segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

245... Às Minas dos Carris em devoção a Trebaruna e Ataegina


Latrono caminhava ao longo do vale. As suas forças eram já escassas e a visão das nuvens negras no fundo do Homem traziam um sentimento de receio. Havia deambulado por muitas luas em busca do vale e finalmente o encontrara para lá do bosque de carvalhos, azevinhos e medronheiros. O rio, esse corria com a força das prematuras neves, abrindo o seu caminho até ao já longínquo mar.

Ao longe, o uivo do lobo marcava a direcção a seguir. Algumas gotas gélidas de chuva caiam-lhe no rosto. O frio era a celebração da morte simbolizada pela nuvens negras que se aproximavam. Sendo de manhã, o momento trouxe-lhe recordações da noite que eventualmente iria chegar. Matou a sede na velha Fonte da Abelheirinha e continuou a sua jornada, vale acima.

She brought the Night hidden in her sad Wolf eyes
The perfume of a twilight, her strongest scent
Half Wolf, Half female - what a strange wedding
Mother Nature has offered us to see...

O caminho fora já muitas vezes trilhado pelos guerreiros de outrora carregando os seus pensados escudos e espadas de bronze. Naquela altura, Latrono rogava forças a Trebaruna e prometera-lhe um nicho no alto da montanha. No seu pensamento lembrava-se da sua longínqua casa e pelo rosto corriam-lhe as recordações da sua amada. Trebaruna iria proteger a sua casa e a sua família, afastando-o da morte escondida naquelas montanhas e dando-lhe força para as batalhas que iria travar com os demónios do Velho Mundo.

Chegado à Água da Pala, Latrono contemplou os píncaros rochosos que formavam o vale que se abria para Poente e iluminada pela ténue luz da manhã, vislumbrou entre as nuvens os resquícios da neve que se depositava no topo da deusa Louriça. Ali, Latrono descansou abrigado pelas folhagens de um velho azevinho e adormeceu por momentos reconfortado com a protecção da deusa. O seu pensamento andou tresmalhado pelo espaço e pelo tempo, visitando as estrelas e a Lua Cheia que em breve iria reinar no céu frio. 

Her mask lays lost in a fatal dawn
Closed were the eyes of the Sun. He sleeps.
And in the name of Her Father.
She will kill. My child kills.

Por entre os seus pesadelos, Latrono chorou pela morte à medida que as premonições lhe percorriam os sonhos. Viu a sua aldeia em chamas e a morte de Trebaruna, a decadência dos Homens e a ruína do mundo. Acordou sobressaltado pelo uivo que agora estava mais perto. Em seu redor, formara-se um círculo de sangue trazido pelos demónios do Velho Mundo. Parecia encontrar-se no meio de um ritual que não compreendia, pois na realidade não acordara. Latrono estava no estranho limbo que antecipa a realidade e do qual por vezes é difícil fugir pois a fronteira entre a realidade e a fantasia é muito ténue por aquelas paragens.

Um relâmpago!... ou pelo menos parecera como tal. Porém, as nuvens escuras haviam já clareado. O vento frio cortava-lhe a pela como lâminas mal afiadas. No seu rosto o vento gélido fazia-se sentir de forma peculiar. Levando as suas mãos à sua pele, Latrono notara que havia chorado e por momentos, por entre o torpor do despertar, lembrou-se do seu sonho. A cabeça latejava e o corpo ainda estava cansado. De facto, mais cansado parecia...

You nightly birth. A requiem God can't forget.
For your life is just a celebration of his death
Without his thorns in her heart. She wears a shadow as face.
A werewolf masquerade. In her eyes the wolfshade.

Era hora de retomar a caminhada. Porém, antes de reiniciar a jornada e deixar para trás a Água da Pala, retirou do seu alforge uma pequena flauta pastoril e cantou uma música a Trebaruna...

Trebraruna filha da Dor
Guerreira sagrada, Deusa do Amor
Trebraruna teu leito semente
Acolhe-nos agora num muy doce abraço
Trebraruna és Vida és Morte
da Lua és filha, dos Lobos consorte
Trebraruna pagão é teu ventre
Ansiado refugio de quem ainda te sente
Viva!

Trebraruna és tu quem nos gera
Alimento teu seio d'Amor e de Guerra
Trebraruna a tua voz é
a melodia mais doce da nossa Terra
Trebraruna nós tuas crianças
Beijamos teus olhos cerrados com fervor
Trebraruna cantamos para ti
Somos teu eterno, fiel trovador

Do alto do vale, no topo das suas paredes graníticas alcantiladas onde a coragem dos Homens se transforma no choro de uma criança, um lobo escutava a sua voz que ecoava por todo o vale. Trebaruna ficaria satisfeita e sem dúvida que a jornada seria agora menos penosa, pois o caminho ainda era longo e apresentava-se cheio de medos e pavores...

