Esta não é a história que me apraz contar, mas lembro as palavras do "Ti" João do Albino do lugar de S. Lourenço, que falava com autoridade do alto dos seus 82 anos: "Era tempo de fome e muita miséria, eu lembro-me de ser um rapazote e a minha mãe me mandar soltar os porcos, que andavam às cabeçadas à porta da corte, tinham fome, ela só dizia, ide a vossa vida e governai-vos, eram tempos ruins de miséria, tanto para os animais como para nós." Ou então as palavras do "Ti" Manel Barreiro: "Olha, eu passei tanto por essa serra, passei frio e fome, não havia nada, era só côdeas de pão milho, comi tanto, ainda hoje não posso ver o pão milho."
Eram realmente tempos muito difíceis, em que o povo de Cabril só vivia da terra e dos animais. Eram tempos que a Serra do Gerês estava cheia de gente; eram os agricultores que tinham o centeio nos currais, espalhados um pouco por toda a serra; era os contrabandistas a fazer pela vida, os guardas fiscais a tentar detê-los; e havia ainda os que se dedicavam a extracção do volfrâmio, o ouro negro, e que fez com que a serra fosse esventrada um pouco por todo o lado.
Eram tempos que ser vezeireiro era um privilégio, e não era fácil conseguir esse trabalho, apesar de ser um trabalho sazonal de três meses a guardar e pastorear os animais na serra. Eram esses três meses que garantiam o sustento para o resto do ano, pois o vezeireiro era pago em géneros alimentares pelo resto da população.
E depois havia ainda os carvoeiros, pessoas que passavam muito tempo na serra a arrancar os torgos de urze e a fazer os buracos para o carvão, como diz o "Ti" João da ponte: "Oh pá! Era um trabalho excomungado, era sempre sujo, todo negro, as mãos estavam todas gretadas, mas prontos dava para ganhar alguns tostões."
O "Ti" João da Ponte fala como uma pessoa conhecedora da realidade, ou não tivesse ele feito muito carvão e dormido muitas vezes nas cabanas da serra, e carregado muito carvão para o depósito no Teixo, é também ele que a determinada altura conta a história do burro que pegou fogo: "Naquela época andava-se a fazer o carvão no Cambeiro, andavam lá dois ou três homens, já não me recordo, e o Custódio do Luís e ele trazia um burro com ele, para o ajudar nas cargas, eles acabaram de fazer o carvão e carregou o burro e pôs outro saco às costas e começou a subir a serra pelo Curral dos Bezerros até à Cidadelha, onde naquela altura estavam a dormir. Era na cabana que guardavam a comida, e ele foi a cabana botar uma bucha, para depois subir a Revolta até ao Teixo, onde estava o depósito de todo o carvão feito na serra. Também havia lá uma loja que vendia pão e vinho, e mais umas coisitas, só que enquanto foi à cabana o burro desapareceu, andou para cima e para baixo e nada do burro, foi dar com ele passado umas horas, todo chamuscado, já perto da Arrocela, estava vento e o carvão não estava bem apagado e pegou fogo, coitado do burro, só parou quando as cordas que atavam o carrego arderam, e ele livrou-se do fogo. Andaram um mês a carregar o carvão as costas até ao Teixo, pois o burro teve de vir para a aldeia para recuperar, ainda se queimou bem, eram uns tempos... Mas olha que eu ainda me lembro é tenho saudades desse tempo, apesar da miséria, agora para vós é tudo muito fácil, naquela altura não havia nada de nada era trabalhar par sobreviver, era mesmo só para sobreviver... "
Texto e fotografias © Ulisses Pereira (Todos os direitos reservados)
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