quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Um velho abrigo pastoril na encosta do Vale do Cando?


Com esta publicação, este blogue atinge as 10.000 publicações feitas desde 19 de Dezembro de 2006. Assim sendo, e apesar de tendo nascido com o objectivo de reunir informações sobre a história das Minas dos Carris, esta será uma publicação sobre um dos aspectos mais particulares da Serra do Gerês e da sua milenar ocupação humana.

"Conservá-lo, é conservar e respeitar uma típica característica geral do passado."

Havendo nos nossos dias correntes que defendem a saída do Homem destas serranias numa tentativa radicalmente extremista de termos um território selvagem (a artificial definição 'wilderness' da Pan Parks), que o faz esquecer-se propositadamente do facto de a ocupação humana deste território ser milenar, recuando as tribos nómadas que percorriam os territórios que hoje fazem parte do nosso país, da Galiza e mais além.

O Homem foi elemento modificador da paisagem, para o bem e para o mal, e cabe às gerações actuais e futuras reparar o mal que foi feito, adaptando a ocupação a uma preservação equilibrada da Natureza e da História. Com tanto doutor e engenheiro, certamente isso será possível, basta sair dos gabinetes...

Assim, esta publicação vai abordar o abrigo pastoril, em geral, começando por um abrigo em particular, ou pelo que resta dele!

Numa recente passagem pelo Vale do Cando percorrendo um carreiro de montanha logo após a Eira Bonita, deparei-me com os restes do que parece ser um abrigo pastoril em ruínas, isto é, alagado. A sua localização é peculiar, estando numa encosta relativamente afastado de zonas de guarda do gado, mas «à vista» da cabana (abrigo) do Cando.






A Serra do Gerês, e as restantes serranias do Parque Nacional da Peneda-Gerês, estão polvilhadas destas pequenas construções. Umas certamente utilizadas para abrigo dos pastores, outras possivelmente utilizadas para as actividades da carvoaria (Teixo) ou mineração (Carris, Borrageiros, Lomba de Pau), são memórias perdidas da milenar ocupação do território do Parque Nacional da Peneda-Gerês.

O abandono da actividade pecuária ao longo do século XX, a perda da transmissão oral, perda da localização física por desuso destes abrigos, a chegada dos Serviços Florestais, as alterações da fisionomia do território e a implementação do Parque Nacional que não soube fazer um trabalho de registo para memória futura destes abrigos, levou à perda da memória de muitos deles que lentamente vão surgindo na demanda do conhecimento mais profundo deste território.

O abrigo pastoril na Serra do Gerês é uma das características da arquitectura popular e rural que mais impressiona aqueles que demandam as lonjuras e profundezas serranas. Muitos destes abrigos mantêm a sua constituição original, enquanto outros foram abandonados e substituídos por edifícios que fogem da traça original do abrigo pastoril geresiano, apesar de, talvez, oferecer maior conformo a quem os utiliza.

Memória singular da Serra do Gerês, a recuperação de muitos destes abrigos pastoris, denominados 'fornos', deveria ser uma «obra» prioritária de conservação do Parque Nacional da Peneda-Gerês. Porém, a verdade é que o Parque Nacional põe inúmeras barreiras à recuperação destes singelos pequenos edifícios. Como disse Tude de Sousa, "Conservá-lo, é conservar e respeitar uma típica característica geral do passado."

Nos nossos dias estes abrigos poderiam ter outras funções, nomeadamente de abrigo no caso de situações de resgate na montanha, tal como foi o caso de uma ocorrência em Fevereiro de 2016.

Tude de Sousa, no seu livro "Gerez - Notas Etnográficas, Arqueológicas e Históricas"- publicado em 1927 - faz-nos uma interessante descrição dos abrigos pastoris existentes na Serra do Gerês:

"(...)

Para o estadio em cada curral tem o pastor, como já dissemos, o seu fôrno, ou cabana, onde se recolhe e abriga. São construções tôscas, ligeiras, de pedras sêcas, mal dispostas geralmente, umas revestidas e outras não de torrões, tapando os intervalos. Cobertas umas de telhas redondas, à portuguesa; cobertas outras de torrão, guarnecendo pedras largas e delgadas.

As suas dimensões e capacidade não são grandes: 2 a 2,50 metros de alto, por 2,50 e 3 metros de comprido, com as portas baixas, por onde o homem passe curvado e por elas não entre o gado. Três a seis, ou oito pessoas, é o máximo que nelas caberão.

A cobertura de uns fornos é redonda, aguçada; a de outros com armação em duas águas.

O pavimento coberto de fetos ou mato meúdo para amaciar a dormida e junto da porta, do lado de fora, em muitos formos, a pia, ou pias, cavadas na rocha firme, ou móveis, para a comida e bebida do cão, inseparável companheiro e amigo da montanha. A porta de serventia, única, tapada apenas por alguns gravetos de mato ou ramaria, indicadores só de uma linha de respeito.

O travejamento é tôsco, como a construção em que se emprega, e fornecido sempre pelos carvalhos mais próximos, que os há com fartura na serra, brotando e crescendo com espontânea pujança naquele solo abençoado.

Esta habitação e os costumes que descritos ficam, são mais ou menos comuns a todos os povos da serra, e não só so de Vilar da Veiga, pelo que, a não ser com alguma variação menor, se encontra nos homens e nos usos de Rio Caldo, de Covide, de S. João do Campo e Vilarinho, de Cabril e de Pitões e por aí fora, até termos de Suajo e Londodo, por um lado; até termos de Barroso e Montalegre, pelo outro.

Segue um ensaio de distribuição geográfica:

Perto da Galiza, o curral da Amoreira, gereziano português, mas no usofruto dos gados e dos vizinhos do lado de lá, um dos maiores da serra, de pedra e de torrão.

Na chã do Carvalho e nos Prados Caveiros dois de pedra e terra, pertencentes a Vilarinho e mais de pedra e telha em S. Miguel e Albergaria, e outros mais.

S. João do Campo tem o seu forno de pedra e telha no curral de Leonte de Baixo, e outros, de um e outro tipo dispersos.

Vilar das Veiga, quási todos de pedra e telha, tem os fornos dos currais dos prados da Messe, do Conho, de Leonte de Cima, e outros, tendo caído em desuso os da Mijaceira e Vidoeiro, por estarem cortados e devassados agora pela estrada pública para a fronteira, e Rio caldo tem o Vidoal, de pedra e telha, ao subir de Leonte e antes de chegar à Borrageira.

Esta é a habitação da serra, único refúgio noutros tempos, com alguma para natural, de quem por lá deambulava, simples caminheiro, contrabandista, ou pastor, hoje já acompanhado pelos numerosas casas da guarda florestal, quebrando a solidão da floresta e das fragas.

O forno dos pastores gerezianos, ligado ao regimen comunalista e pastoril que os seus povos têm, é bem ainda, pelo espírito ancestral que representa, o espêlho liso da tradição em que aquela gente, sequestrada do mundo, vivia noutras eras a vida de paz, a vida simples de fraternidade e de amor, que os novos tempos e as covilizações novas lhes vão dia a dia enfraquecendo e quebrando.

Conservá-lo, é conservar e respeitar uma típica característica geral do passado.

(...)"

Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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