Ajustando o seu alforge e aconchegando as suas roupas, Latrono caminhava agora em direcção à Ribeira do Cagarouço. Do outro lado do vale, vislumbrou os velhos abrigos que serviram de refúgio aos Homens, esconderijo e protecção dos velhos demónios que em outros tempos dominaram aquele vale. Em certos dias do ano, quando a Lua se escondia da Terra, os espíritos que vagueiam a mente do Homem caminham sobre a Terra, matando e esventrando os homens sós. Era uma maldição deixada pelos derrotados das velhas histórias que ainda hoje se contam em baixa voz e por detrás de portas nas noites de eclipse. Nessas noites, espectros de medo percorrem as colinas e baixam às aldeias, batendo às portas em buscas dos mais desprevenidos. Nos seus olhos queima a chama dos Infernos, desafiando a luxuria daqueles que dormem profundamente enquanto vivem. O desejo é assim o túmulo, um sepulcro onde os malditos se aprisionam, envoltos numa mortalha de horror e prazer, os seus corpos eternamente torturados.

She brought the Night and by the night was brought
We are but children of the powers she had set free
Strange are the ways of the wolfhearted...

Ao passar a Ponte do Cagarouço um vento forte surgiu do profundo de onde a ribeira emerge. O vento trazia o pessonhento bafo da morte. Acoitado pelo fedor, Latrono desembainhou sua espada rapidamente, mas no momento tropeçou num ramo caído e desequilibrado, caiu no chão. A ribeira transformou-se numa malaria de vísceras e sangue. Foi então que a sua atenção foi aprisionada pelos gritos dos animais sacrificados em nome do Deus cristão, a praga da Terra. Em nome da fé, o Homem havia-se corrompido a caminho da sua inevitável destruição. Sozinho perante tamanho horror, Latrono viu o seu coração encher-se de raiva e ódio, e ali jurou vingança por todos os animais em nome de Ataegina, sua deusa da fertilidade, da Natureza, da cura e do renascimento, pois a sua jura faria renascer um Mundo Novo onde Homem e animais viveriam em paz e harmonia.

Nesta altura, muitos bode e cabras se abeiraram de Latrono e formaram a sua guarda por entre o silêncio e a paz que na altura inundou o vale. Assim, ficou Latrono por longos minutos, numa contemplação da Natureza que o rodeava.

Um a um os animais foram-se embrenhando nos bosques e nas matas que cobriam o vale com as cores de Outono. O guerreiro prosseguiu a sua jornada vale acima e depois de passar as Curvas do Febra, chegava ao abismo do Modorno. A paisagem idílica da neve nos altos cumes e as cores das faias na pequena corga, davam um toque especial àquele lugar. Um pouco mais adiante, Latrono contemplava já o vale que ficara para trás.

Latrono cantou então a Ataegina e o seu cantar foi acompanhado pelos uivos dos lobos...

Na Ara da Vida jaz uma morte
A ti te lanço a minha sorte
Ataegenia triade fatal
Pálida Deusa, doce e teu mal

Centenas de corvos sobre o rochedo
Cantam em coro historias de Medo
De Primaveras que a morte abraça
Em ti encontram a sua desgraça

Devotio Ver Sacrum
Devotio Consecratio
Capitis Dirae
Rainha da Noite, Rainha Natura
Saudoso berco primaveril

Já se choram filhos perdidos
Para terras amargas sem retorno
Onde a voz dos Deuses Perdidos
Bebe o povo o sangue do corno

Corças alvas trazem esperança
Lembram destinos, a vitoria
Nobre Guerra, furiosa dança
Do po sai um rumor de gloria

Devotio Ver Sacrum
Devotio Consecratio
Capitis Dirae
Rainha da Noite, Rainha Natura
Saudoso berço primaveril

Rogando a Ataegina, Latrono desejava a vingança e a morte àqueles que traziam o mal da Cruz e que adoram um instrumento de morte. 

Quando a sua voz se perdeu nos recantos escondidos do vale, fez-se o silêncio somente rasgado pelo som do vento vindo de Nascente. Latrono sabia que o final da sua jornada estava perto, porém, as suas botas tornavam-se já pesadas no caminho pejado de rochas afiadas. De repente...

The Majestic horns of Baphomet
are indeed our occult banners proudly up in the air!
The androgenious light of Lucipher
is our noble passion, most dear and rare!

Oh! Faustian spirit of conquest
May be thy allied in this infimious battle
Against the Arauts of Desrespect
Those who step with muddy feet the sapient inscriptions of our
cradle.

