dito autor, Fr. Francisco dos Prazeres Maranhão, também chamado Francisco Fernandes Pereira, era natural de Favaios, Alijó (Trás-os-Montes), sendo fácil deduzir que, para além dos seus méritos em várias áreas do saber, não deixava ser um snobe citadino e, provavelmente, teria sempre à mão umas garrafitas de Favaios, circunstância propícia a roubar discernimento.
V - Ainda a propósito do tema dos montes e montanhas, é também curiosa a alusão do Arcipreste dos Arcos (de Valle de Vez), que informou no Inquérito de 1845: “A Capela de S. Bento, sita no alto monte do Cando, está segura, limpa e asseada e tem os paramentos necessários à custa dos devotos.
Ou seja, tudo leva a crer, e é normal que assim seja, que a serra (ou serras), é constituída por diversos montes (ou montanhas) e que esses montes surgem referenciados pelo local onde se encontram, ou melhor, pela localidade que lhe seja mais próxima, ou, eventualmente, de maior importância política.
Isso acontecerá um pouco por tudo quanto é sítio e posso chamar aqui o exemplo que melhor conheço, o da “Serra do Gerês, a qual apesar de constituir um todo, ou quase, em termos geomorfológicos, não deixa de ser constituída por vários montes, como é o caso do monte/serra de Pincães, ou do monte/serra de Fafião, que correspondem a nomes de localidades situadas nas faldas dessa “Serra do Gerês”. Muitas das vezes tais divisões estão relacionadas com as áreas de baldios explorados pelas populações dessas localidades.
Por isso, a serrania aqui em causa, seja qual for o seu nome mais correto, será sempre constituída por diversos montes, sendo talvez o caso mais paradigmático o do monte, ou montes, de Laboreiro.
Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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