quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Serra do Gerês - Da Guarda aos Viveiros, uma jornada com chuva pela Estrada da Geira

 


Os dias de chuva vão-se sucedendo e a vontade de caminhar pelo silêncio relativo da Natureza vai aumentando até ao ponto no qual se desafia o conforto do calor do lar e nos «aventuramos» por entre as gotas da intempérie.

Mais uma noite embalado no compasso das goteiras que se despenham pelas ruelas estreitas do Campo do Gerês. Por vezes, o vento dança pelas frinchas das portadas e a chuva castiga as vidraças. O frio instala-se pelos cantos e o conforto do leito é a tentação que nos faz ficar mais uns minutos.

Da mesinha de cabeceira os livros empilhados caem, pois, para a Freya, é mais que hora de sair à aventura pelas casas abandonadas. O ritmo das goteiras diminui, a chuva abranda e é hora de deixar o conforto e de dar de comer aos gatos. A água aquece para o café e o toque das horas matinais ouve-se quase ali ao lado. Toma-se o café e o pão, faz-se o chá, procuram-se umas bolachas. O caminho será curto, logo uma doçura chegará. Busca-se a mochila mais pequena e troca-se para essa, o essencial para um conforto nas próximas três horas. 

Abre-se a porta de casa e a paisagem muta-se em tons de cinza com as nuvens açoitadas ao de leve pelo vento. Um frio confortável contorna a pela... e Freya desiste da brincadeira após molhar as patas no alpendre, decide ficar pelo conforto da alcofa.

Segue-se de carro até ao estacionamento da Guarda. É por aqui onde a Câmara Municipal de Terras de Bouro quer criar um centro interpretativo estando para tal a requalificar os canhões e outro material de guerra que existia no local. A ideia é voltar a implementar estes materiais nos lugares originais dando aos visitantes a oportunidade de perceber como o concelho se defendia dos ataques nas invasões francesas.

A célula defensiva de Bouro Oriental compreendia as freguesias de Campo do Gerês, de Brufe e de Covide, no concelho de Terras de Bouro, sendo composta por diferentes elementos, que se pretendem intervencionar numa ação de valorização e interpretação, nomeadamente: na margem esquerda do Rio Homem, encontram-se a designada Trincheira de São João de Campo e a Casa das Peças, bem como a Casa do Facho; do outro lado do Rio Homem, na Serra Amarela, localizam-se a Trincheira da Serra Amarela e as Casarotas. Os elementos identificados, ainda que edificados em cronologias diferentes, desempenharam, durante as Invasões Francesas, um importante papel na estrutura defensiva e na organização do território de Bouro.

Carro estacionado e com a perspectiva de que afinal a chuva iria manter-se à distância, segui a Estrada da Geira em direcção ao Sarilhão passando ao lado do frondoso bosque de medronheiros e descendo para a Ponte do Ribeiro de Sarilhão. A estrada leva-nos agora por uma paisagem um pouco diferente, com o pinhal na Bouça da Mó a ter sido em parte abatido. As margens da albufeira da Barragem de Vilarinho das Furnas são agora quase sempre visíveis neste troço que nos leva passar pela Milha XXX, em Berbezes - Bouça da Mó). Perto daqui, em 1992, foram exumados os restos de uma mutatio e dois marcos miliários. Um apresentava-se quase totalmente soterrado, erecto, podendo por isso estar in situ. Outro encontrava-se incorporado num dos antigos muros dos campos de Vilarinho. constando apenas a metade superior, com uma epí­grafe do Baixo Império, tendo sido recolhido nas instalações do PNPG.

Se entre as milhas XXIX e XXX, a Geira Romana encontra-se submersa, entre as milhas XXX e XXXI a quase totalidade do seu trajecto foi coberto pela estrada aberta pelos Serviços Florestais.

Passa-se então nas imediações da Casa Florestal da Bouça da Mó que, curiosamente, não se encontra na sua localização inicial, tendo sido reerguida na sua actual localização pelo facto que a cota máxima da albufeira inundar a área onde estava originalmente implementada. Actualmente, a Casa Florestal da Bouça da Mó encontra-se no fundo da encosta d'As Negras.

A Estrada da Geira segue a albufeira e passa pelas Rabaças. Aqui, existia uma fonte, agora desaparecida, que se designava como 'Fonte das Rabaças'. Prosseguindo por entre uma chuva que se afirmava a cada passo, e passando a Ribeira da Cova da Porca, chegaria ao Bico da Geira e à sua Milha XXXI.

Localizada na freguesia de Campo do Gerês, a uma altitude de 610 metros, esta Milha apresenta magnificas evidências da forma como os miliários eram extraí­dos dos afloramentos graní­ticos, distinguindo-se num deles as marcas rasgadas para a implantação das cunhas em madeira, tendo o trabalho sido abandonado já após terem sido abertas as cunheiras. Ainda hoje se observa um esboço de miliário que nunca chegou a ser completado.






Neste local, para além da pedreira de onde foram retirados os miliários, foi exumado um conjunto de 21 miliários, dos quais sete conservam as inscrições: Adriano (117-138), Décio (249-251), Caro (282-283), e Licí­nio (308-324). De realçar que aqui foi também encontrado um pequeno miliário semi-enterrado, que conserva traços de pintura a ocre. Perante esta evidência é possí­vel que também os outros miliários fossem, regularmente, pintados.

