A montanha geresiana oferece-nos altos cumes e profundas corgas por onde podemos caminhar e encher o nosso ego. Mas por vezes, a verdadeira riqueza encontra-se mesmo ali ao lado, ao lado dos locais por onde passamos de automóvel e que nem nos chama a atenção. Porém, isto acontece porque não estamos atentos e porque a vaidade é sempre mais importante do que conhecer a montanha a fundo, na sua essência histórica e natural.
Assim, se a caminhada pelos altos cumes e profundas corgas nos pode mostrar resquícios da presença do Homem nesses locais, a visita a outros locais de «mais fácil» acesso leva-nos numa outra viagem: a viagem pela razão de ser do Parque Nacional, a sua Natureza e a sua História.
Foi o que aconteceu nesta curta caminhada de cerca de 7 km através dos carreiros da Mata de Albergaria com início e fim na Portela do Homem.
Deixando o estacionamento pelo carreiro que se inicia junto do placar informativo do Parque Nacional da Peneda-Gerês, abrenhamo-nos no arvoredo da Mata de Albergaria. Estaremos a caminhar na Geira Romana? Na verdade, não é certo se a Via XVIII seguia este traçado ou se percorria o lado esquerdo do Vale de S. Miguel. Sabemos que este troço do Itinerário Antonino ligava a Ponte de S. Miguel, passava junto dos edifícios da Guarda Fiscal e entrava na Galiza pela portela fronteiriça. O seu traçado correcto permanece uma incógnita. A Portela do Homem sofreu muitas e profundas alterações, nomeadamente aquando da construção do primeiro edifício da Guarda Fiscal.
A história da permanência da Guarda Fiscal na fronteira da Portela do Homem, inicia-se em finais do século XIX e vai prolongar-se até Março de 1995, altura em que Portugal implementa a «abolição» das suas fronteiras de acordo com o estabelecido para a livre circulação de pessoas e bens no Espaço Schengen.
De facto, o pedido para a instalação do primeiro edifício da Guarda Fiscal é feito a 23 de Agosto de 1892 pela então Direcção Geral das Alfândegas. Esta, solicita a cedência aos Serviços Florestais de 500 m2 para a instalação de uma casa para o Posto Fiscal, na condição de este terreno reverter para a Mata Nacional quando os serviços alfandegários dele não precisassem. Os Serviços Florestais deferem o pedido por despacho datado de 9 de Setembro de 1896, referindo que todos os trabalhos ali realizados ficariam a pertencer à Mata Nacional e que esta não deveria qualquer indemnização à Direcção Geral das Alfândegas em caso de devolução da área solicitada.
O auto de entrega dos terrenos na Portela do Homem é assinado a 25 de Outubro de 1896 pelo silvicultor António Mendes de Almeida e pelo Chefe de Secção da Guarda Fiscal do Gerês, Albano Augusto Pereira.
Assim, os trabalhos ali realizados vão alterar a paisagem, com a criação de uma estrada e o deslocamento e enterramento de marcos miliários. Os que hoje podemos ver a assinalar a Milha XXXIX terão sido deslocados, tal como é referido em viasromanas.pt: "nesta milha, localizada na Portela do Homem, conserva-se um vasto grupo de miliários, mas nem todos pertencentes à milha XXXIV. O local onde, actualmente, se concentram os miliários não é, por certo, o ponto original da sua implantação. Também não o será a zona onde alguns metros mais a nascente e a uma cota inferior foi desenterrado um miliário coberto de sedimentos modernos, durante a campanha de 1992. De facto, as antigas descrições referem-se a pelo menos treze miliários. Actualmente apenas se observam oito, contando com o que foi recentemente recuperado. Deve, pois, admitir-se a possibilidade de outros miliários ainda se manterem sob os aterros adjacentes à estrada. A bibliografia refere dois miliários de Tito e Domiciano (79-81), datáveis do ano 80; Nerva (96-98); Trajano ou Adriano (117-138?); Caracala (198-217), datável do ano 214; Maximino e Maximo (235-238); Décio (249-251), datável do ano 250; Magnêncio (350-353) e um anepígrafe."
Caminhando através do Vale de S. Miguel, passamos ao lado do Curral de S. Miguel e seguimos em direcção às ruínas das antigas Casas dos Guardas Fiscais. Nesta altura, a Mata de Albergaria apresenta-se em plena metamorfose: as cores de Outono já surgiram em muitas árvores, mas muitas outras aguardam a sua vez. No chão, começam a surgir os primeiros cogumelos, mas a humidade ainda é baixa e o frio ainda não chegou. O Rio Homem ganhou nova vida após as recentes chuvas e o seu caudal vai aumentar nos dias que se seguem, pois a chuva voltará com maior intensidade. Não fosse o ruído dos carros e motociclos que passam, e a música seria da Natureza com o vento a dançar por entre as ramadas, os restolhar das folhas secas no chão e os pequenos ribeiros a correr para engrossar o «grande» rio.
