quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O despovoamento da Peneda-Gerês

Chamaram-me a atenção para o artigo "Peneda Gerês - «Despovoamento à vista» com novo Plano" e não pude de achar curiosa a afirmação que diz «(...) sempre apascentaram por aí os gados, retiraram lenha, caçaram e fizeram carvão sem prejudicar a natureza, num são convívio e equilíbrio».

Sendo por um lado crítico do novo Plano de Ordenamento do Parque Nacional da Peneda-Gerês, ao ler esta frase recordei-me de uma passagem do livro "Serra do Gerêz" por Tude de Sousa publicado em 1909 e que aqui transcrevo mantendo as características da nossa língua na época.

"(...)

Para o aproveitamento das pastagens da serra o seu grande regenerador era e é ainda o fogo. De annos a annos queimava-se o monte e ainda agora se queima na parte não pertencente ao Estado. Por este meio afugentava-se o lobo e outros animaes damninhos e obtinham-se renovovos muito appetecidos dos gados.

Claro que toda a vegetação se aniquilava por tal processo e as encostas se desnudavam por completo, indo com o tempo até á negação de toda a vida vegetal, tornando-se escalvadas e aridas.

Por outro lado, a fauna tambem se reduzia. As proprias aves, hoje ainda poucas, eram quasi nenhumas. Nem ellas aqui se podiam demorar e a não ser alguma ave selvagem, acommodada triumphantemente nas inacessiveis e elevadas brenhas onde o mesmo fogo não chegava, tudo o mais desapparecia, afugentado pelos incendios certos, os quaes, destruindo toda a vida vegetal tornava ao mesmo tempo quasi impossivel o viver dos animaes.

Agora, graças á efficaz protecção do regimen florestal, a que grande parte da serra foi sujeita, toda a vida se desenvolve desafogadamente, não sendo raro já deter-se o espirito agradavelmente impressionado ao som de diversos agradaveis cantares, por aves que alegremente saltam pela ramaria, bem como as encostas e aminencias, antes desoladamente núas, ostentam agora as primicias de uma vegetação lenhosa, que promete ser rica e imponente.

(...)"

Fotografia: © Rui C. Barbosa

3 comentários:

joca disse...

Citação interessante Rui, mas temos também que perceber que Tude de Sousa era também uma das partes do conflito. Ele foi, sem qualquer dúvida, uma das partes que melhor pensou a Serra, mas era também um funcionário dos serviços florestais. Ele de facto descreve uma relação algo predatório com a floresta, mas essa relação precisa também de ser enquadrada na envolvente cultural e económica.

Uma caminhada que fiz na Cabreira com o UPB levou-me a reflectir um pouco sobre isso. Tinha relido o "Quando os lobos uivam" de Aquilino Ribeiro e tinha ainda fresco o discurso do advogado em defesa dos povos da serra.

Estranhamente, o que na altura escrevi ganha uma nova actualidade. o PNPG não se está a comportar de forma muito diferente. Esta revisão do POPNPG é profundamente errada porque ofende mais uma vez os mesmos. A ideia de "wilderness" é absolutamente ridícula e artificial. A ser constituída só mesmo com o afastamento da povoação. Só que não estamos em Yellowstone, nem estamos no século XIX. De lá para cá as ciências sociais progrediram muito e já nem na gestão ambiental se aceita como boa prática a exclusão da actividade humana. Eu no texto que escrevi no blogue terminava a dizer que todos somos Teutónio Louva-a-Deus (a personagem de Aquilino que incendeia o pinhal plantado para se vingar dos Serviços Florestais), porque, de uma forma activa ou passiva, vamos deixando que as coisas aconteçam. É por isso que considero importante as tuas iniciativas, que todos façamos um bocado de barulho para tentar que algo se altere. É triste que tenhamos que adaptar o discurso do advogado aos tempos actuais, mas é o que temos andado a fazer. O PNPG é que não se deveria comportar como os Serviços Florestais..