Para além dos miliário e da pedreira, observam-se restos de uma calçada com pedras bem fincadas, para facilitar a passagem da Ribeiro de Pedredo que desce da montanha. Nesta zona a via já transcorre a Mata de Albergaria, um imponente carvalhal, onde também se notam inúmeros azevinhos e muitas outras espécies arbóreas.

O traçado do caminho romano desta milha à seguinte foi coberto pela estrada aberta pelos Serviços Florestais.

Atravessando a Ponte do Bico da Geira sobre o Ribeiro do Pedredo, segue-se na direcção do Cancelo onde existe a Fonte do Cancelo - erradamente designada como Fonte do Vale dos Porcos. Mais adiante, e depois de passar à sombra da Pena Longa, chegamos à Volta do Covo com a sua Milha XXXII. Situada a uma altitude de 640 metros, aqui conservam-se 23 miliários, dos quais 16 são anepí­grafes. A bibliografia refere 7 miliários com epí­grafes: um de Adriano (117-138), datável do ano 135; dois de Maximino e Máximo (235-238), datáveis do ano 238; um de Décio (250); um de Caro (282-283); um de Magnêncio (350-353) e outro de Decêncio (351-353).


Não é possí­vel afirmar que os miliários se encontrem in situ, já que teriam sido agrupados, provavelmente, quando se abriu a estrada florestal, tanto mais que parte deles estão junto a uma estrutura muito tardia, já referida por Mattos Ferreira.

No trajecto entre as milhas XXXII e XXXIII conservam-se vestí­gios de duas pontes romanas, que permitiam transpor as ribeiras da Maceira e do Forno.

Da Volta do Covo à zona de confluência das duas ribeiras mantém-se a estrada florestal. No local onde se juntam as ribeiras observa-se cerâmica romana de construção o que (...) leva admitir que neste local terá funcionado uma mutatio, tal como na Bouça da Mó.

Prosseguindo então pela Estrada da Geira, passamos pela Fonte da Balsada, e logo adiante chegamos aos antigos Viveiros das Trutas que se encontram junto da Casa Florestal de Albergaria. Nesta zona da Mata de Albergaria, os Serviços Florestais construíram diversos edifícios que serviam como residência do pessoal que trabalhava para aquela entidade e de residência ao Guarda Florestal responsável por aquele 'cantão'. Assim, a Casa Florestal de Albergaria (casa do guarda) estava junto dos três tanques que constituíam o Viveiro das Trutas, abandonado em finais dos anos 80. Uma outra Casa do Guarda encontrava-se junto do Viveiro Florestal, parte da área do qual é hoje ocupado pelo Centro de Recuperação de Animais Selvagens ainda em actividade. Outro edifício encontrava-se junto da estrada que liga a Portela de Leonte e a Portela do Homem, hoje em miserável ruína.

Após um pequeno descanso junto do Viveiro das Trutas, encetei o regresso. Pelo caminho, fui restabelecendo a água na Fonte da Balsada e apreciando os sons do «silêncio» do bosque em tempos invernais. No fundo do vale, o Rio Homem estava decidido a encontrar-se com o compadre Cávado na Ponte do Bico, mesmo tendo pela frente uma parede de betão.





A certa altura, decidi abandonar a Estrada da Geira e pouco antes da Ribeira da Cova da Porca desci na direcção das margens da albufeira chegando então ao Malhão. A certa altura terei atravessado a zona da antiga linha de telefone que ligava o complexo florestal da Albergaria com a Casa Florestal da Bouça da Mó. Hoje, nada existe dessa linha. Caminhando durante algum tempo pela margem, senti a força do vento que em bátegas de água me açoitava o rosto com gotas frias de chuva.


É nestes espaços que por vezes somos surpreendidos por algo «novo», seja um velho murete de pedra solta, seja uma raiz de uma árvore há muito morta...

Revoltando-se a terra que me corre nas veias!
Longe vão as fogueiras e as eiras
Ardendo com elas as raízes,
Ao lume... a alma de um povo
Ao lume...é por ti que ardo
Ao lume...é por ti que morro

Texto de Hugo Araújo (Vozes na Neblina, Pt. 2Urze de Lume)


Foi então que, gravadas profundamente no granito, chamaram-me a atenção três entalhes feitos numa rocha. Não consigo ter uma ideia da sua função (partir a pedra) ou mesmo da altura em que terão sido feitos. As fotografias a seguir mostram esses entalhes.


Da mesma, um pouco adiante, uma laje de granito apresenta uma sequência de outros entalhes (cinheiras?). Devido à sua disposição, e sem ter a certeza, parece-me ter sido o início do fabrico de um marco miliário, assemelhando-se de certa forma às cunheiras visíveis na pedreira existente no Bico da Geira. As fotografias seguintes mostram essa laje com as marcas bem visíveis.




São também estes pequenos pormenores, lugares de história, que a Barragem de Vilarinho das Furnas submergiu...


Após estas passagens, regressei à Estrada da Geira até chegar junto do bosque de medronheiros do Sarilhão, seguindo depois o traçado do Trilho da Águia do Sarilhão até ao velho posto de observação do velho Trilho das Casarotas, e depois desci de novo para a Estrada da Geira, findando pouco depois a caminhada.

Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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