To our strenghtening I proudly confess:

I worship thee, for they are my weapons to hurt god.

No topo da montanha erguia, rasgando os céus, uma cruz em chamas. Homens vestidos de negro sacrificavam crianças em devaneios orgásmicos corrompendo a Mãe Natureza!

Oh! Great wings of Beelzebuth
Will you honour me and lay the head
of a son of caym, in the soft sands of Manitou
Where I'll sleep under this neophyth Sky of Anxiety.

For the dawn of Knowledge has a Southern Sign
Delfos will once again desveil its light
And those with eyes will drink this precious wine
But for the blind, Ignorance shall be the only sight!

To our strenghtening I will re-affirm:

I worship thee. They are my Shield.
And their message I shall reveal.

Latrono viu então que por todo o lado se ergueram templos de devaneio. Homenagens a um Deus menor. A sevícia e a avareza daqueles que em nome do 'bem' desgraçam a Humanidade. A morte e a ruína do mundo!

Because: "Quod sciptum, Scripsi!"

And this Southern blend of esoteric sapience
This sensual Mediterranic Philosophy
Will be the only and holy science
And these lines both dream and prophecy!

"Ecce Homo!" - Those you'll call the Wise
Who will destroy this pitful hole of common sense
of desrespect for the true occult devise
Those who from, the lambs, shall feel the sharpened spears of
Intelligence!

I worship thee. "Quod sciptum, Scripsi!"
I worship thee. "Consummatum est!"

Latrono viu a miséria do Homem. Hordas de guerreiros combatiam em nome de Cristo, a personificação do verdadeiro mal! O massacre de inocentes em nome de Cristo...

As I undress you of Pagan beauty
Who embrace my Sex with all your passion and strenght
The lost chimera of Virginity will be your true purity
And thy Crownleyian erotic laws will rule at last!

Latrono lutava então com os demónios vindos das profundezas da Terra e na ruína do mundo, derrotou os mais fortes no topo da montanha que chorava, com as suas lágrimas despenhando-se pela Água da Laje do Sino. No Teixo esventrou o último demónio cristão, livrando a Humanidade do medo e do horror. 

Latrono estava porém ferido de morte. Arrastando o seu corpo, superou, cambaleante, as agruras das Águas Chocas e chegando às Abrótegas teve o vislumbre do seu destino. Perante si, o véu das nuvens abrira-se e o alto da montanha surgira perante o fundo negro que começava a envolver toda a imensidão em torno de si. Pesava-lhe agora o seu escudo e abandonava a sua espada... Ferido de morte, o cheiro do seu sangue atraiu os lobos. Porém, estes não lhe queriam mal, pois este é um sentimento que não existe no animal. Os lobos formaram um cortejo, o cortejo fúnebre de Latrono que então desmaiou, caindo na neve fria que já adornava aquelas paragens. Os lobos levantaram então o corpo do guerreiro e levaram-no para o alto dos Carris. Ali, Latrono despertou por breves momentos do seu torpor.

Estava agora mais frio, mas o vento gélido já não soprava. A neve começara a cair e do fundo do vale uma névoa começava a elevar-se. A sua visão tornara-se turva e o mundo à sua volta mais torpe. No limite da sua existência, Latrono viu duas figuras femininas que se aproximavam. O seu silencioso caminhar parecia como que levitar sobre o chão... Trebaruna e Ataegina acompanhavam agora o velho guerreiro a caminho do seu descanso final. No seu último pensamento, uma lágrima caiu no chão... a memória do seu Amor perdido.

Oh, quão eterna é agora a noite de Latrono. Um coração que se aperta no peito e se deixa levar na veluda ternura do medo. Um leve canto ressoa por todo a montanha vindo das profundezas medievais dos nossos medos, adornado de palavras vãs e sentimentos vazios. Na noite, cada sombra é companheira do amor na escuridão que nos arrasta para a profundeza do abismo... afasta-nos das garras de um deus menor e nos leva para um inferno gelado que nos cria uma nuvem de vapor na respiração do ar frio que nos corta a pele como mil lâminas mal afiadas.

São demónios do passado, temores dos tempos antigos.

Perante a imensidão da eterna escuridão em tons de negro, são as noites frias dos nossos sonhos.

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Textos em itálico de Moonspell retirados de "Wolfheart" (1993): "Wolfshade (A Werewolf Masquerade)", "Trebaruna" e "Ataegina"; "Under The Moonspell" (1994): "Tenebrarum Oratorium (Andamento I / Erudit Compendyum)" e "Tenebrarum Oratorium (Andamento II / Erotic Compendyum)".






























































































Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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