Para entendermos a história das Minas dos Carris é necessário fazer-se um enquadramento sociocultural e histórico de Portugal e do Mundo no princípio dos anos 40 do Século XX. Sendo um Estado neutral em plena Segunda Guerra Mundial, Portugal é um país dominado por um Estado Novo que desde a década de 20 controla todos os aspectos da sociedade. António de Oliveira Salazar lançara já as sementes de um «orgulhosamente sós» e ao mesmo tempo que Portugal mantém a velha aliança luso-britânica e permite a utilização dos Açores como ponte para o ataque Aliado ao Terceiro Reich, fornece às forças do Eixo o minério necessário para manter a máquina de guerra, recebendo em troca preciosos pagamentos em ouro que aos poucos vão aumentando as reservas do Estado que mantém o país num índice de subdesenvolvimento.
Escasseando a indústria, Portugal é um país onde as diferenças sociais são profundas. Sobrevivendo quase de uma agricultura de subsistência, muitos procuram no chão o ouro negro que fará crescer fortunas «da noite para o dia» dando origem a ilusões que irão desaparecer tão rapidamente como a procura nos mercados internacionais pelo volfrâmio irá cair.
Imerso numa guerra desde Setembro de 1939, o mundo rapidamente assiste à expansão germânica como que um relâmpago que estremece o frágil status-quo vigente desde o armistício de 11 de Novembro de 1918 assinado em Compiègne, França, e que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. Humilhada por um tratado imposto numa carruagem de caminho-de-ferro, a Alemanha foi aos poucos crescendo e tendo cada vez mais a necessidade de um espaço vital que escasseava dentro das suas fronteiras.
Para a Alemanha Nazi, Portugal nunca teve uma importância estratégica antes da deflagração do segundo conflito mundial. No entanto, e sendo um dos principais fornecedores de volfrâmio, a importância nacional foi-se tornando considerável com o decorrer das hostilidades e principalmente após a invasão alemã da União Soviética. Oliveira Salazar evita que Portugal entre no conflito, traçando assim o rumo da história portuguesa para as próximas décadas.
Para melhor compreendermos o complicado enquadramento histórico no qual será iniciada a exploração mineira dos Carris, cita-se uma parte do artigo "Portugal, Espanha, o volfrâmio e os beligerantes durante e após a Segunda Guerra Mundial" da autoria de João Paulo Avelãs Nunes e apresentada no encontro "Relações Portugal – Espanha: cooperação e identidade": “Desde Setembro de 1939 até à rendição da França, em Junho de 1940, o mercado português do tungsténio foi hegemonizado pelos Aliados, consequência da capacidade de bloqueio das vias terrestres e marítimas de ligação entre Portugal e a Alemanha, do controlo accionário ou posse das principais sociedades mineiras, do facto de o Terceiro Reich manter o acesso aos fornecedores latino-americanos e aos grandes produtores asiáticos – através da União Soviética.
O Eixo passou, então (Julho de 1940), a poder transportar os bens adquiridos e fornecidos a Portugal através da Espanha e de França, voltando, com maior intensidade, a investir em empresas concessionárias e outras. Apesar da "legislação de excepção" entretanto publicada, até ao primeiro trimestre de 1942 as actividades económicas ligadas à mineração do volfrâmio continuaram a desenvolver-se quase sem intervenção acrescida por parte do Estado ou de organismos corporativos. Se, por um lado, o regime respeitou as posições alcançadas e os equilíbrios estabelecidos nas décadas anteriores – favoráveis ao Reino Unido –, por outro assegurou aos (ou tolerou por parte dos) beligerantes quase total liberdade de acção no terreno.
A 20 de Novembro de 1940, o Banco de Portugal e o Bank of England assinaram um Acordo de Pagamentos, válido enquanto durasse a confrontação militar, que garantiu ao Estado e às empresas britânicas crédito ilimitado em escudos para compras a realizar em Portugal. Tendo-se recusado a negociar um Acordo Comercial de Guerra com Londres, o Governo chefiado por António de Oliveira Salazar acabou, no entanto, por aceitar, desde 28 de Janeiro de 1941, que as relações entre ambos os países seriam, em princípio, geridas de acordo com as regras do bloqueio económico, definidas pelo Ministry of Economic Warfare.
No que diz respeito ao Estado nacional-socialista, para além das alterações resultantes do seu alargamento aos "territórios" que, uma vez anexados, foram passando a integrar o Terceiro Reich, manteve-se sempre em vigor o Acordo para Liquidação de Créditos Comerciais assinado a 13 de Abril de 1935. De certa forma imposto por Berlim, configurou um sistema de clearing bilateral gerido por cada um dos bancos centrais e Governos.