Minutos passados e chegamos à (nova) Ponte de S. Miguel. A ponte de madeira proporciona uma passagem segura do Rio Homem no local onde se encontrava a velha ponte romana que unia as duas margens do rio complementando a via que foi terminada no ano 80 dC. Segundo a informação disponível no sítio do município terrabourense, "a Ponte de São Miguel era uma ponte com uma certa envergadura, pois possuía dois arcos de volta perfeita e possibilitava ultrapassar o último grande obstáculo da serra do Gerês em direção a Astorga, continuando, durante séculos, a ser corredor militar, caminho de Santiago, linha de transações económicas e de passagem para o interior da Espanha." A velha ponte romana terá sido destruída em 1640, logo após a restauração da independência e alguns dos seus blocos ainda podem ser vistos na margem esquerda do rio logo após a passagem da ponte de madeira.
No livro O Gerês - De Bouro a Barroso (Outubro de 2011), Rosa Fernanda M. Silva refere: "no quadro da Guerra da Restauração, para contrariar a entrada do inimigo, deliberaram destruir as pontes romanas de Monção, do Arco, de S. Miguel e a de Albergaria em pleno bosque caducifólio.
Na notícia de 1736 afirma-se, '(...) Hua destas pontes tem o nome de S. Miguel por rezão de que antigamente, no tempo em que este reyno esteve intredito. os moradores desta freguesia de S. João do Campo no estremo da Galiza levantarão huma ermida de S. Miguel e nella ouvirão missa nos dias santos; depois que se levantou o interdito, mudarão a dita ermida para a Chaam adonde esteve a dita ponte e dahí por diante ficou com este nome e tambem a Chaam; e finalmente, como a ermida estivesse em ermo e sitio muy dezerto, a demolirão e trouxerão a imagem de S. Miguel para a ermida da Senhora das Merces que está no lugar de Vilarinho. A ponte de Albergaria, dizem, tomou o nome de huma caza que antigamente ali havia que servia de recolhimento aos passageyros, e a de Monção, por junto della estar huma maravilhosa fonte assim chamada, e a do arco por ser de hum só a ponte (...)." Rosa Fernanda M. Silva refere ainda que "a grandiosidade destas quatro pontes pode avaliar-se pela '(...) despreza que a gente de Terras de Bouro fes de trinta mil reis que derão aos pedreyros no anno de 1640 para lhes demolirem (...)'."
Seguindo caminho, e após passarmos o Ribeiro de Monção, encontramos os miliários da Milha XXXIII (Ponte Feia) e as ruínas do velho abrigo de montanha. Não muito longe encontra-se a Ponte Feia e o Poço da Ponte Feia, mais tranquilo do que nos dias do estio e com um cenário muito mais apelativo nestes dias de Outono.
Aqui, certamente que caminhamos pelo traçado da Geira Romana que nos leva a Albergaria onde encontramos os restos de duas pontes também destruídas em 1640, o que resta dos velhos tanques de criação de trutas dos Serviços Florestais e alguns edifícios abandonados que também pertenceram a esta instituição. Subindo agora em direcção à estrada seguido a estrada calcetada, repara-se nos restos da trincheira defensiva ali existente. Este local merecia um melhor trato e conservação; aqui respira-se História e Natureza, além dos fumos emanados pelos escapes dos carros que vão passando...
Caminhando mais uma dezenas de metros pela estrada asfaltada, seguimos encosta acima até encontrar a Pala do Ranhado (ou Penedo da Pala). Descrita no relatório da Sociedade Geográfica de Lisboa sobre uma expedição à Serra do Gerês, este foi o local de pernoita de Hermenegildo Brito Capelo, Leonardo Torres, Denis Santiago e Serafim dos Anjos e Silva na noite de 20 de Setembro de 1882.
Em Setembro de 1882, Hermenegildo Capello e Leonardo Torres - sócios ordinários da então Sociedade de Geographia, fizeram uma visita à Serra do Gerês que mais tarde seria descrita na revista desta sociedade. Durante a sua permanência no Gerês, os dois homens participaram numa caçada realizada a 20 e 21 de Setembro, tendo dormido a noite na serra e fazendo a seguinte descrição...
"Na Serra do Gerez ha uns abrigos que chamam fornos, provavelmente por causa das portas que só se pode entrar engatinhando, e dentro d'essa cubata podem dormir nove ou dez homens, deitados em palha e muito unidos.
A pulga e muitas vezes o ganau enxameam aquelles domicilios, que servem de casa aos guardas do gado que á noite o reunem junto d'estes fornos em uns pequenos planos mais abrigados que chamam vezeiros. Vimos dois d'estes cacifres ou casebres, um mesmo na Portella de Leonte e outro em Albergaria; n'este ultimo estava um velho guardador de extensa barba branca, e pelo tempo, local e aspecto fazia sem grande difficuldades a felicidade de um sebastianista ferrenho.
Estavamos condemnados a estacionar e pernoitar no forno de Albergaria, porque a chuva continuava e continuou durante a tarde e durante a noite, quando um dos guias lembrou que era mais limpo o abrigo do Penedo da Palla, no sítio do Ranhado, que nos ficava a uns duzentos passos de distancia; podem lá dormir dez homens e cinco debaixo do penedo que fica logo ao pé, e os sete seguiram logo para o dito forno. Foram dez para o forno, e por esse motivo no abrigo da Palla apenas dormimos sete, perfeitamente abrigados e aquecidos pela constante fogueira que durou toda a noite, sendo alimentada com lenha de carvalhos, que ali se encontram derrocados e não aproveitados."
Evitando a estrada asfaltada, o regresso fez-se em sentido contrário pelo mesmo caminho.
Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)













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