Sair dos caminhos usuais leva-nos a paisagens diferentes, se bem que conhecidas. Foi o que aconteceu neste dia, com o regresso às Lamas de Modo e a redescoberta de uma passagem que há muito já não percorria.
A ideia era uma longa jornada até às Quinas de Arrocela, mas o dia acabaria por nos levar a outras paragens. Iniciando o dia na Portela de Leonte com uma temperatura agradável e a fazer lembrar os dias de Outono que irão chegar, começamos por subir a Costa do Morujal em direcção à Chã do Carvalho. A subida fez-se de forma ligeira com o Pé de Cabril a marcar presença na paisagem onde se afundava para dar lugar a horizontes mais vastos. Se no início estamos às portas da Mata de Albergaria, em poucos minutos começamos a vislumbrar os píncaros característicos da paisagem que nos irá acompanhar nas horas seguintes.
Mergulhados no silêncio da manhã, respira-se o ar fresco de uma Natureza que desperta em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês. Os dias agitados do Verão ficam lá em baixo e nas alturas vai-se ganhando a tranquilidade desejada e longe de um turismo de massas que somente traz o caos e o desperdício para a região.
Serpenteando encosta acima, vai-se passando pelas marcas das vezeiras que se aproximam do final de mais um ano de pastagens na serra. Os dias encurtam-se e no horizonte surgem as nuvens de serões mais frios ao borralho. O chão tapeteia-se com as flores que anunciam a chegada do Outono numa alteração de estações que nos oferece dias amenos e noites a pedir resguardo.
Passado a Chã do Carvalho, o carreiro leva-nos agora para o verdadeiro salão de visitas que é o Prado do Vidoal engalanado de milhares de quitamerendas. Uma ligeira brisa faz com que os ramos do grande carvalho balanceiem de forma quase imperceptível e a silhueta do Outeiro Moço surge quase como que uma grande mariola que nos indica a direcção a seguir. Aqui, a paisagem é composta pelas paredes aprumadas da Roca d'Arte, primeira numa linha de cumes que nos leva a passar pelo Cabeço de Lavadouros e pelo Cabeço de Cinzeiros quer guardam corgas ainda mergulhadas em sombra. O Cabeço da Cantâra, Carris de Maceira e o Pé de Medela, completam o quadro cinemático onde nos encontramos.
Deixando o Prado do Vidoal, seguimos na direcção do Colo da Preza, bordeando o Outeiro Moço a Norte e percorrendo a paisagem que guarda o velho e esquecido Curral de Lavadouros. Com as recentes chuvas, a serra ganhou vida e os pequenos ribeiros compõem agora a banda sonora que ecoa nos espaços. Chegando ao Colo da Preza, abre-se a paisagem para o longo Vale de Teixeira num cenário onde farrapos de nuvens elevam-se do Vale do Rio Cávado.
De repente, um velho macho de cabra-montesa surge a percorrer lentamente a paisagem. O passo cadenciado é feito de forma lenta, arrastando consigo os longos anos que o peso dos seus cornos denotam. Ali, vislumbra-se o fim de um ciclo que deve ser natural e que traz o verdadeiro equilíbrio que a Natureza do Parque Nacional requer. De passo certo e a coberto do som da brisa fria que por ali se fazia sentir, acabaria por se desvanecer por detrás da penedia.
Rumando agora a Nascente, seguimos em direcção da Chã da Fonte, passando depois pela Fonte da Borrageirinha, chegando então às Lamas de Borrageiro. Aqui as pernas têm o seu descanso, caminhando agora na Chã do Caçador em direcção à Lomba de Pau. Em breve, estávamos na magnífica varanda com vista para uma paisagem imensa que fazia o olhar percorrer cenários de sonho entre o Curral do Conho e as lonjuras da Serra do Larouco. As encostas de Porta Roivas e o profundo Vale de Fechinhas são o quadro perfeito numa montanha que nos deixa cheios de assombro por muitas vezes que a calcorreamos. O nosso olhar percorre as cimas serranas e mergulha nas profundas corgas, eleva-se aos cumes graníticos e anseia por velhos caminhos e Histórias daquelas paragens remotas.