Mesmo tendo em conta o aumento das importações de bens portugueses de interesse estratégico – entre os quais começavam a destacar-se o estanho e o tungsténio –, nos anos de 1939/1940 e primeiro semestre de 1941 o saldo da balança comercial entre os dois países continuou favorável à Alemanha. Este fenómeno, contraditório com a lógica de endividamento externo tendencialmente adoptada por todos os Estados beligerantes, ocorreu, apenas, nas duas fases iniciais do conflito, devido à renovação dos contratos de fornecimento de armas e de tecnologia para a indústria militar negociados com Lisboa a partir de 1937.
A invasão da URSS (iniciada a 22 de Junho de 1941) e a entrada dos EUA na guerra (7 a 11 de Novembro de 1941) implicaram uma alteração decisiva da situação internacional e da posição de Portugal no seio da mesma. Tratou-se, para além do mais, de uma redução drástica dos contactos comerciais da Alemanha, quer com a América Central e do Sul, quer com a Ásia. Os jazigos de volfrâmio localizados na Europa – predominantemente em Portugal e na Espanha – adquiriram, então, para o Terceiro Reich, uma importância decisiva.
Apesar do 'sobreaquecimento' já antes atingido, voltaram a 'disparar', tanto os valores da procura, dos preços e da oferta de minérios de tungsténio, como os níveis de intervenção – directa e notória – dos dois grupos beligerantes. Toda esta actividade implicava o envolvimento de cidadãos estrangeiros e nacionais, das representações diplomáticas, serviços secretos e de propaganda; redes de empresas (com destaque para a Beralt Tin & Wolfram), colaboradores individuais e parceiros comerciais – coordenados, respectivamente, pela United Kingdom Commercial Corporation e pela Minero-Silvícola (propriedade do Estado nacional-socialista através da holding Rowak/Sofindus).
De Outubro de 1941 a Junho de 1942, o Governo português legislou e adoptou medidas político-administrativas visando recuperar a capacidade de controlar o universo do volfrâmio. Por motivações próprias e em resposta a pressões oriundas, sobretudo, da Alemanha, procurou – com empenho direccionado, meios limitados e, consequentemente, sucesso parcial – proibir a exploração mineira 'informal' durante as fases mais intensas dos ciclos agrícolas, reduzir o número de trabalhadores rurais envolvidos, concentrar num círculo restrito de organismos oficiais a efectiva capacidade de manipular variáveis como a propriedade de empresas e concessões, o direito de exploração, o financiamento, a produção, os preços, a comercialização, a circulação, a semi-transformação, a exportação e a tributação/taxação.
Sob a orientação do próprio António de Oliveira Salazar – Presidente do Conselho, Ministro dos Negócios Estrangeiros e Ministro da Guerra, despachando directamente com o Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social, com os Directores da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e do Secretariado de Propaganda Nacional –, dos Ministros das Finanças, Economia, Interior e Obras Públicas, Transportes e Comunicações, foram, neste âmbito, reforçados os poderes da Direcção-Geral de Minas e Serviços Geológicos e Circunscrições Mineiras; Comissão Reguladora do Comércio dos Metais; Direcção-Geral da Indústria e Circunscrições Industriais; Instituto Nacional do Trabalho e Previdência; Direcções Gerais dos Caminhos-de-ferro e dos Transportes Terrestres; Inspecção do Comércio Bancário do Ministério das Finanças e Banco de Portugal; governos civis e câmaras municipais/juntas de freguesia, repartições de finanças, forças policiais e tribunais. A 24 de Janeiro de 1942, o Estado Novo assinou com o Terceiro Reich um acordo sobre tungsténio. Válido entre 1 de Março de 1942 e 28 de Fevereiro de 1943, fixava as quantidades a exportar, definia as "explorações livres" e as minas controladas pelos beligerantes, delimitava a percentagem de "minérios livres" a entregar a cada contendor. Resultou na troca de concentrados portugueses por outros produtos alemães e, apenas em último caso, por divisas convertíveis ou ouro. Só em 24 de Agosto de 1942 foi concretizada uma iniciativa do mesmo tipo com o Reino Unido, seguindo-se um Acordo de Fornecimentos-Compras e um Acordo Comercial de Guerra com os Aliados (23 e 27 de Novembro de 1942).