Há um artigo sobre a relação do PNPG com as populações que é interessante ler. Eu publiquei o, em 12 partes, no meu blogue e tenho lá o link para o artigo. O mais interessante é que um dos autores do artigo é o anterior director.

Desculpa lá o testamento.

sobre a Serviços Florestais/populaçãoes: http://asnotasparaomeudiario.blogspot.com/2008/01/o-fsforo-do-teotnio-louvadeus.html

sobre o PNPG/populações:http://asnotasparaomeudiario.blogspot.com/2009/01/parques-e-populaes-1.html

Rui C. Barbosa disse...

Viva!

Sem dúvida que Tude de Sousa era uma das partes do conflito, mas o objectivo da citação é a de mostrar a realidade antes da intervenção dos Serviços Florestais. Ao ler o texto é pertinente colocar a questão "Como estaria a Serra do Gerês hoje sem essa intervenção?" Estaria tal como a conhecemos? Seria um ermo árido sem floresta?

Não estou a dizer que a realidade actual não se deve a quem a moldou ao longo das últimas décadas, mas a serra que conhecemos hoje talvez fosse muito distinta.

O novo POPNPG está pejado de defeitos. Tal como dizes o conceito «wilderness» é totalmente artificial não passando de um conceito matemático e ainda por cima mal pensado com variáveis escolhidas para se obter os resultados pretendidos. Bastava nessa fórmula colocar a variável da presença humana e o resultado seria totalmente diferente.

Infelizmente penso que o futuro nos trará mais tristezas do que alegrias no PNPG, pois estaremos perante dois lados que não parecem querer ceder nas sua pretensões e quem ficará a perder é o país e todos nós.

joca disse...

Não posso estar mais de acordo contigo. A reflorestação do Gerês que foi dos primeiros locais do território nacional a ser reflorestado era um imperativo nacional. Li no final do sec XIX Portugal teria uma mancha florestal de 25% da actual. Basta este dado para imaginar a dimensão do problema. Só que sendo uma necessidade nem sempre foi compreendida, explicada e poucas vezes foram compensados os efeitos laterais. A visita ao Gerês da família real tinha como objectivo acalmar as populações. Já nessa altura as coisas estavam de tal forma que a Câmara de Terras de Bouro não recebeu a família real. Em Campo de Gerês chegou a estar em permanência tropa vinda de Guimarães para acalmar a população que se revoltava. É fácil perceber que para as populações estava em questão a sua sobrevivência. O que dói neste caso é que não se aprende com a história e continua-se a cometer os mesmos erros. Sendo que o PNPG já herdou ódios antigos e que a cada passo são recordados.

A nossa paisagem é resultado dos acasos da história. Se não tivesse ocorrido as invasões francesas e se no meio do ódio a tudo que fosse francês, estimulado pelos ingleses que queriam proteger os seus interesses industriais, a fábrica de vidro que existiu na Bouça da Mó não tivesse sido incendiada a Mata da Albergaria não teria chegado aos nossos dias. O Gerês poderia ter sido mais cedo que a Marinha Grande depois foi. O PNPG não teria sido possível com uma fábrica que à data foi um dos maiores investimentos industriais. Não pudemos ficar reféns da história e todos os dias há direitos históricos que são alterados, mas o que também não pudemos fazer é ignorar a história. Não aprender com os erros e o maior dos erros. É que no meio da turba depois é fácil que as coisas descambem. O caso que citei da fábrica do vidro é um bom exemplo. Os povos de Vilarinho gostam de pensar que foram eles que se revoltaram contra uma fábrica que lhes disputava a lenha, mas ainda no Sábado passado ouvi um historiador a dar conta que mais do que isso pesou o ódio ao iluminismo do clero e brigadas de ingleses que andaram em Portugal a incendiar tudo que fosse desenvolvimento industrial. E no meio dos que se levantam contra algo com boas intenções, pode haver sempre gente que não as tenha tão boas. Sendo que continuo a pensar que nisto da responsabilidade e bom senso a coisa não se divide a meio. O estado terá sempre mais responsabilidades porque também possui mais autoridade.