No fundo deste quadro, surge o Curral do Conho vestido a rigor com as cores de final de Verão. Por esta altura, ainda olhávamos para o nosso destino, rude e distante por entre vertentes íngremes e dobras infinitas na rudeza da paisagem. Iniciando a descido para o Conho, a paisagem transforma-se e mostra outros cenários com os píncaros a elevarem-se aos céus.
O Curral do Conho traz-nos a tranquilidade de um porto seguro. Verdadeiro oásis nos caos granítico, aquele espaço é ponto de descanso antes da profunda incursão nos espaços mais «selvagens» da Serra do Gerês. Com a hora a adiantar-se, decidimos então alterar o nosso destino, seguindo em direcção às Lamas de Modo. Passando as chãs que ficam escondidas do olhar, caminha-se por carreiros esquecidos na paisagem onde as velhas mariolas são testemunho de dias já esquecidos. Existem espaços na montanha onde somente se sentem os passos dos pastores em busca dos seus animais nos dias do estio. Com o passar do tempo, estes espaços fazem parte das memórias esquecidas e escondem-se num cenário que só volta a ganhar corpo no assombro de quem os percorre, de longe a longe.
Subindo a cumeada granítica, o olhar vai mergulhar na Lameira da Mourisca, vislumbrando a peculiar forma que, desde ali, ganha a Meda de Rocalva. Os dois cumes da Roca Negra espreitam por detrás da Mourisca e vemos as corgas a despenharem-se ao longo do vale até chegarem, numa sucessão de pequenas quedas de água, à base das Velas Brancas vigilantes do curral que ali se abriga à sombra que insiste em ali morar quando o Sol mergulha cada vez mais a Sul. As imensas paredes de Porta Roibas elevam-se desde as Sombrosas, assinalando a entrada no Reino Maravilhoso de Miguel Torga, e o Cocão das Quebradas afunda-se para o leito pedregoso do Ribeiro de Porto de Vacas.
Nestes altos que se escondem da vista, desejávamos ter asas e voar como uma águia-real, planando sobre a imensidão dos espaços, mergulhando nas suas profundezas e fazendo rasantes às suas paredes escarpadas. Ou então, calcorrear de forma ligeira pelas suas paredes aprumadas e explorar as corgas profundas com a facilidade com que as cabras-montesas percorrem os caminhos de silêncio em intermináveis deambulações pela serra. Ali, respira-se Natureza e História.
Descendo dos altos, chegávamos às Lamas de Modo e daqui enveredamos por um carreiro que nos levaria ao Porto de Vacas, seguindo então pelo carreiro que, passando perto do Curral da Pedra, nos conduziu aos Prados da Messe.
Foi nos Prados da Messe, e próximo das suas enigmáticas ruínas, que finalmente surgiu o já ansiado descanso e repasto para restabelecer as forças. Estes, são também espaços de História devido às suas ruínas, partes das quais utilizadas para aumentar o actual abrigo pastoril.
Se uns dizem que estas ruínas são o que resta da casa construída para as caçadas reais, outros dizem que foi uma casa dos Guardas Fiscais. Porém, e apesar da insistência de argumentos baseados em ideias feitas e transmissão oral sem base de verdade, nenhum deles tem razão.
