Caminhamos como espectros de luz por entre uma escuridão tão densa como os nossos medos mais primitivos. Procuramos por entre as sombras o olhar fugaz de um duende, a compaixão de uma fada ou o grito de uma bruxa vinda das profundezas das memórias dos Celtas. No enredilhado de ramos e troncos as corujas eram as guardiãs, afugentando as garras viscerais que num ápice nos transformariam na casca grossa de carvalho ou numa criatura menos aprazível aos olhos do Homem.
Dos píncaros da montanha chegava-nos o ar frio e cortante dos reinos do gelo e do passado. O caminho, essa eterna passagem para um mundo dentro dos nossos mundos, marcava a fronteira entre a realidade dos sonhos e a imaginação dos nossos dias, pois que ninguém diga que isto que se vive é a espuma dos nossos tempos.
Por entre o reflexo dos espectros e a escuridão trespassada por feixes de luz, quais batutas loucas a dirigir uma orquestra que não escutamos, surgiu-nos o cantar da nascente da Abelheirinha. Os braços estreitos e ossudos que na passagem nos tentam agarrar vão sendo desviados a golpes de cintura e aos poucos nos aproximamos da Água da Pala. Por entre o lusco fusco das primeiras luzes da manhã, parece-nos ouvir os mineiros que descem a montanha naquele longínquo Inverno onde a neve tapou os caminhos e encurtou a esperança dos homens. Ao longe, a cinza das nuvens cobre a paisagem com um manto que nos turva a visão.
Com milhares de passadas, o caminho não se torna mais leve a cada passagem, mas sim mais difícil de vencer. Os pulmões enchem-se com um ar frio que nos faz recordar que estamos, ainda, vivos, mas por vezes envoltos num torpor de um calor que desejamos. Parámos, olhamos e arrepiamos caminho até chegar ao Cagarouço, a corga que se esconde na montanha. Mais adiante, as Curvas do Febra deixam-nos olhar para trás e depois avançar com o entusiasmo de saber que se calhar...
O Modorno é o eterno guardião do vale. Imponente como um Titã que defende a memória de outros tempos e daquele lugar, escondendo tanto segredos... ainda. Uma paragem. Olhamos para o vale que se abre diante de nós para nos dizer que manda ali. Nós, olhamos e compreendemos a mensagem, gritando mentalmente a nossa submissão. A Água da Laje do Sino marca como que a entrada no resto do vale que se mantém escondido e incógnito. Nós, fingimos não o conhecer, pois a cada passagem é o vislumbre de algo que nunca vimos. Pois é assim que se deve caminhar no Gerês: aquilo que pensamos conhecer é algo que nos mostra que nada conhecemos. Ai daqueles que te dizem conhecer!
A conversa é já intercalada por longos momentos de confortável silêncio no qual escutamos os sons que há já muito tempo nos acompanham, Lá ao fundo o Rio Homem passa agora ao lado do Teixo com o seu pequeno curral e as memórias dos tempos dos carvoeiros. As cicatrizes do incêndio vão permanecer por muitos anos e marcar a paisagem de uma forma profunda e terrível. Ali, parece estarmos num deserto de rocha onde paira o nada e o silêncio domina a outra margem. Chegamos às Águas Chocas e os primeiros sinais da neve estão por ali, espalhados de forma tímida. Estes dominam já a paisagem das Abrótegas que nos surge coberta com um manto branco. Aqui, chega-se com coragem e com a vontade de aprender. Aqui, não se chega com arrogância.
Já tinha saudades de ouvir a neve por debaixo das botas, sentir o frio e o leve tocar dos cristais de gelo que ora aqui, ora ali vão-nos adornando.
O chegar às ruínas foi feito por entre um denso nevoeiro e as suas sombras, imóveis, marcavam aquela tela cinzenta.
Passado e memórias são o que fazem aquele local. Paz e sossego é o que domina... até chegarem os barulhentos cujos gritos e berros se ouvem ao longe. De facto, o Inverno está a chegar...
Algumas imagens do dia...
Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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