Chamaram-me a atenção para o artigo "Peneda Gerês - «Despovoamento à vista» com novo Plano" e não pude de achar curiosa a afirmação que diz «(...) sempre apascentaram por aí os gados, retiraram lenha, caçaram e fizeram carvão sem prejudicar a natureza, num são convívio e equilíbrio».
Sendo por um lado crítico do novo Plano de Ordenamento do Parque Nacional da Peneda-Gerês, ao ler esta frase recordei-me de uma passagem do livro "Serra do Gerêz" por Tude de Sousa publicado em 1909 e que aqui transcrevo mantendo as características da nossa língua na época.
"(...)
Para o aproveitamento das pastagens da serra o seu grande regenerador era e é ainda o fogo. De annos a annos queimava-se o monte e ainda agora se queima na parte não pertencente ao Estado. Por este meio afugentava-se o lobo e outros animaes damninhos e obtinham-se renovovos muito appetecidos dos gados.
Claro que toda a vegetação se aniquilava por tal processo e as encostas se desnudavam por completo, indo com o tempo até á negação de toda a vida vegetal, tornando-se escalvadas e aridas.
Por outro lado, a fauna tambem se reduzia. As proprias aves, hoje ainda poucas, eram quasi nenhumas. Nem ellas aqui se podiam demorar e a não ser alguma ave selvagem, acommodada triumphantemente nas inacessiveis e elevadas brenhas onde o mesmo fogo não chegava, tudo o mais desapparecia, afugentado pelos incendios certos, os quaes, destruindo toda a vida vegetal tornava ao mesmo tempo quasi impossivel o viver dos animaes.
Agora, graças á efficaz protecção do regimen florestal, a que grande parte da serra foi sujeita, toda a vida se desenvolve desafogadamente, não sendo raro já deter-se o espirito agradavelmente impressionado ao som de diversos agradaveis cantares, por aves que alegremente saltam pela ramaria, bem como as encostas e aminencias, antes desoladamente núas, ostentam agora as primicias de uma vegetação lenhosa, que promete ser rica e imponente.
(...)"
Fotografia: © Rui C. Barbosa
3 comentários:
Citação interessante Rui, mas temos também que perceber que Tude de Sousa era também uma das partes do conflito. Ele foi, sem qualquer dúvida, uma das partes que melhor pensou a Serra, mas era também um funcionário dos serviços florestais. Ele de facto descreve uma relação algo predatório com a floresta, mas essa relação precisa também de ser enquadrada na envolvente cultural e económica.
Uma caminhada que fiz na Cabreira com o UPB levou-me a reflectir um pouco sobre isso. Tinha relido o "Quando os lobos uivam" de Aquilino Ribeiro e tinha ainda fresco o discurso do advogado em defesa dos povos da serra.
Estranhamente, o que na altura escrevi ganha uma nova actualidade. o PNPG não se está a comportar de forma muito diferente. Esta revisão do POPNPG é profundamente errada porque ofende mais uma vez os mesmos. A ideia de "wilderness" é absolutamente ridícula e artificial. A ser constituída só mesmo com o afastamento da povoação. Só que não estamos em Yellowstone, nem estamos no século XIX. De lá para cá as ciências sociais progrediram muito e já nem na gestão ambiental se aceita como boa prática a exclusão da actividade humana. Eu no texto que escrevi no blogue terminava a dizer que todos somos Teutónio Louva-a-Deus (a personagem de Aquilino que incendeia o pinhal plantado para se vingar dos Serviços Florestais), porque, de uma forma activa ou passiva, vamos deixando que as coisas aconteçam. É por isso que considero importante as tuas iniciativas, que todos façamos um bocado de barulho para tentar que algo se altere. É triste que tenhamos que adaptar o discurso do advogado aos tempos actuais, mas é o que temos andado a fazer. O PNPG é que não se deveria comportar como os Serviços Florestais..