Algo de semelhante voltou a acontecer em 1943, apesar da crescente inferioridade militar do Eixo, das reforçadas exigências anglo-americanas e da diferente configuração assumida pelo "dossier volfrâmio" na vizinha Espanha: acordo com Berlim a 21 de Abril de 1943 - tendo vigorado de 1 de Março de 1943 ao fim de Fevereiro de 1944 -; duas prorrogações do acordo luso-britânico sobre tungsténio, dos Acordos de Fornecimentos-Compras e Comercial de Guerra com os Aliados (até Dezembro de 1943); concessão de facilidades militares ao Reino Unido nos Açores (18 de Agosto de 1943).
Remetendo para dados oficiais – continua a não ser possível estimar o volume alcançado pelas "actividades ilegais e clandestinas" (muitas vezes toleradas, ou, mesmo, patrocinadas pelas autoridades) –, lembram-se alguns dos resultados materiais de todo este conjunto de decisões, iniciativas e actividades. Portugal teria produzido 4500t de concentrados no ano de 1940, 4607t em 1941, 4120t em 1942 (quebra decorrente dos controlos e do tabelamento de preços introduzidos pelo Governo), 5563t em 1943 e 3214t até Junho de 1944.
Seriam os seguintes os números das exportações de volfrâmio: 3443t no total em 1940, 1783t para o Reino Unido, 768t para os EUA, 540t para França e 185t para a Alemanha, entre outros; 5235t no total em 1941, dos quais 2363t para o Reino Unido, 1814t para a Alemanha, 848t para os EUA, entre outros; 4801t no total em 1942, dos quais 2589t para o Reino Unido, 2169t para a Alemanha e 43t para a Itália; 6669t no total em 1943, dos quais 5321t para o Reino Unido e 1342t para a Alemanha, entre outros; 2688t no total em 1944, dos quais 1987t para o Reino Unido e 70lt para a Alemanha. Nos anos de 1943 e 1944, o Terceiro Reich importou, ainda, 34t e 77t de resíduos de tungsténio.
Tendo em conta, a dimensão dos interesses envolvidos, as características socioeconómicas e culturais das "regiões do volfrâmio", os preços atingidos e as modalidades de actuação dos dois regimes – com evoluções desfasadas em ambos os lados da fronteira luso-espanhola –, não é difícil admitir que, em termos da produção, comercialização ("contrabando interno"), semi-transformação, transporte e exportação (contrabando local, organizado pelos beligerantes ou "oficioso"), do financiamento e dos pagamentos internacionais (envolvendo ouro), essas "actividades ilegais e clandestinas" deverão ter alcançado montantes muito significativos. A Alemanha desde 1940, os Aliados a partir de 1943, estruturaram mecanismos de intervenção que cobriam a Península Ibérica no seu conjunto.
No dia 5 de Junho de 1944, encerrou-se um longo e difícil processo negocial de mais de seis meses durante o qual Reino Unido e os EUA, perante a ineficácia das pressões económicas e diplomáticas, chegaram a aceitar a necessidade de apoiar o derrube do Estado Novo, ou, pelo menos, de António de Oliveira Salazar. Abandonando diversos objectivos que considerava serem essenciais, o Governo português informou o embaixador britânico em Lisboa de que cedia perante as exigências dos Aliados e determinaria a suspensão da produção e exportação de concentrados de tungsténio. Em 26 de Janeiro de 1945, Portugal e os Aliados assinaram um novo Acordo de Fornecimentos-Compras, a 8 de Agosto de 1945, o Banco de Portugal e o Bank of England renegociaram o Acordo de Pagamentos de 1940.
Através do Decreto-Lei n.º 33: 707, de 12 de Junho de 1944, foi imposta a suspensão de todo o tipo de actividades – produção, comercialização, transporte, semi-transformação, exportação – em torno dos minérios de volfrâmio. As quantidades já extraídas seriam obrigatoriamente entregues à Comissão Reguladora do Comércio dos Metais nos prazos e pelos preços definidos por legislação anterior.
Esta forçada inactividade só terminou em Dezembro de 1945/Janeiro de 1946, depois de ter sido assegurada a venda das reservas acumuladas pela Comissão Reguladora do Comércio dos Metais. Apesar do agravamento das penas aplicáveis, o contrabando de concentrados para a Alemanha continuou, pelo menos, até Agosto de 1944, aquando da libertação do Sul de França pelos Aliados e do encerramento da fronteira dos Pirenéus.”
Texto adaptado de "Minas dos Carris - Histórias Mineiras na Serra do Gerês" (Rui C. Barbosa, Dezembro de 2013)
Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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