As ruínas que agora permanecem nos Prados da Messe, fizeram parte de um edifício construído pelos Serviços Florestais e que foi finalizada em Setembro de 1908. A prova disso encontra-se no livro "Mata do Gerês" (Tude Martins de Sousa, 1926) onde é referido (pág. 132), "não havendo nenhuma casa, ou abrigo, para o pessoal florestal na extensa zona da serra alta, desde a Pedra Bela aos Prados, havia sido solicitada a construção de uma pequena casa no curral dos Prados, que foi feita neste ano (1908). Sendo certo que nenhuns trabalhos haviam sido ainda por ali realizados, não era menos certo que aquela parte da serra era de elevada importância, por ser um dos mais aproveitados centros de pastoreação dos gados vizinhos e ainda por ter a curtas distâncias bons núcleos de arborização espontânea. Ao mesmo tempo, aproveita-se a oportunidade de prestar um bom serviço aos vezeiros de Vilar da Veiga, a quem o usufruto do curral pertence e cujas boas relações de vizinhança convém absolutamente manter, proporcionando-se lhes melhor acolhida do que a que o seu forno lhes dá, o que se fez, destinando-se-lhes metade da referida casa, que em Setembro ficou já concluída."
Iniciávamos agora o caminho de regresso, decidindo percorrer as vertentes nascentes das Albas e seguir pela passagem de Carris de Maceira. Saímos dos Prados da Messe em direcção à Lomba de Burro e daqui tomamos o carreiro mariolado que nos levaria pela encosta das Albas, passando pela Fonte do Caçador e seguindo depois para o topo do Vale do Rio do Forno. Aqui, a paisagem deixa-nos em silêncio! Do topo das Albas, as paredes graníticas precipitam-se no vazio, naquele espaço profundo onde o olhar se perde na busca de algo que nos traga de volta ao nosso ser. Ali, forma-se uma das paisagens mais avassaladoras que a Serra do Gerês tem para oferecer a quem se desafia pelos seus carreiros esquecidos. Passando a parte superior do Vale do Rio do Forno, vemos erguer-se os pináculos das Albas que vigiam os Prados da Messe e seguindo a linha de cumeada para Norte, o Cornogodinho eleva-se com as suas formas características onde o granito é esculpido pelos elementos ao longo dos séculos. O Cabeço do Porto de Cornogodinho esconderá segredos que só a toponímia poderá revelar num emaranhado de padrões e tons formado pelo fechado arvoredo lá no fundo. Finalmente, e compondo este cenário de épicas montanhas, o horizonte é fechado à distância pela proa do Cantarelo que se precipita sobre o Vale do Rio Homem.
Por entre espaços de silêncio e momentos de profundo espanto, seguem-se as memórias de velhos caminhos que procuram passagens por entre blocos de granito. A cada passo, consolida-se a certeza de que se caminha num espaço único e muito especial do Parque Nacional. Se hoje são espaços de silêncio quase esquecidos, terão em tempos sido espaços de trabalho e de vida onde o homem procurou o sustento. Ali, ficaram os testemunhos de velhos muros de pedra solta, esquecidos já das memórias dos lugares em tempos açoitados pela busca do volfrâmio ou pelas noites a cuidar das furnas de carvão.
Passando as pequenas portelas junto de Carris de Maceira, surge-nos a colossal paisagem do Pé de Medela, imenso, grotesto, um colosso tiânico que permanentemente vigia desde as alturas. Ali, os caminhos confundem-se com o passar dos dias, dos anos, da mesma forma que a memória dos dias de pastoreio se desvanesse até à próxima vezeira. na paisagem, para os mais atentos, ficam os velhos abrigos e os enigmáticos muros.
Percorrendo lajes graníticas, somos então chegados à chã onde se abriga o Curral de Carris de Maceira antes de iniciar a descida para Tábuas. A descida faz os olhos cair no arvoredo da Mata de Albergaria e percorrer as profundezas quase inacessíveis da Corga de Cagademos e as paredes alcantiladas das Fragas de Corneda. O Pé de Cabril serve de farol na descida pelas encostas de Maceira em direcção ao curral do mesmo nome tendo também á vista as encostas do Lameirão do Teixo e de Fontaíscos. Do Curral de Maceira, abrigado ao fundo do vale, tomamos o carreiro que, percorrendo entre a margem direita e esquerda do Rio Maceira, nos levará até à estrada e daqui em direcção à Portela de Leonte, terminando assim esta bela jornada pela geresiana serra num total de 15,5 km com 1.013D+.
Ficam algumas fotografias do dia...
Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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