Há um artigo sobre a relação do PNPG com as populações que é interessante ler. Eu publiquei o, em 12 partes, no meu blogue e tenho lá o link para o artigo. O mais interessante é que um dos autores do artigo é o anterior director.
Desculpa lá o testamento.
sobre a Serviços Florestais/populaçãoes: http://asnotasparaomeudiario.blogspot.com/2008/01/o-fsforo-do-teotnio-louvadeus.html
sobre o PNPG/populações:http://asnotasparaomeudiario.blogspot.com/2009/01/parques-e-populaes-1.html
Viva!
Sem dúvida que Tude de Sousa era uma das partes do conflito, mas o objectivo da citação é a de mostrar a realidade antes da intervenção dos Serviços Florestais. Ao ler o texto é pertinente colocar a questão "Como estaria a Serra do Gerês hoje sem essa intervenção?" Estaria tal como a conhecemos? Seria um ermo árido sem floresta?
Não estou a dizer que a realidade actual não se deve a quem a moldou ao longo das últimas décadas, mas a serra que conhecemos hoje talvez fosse muito distinta.
O novo POPNPG está pejado de defeitos. Tal como dizes o conceito «wilderness» é totalmente artificial não passando de um conceito matemático e ainda por cima mal pensado com variáveis escolhidas para se obter os resultados pretendidos. Bastava nessa fórmula colocar a variável da presença humana e o resultado seria totalmente diferente.
Infelizmente penso que o futuro nos trará mais tristezas do que alegrias no PNPG, pois estaremos perante dois lados que não parecem querer ceder nas sua pretensões e quem ficará a perder é o país e todos nós.
Não posso estar mais de acordo contigo. A reflorestação do Gerês que foi dos primeiros locais do território nacional a ser reflorestado era um imperativo nacional. Li no final do sec XIX Portugal teria uma mancha florestal de 25% da actual. Basta este dado para imaginar a dimensão do problema. Só que sendo uma necessidade nem sempre foi compreendida, explicada e poucas vezes foram compensados os efeitos laterais. A visita ao Gerês da família real tinha como objectivo acalmar as populações. Já nessa altura as coisas estavam de tal forma que a Câmara de Terras de Bouro não recebeu a família real. Em Campo de Gerês chegou a estar em permanência tropa vinda de Guimarães para acalmar a população que se revoltava. É fácil perceber que para as populações estava em questão a sua sobrevivência. O que dói neste caso é que não se aprende com a história e continua-se a cometer os mesmos erros. Sendo que o PNPG já herdou ódios antigos e que a cada passo são recordados.
A nossa paisagem é resultado dos acasos da história. Se não tivesse ocorrido as invasões francesas e se no meio do ódio a tudo que fosse francês, estimulado pelos ingleses que queriam proteger os seus interesses industriais, a fábrica de vidro que existiu na Bouça da Mó não tivesse sido incendiada a Mata da Albergaria não teria chegado aos nossos dias. O Gerês poderia ter sido mais cedo que a Marinha Grande depois foi. O PNPG não teria sido possível com uma fábrica que à data foi um dos maiores investimentos industriais. Não pudemos ficar reféns da história e todos os dias há direitos históricos que são alterados, mas o que também não pudemos fazer é ignorar a história. Não aprender com os erros e o maior dos erros. É que no meio da turba depois é fácil que as coisas descambem. O caso que citei da fábrica do vidro é um bom exemplo. Os povos de Vilarinho gostam de pensar que foram eles que se revoltaram contra uma fábrica que lhes disputava a lenha, mas ainda no Sábado passado ouvi um historiador a dar conta que mais do que isso pesou o ódio ao iluminismo do clero e brigadas de ingleses que andaram em Portugal a incendiar tudo que fosse desenvolvimento industrial. E no meio dos que se levantam contra algo com boas intenções, pode haver sempre gente que não as tenha tão boas. Sendo que continuo a pensar que nisto da responsabilidade e bom senso a coisa não se divide a meio. O estado terá sempre mais responsabilidades porque também possui mais autoridade.
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