segunda-feira, 21 de março de 2016

Trilhos seculares - Nas alturas e alcantilados de Cabril


Não me vejo somente como um «montanhista» que desafia a montanha e que de lá acaba somente por trazer as memórias e as sensações de um dia de contemplação. A minha presença na montanha, em particular da Serra do Gerês, é muito mais do que isso. Quase que posso dizer ser um estudioso do Gerês. Não que faça profissão disso, infelizmente não é assim, mas gosto de compreender os locais que visito em toda a sua plenitude, principalmente na sua história e na sua relação com o Homem que os foi moldando com milénios de presença.

Assim, acabam por ser muita visitas aos mesmos locais com o intuito de os compreender, estudar, saber mais, o que me leva a descuidar muitos outros, como por exemplo, aquela imensa parede perante Cabril. Curiosamente, Cabril foi um dos locais que me abrigou muitas vezes nas minhas primeiras incursões ao Gerês. Porém, acabaria por se tornar somente um ponto de passagem para outra paragens.

Foi com o intuito de o conhecer melhor que decidi certo dia propor ao Ulisses Pereira que fosse o meu guia por aquelas paragens. Deixem-me falar um pouco do Ulisses... O Ulisses Pereira é daqueles homens que já não se encontram muito pelas nossas aldeias. O Ulisses preza as suas raízes e as homenageia todos os dias ao não deixar esquecer as pequenas coisas que distingue e particulariza cada lugar. A memória das ladainhas e dos contos de infância, as recordações dos dias de pastoreio quando criança, o querer compreender cada ruga do rosto dos idosos da sua terra, o tentar fazer a junção do novo com o velho na tentativa de abrir consciências para novos paradigmas, a memórias dos topónimos e o seu significado. Neste dia o Ulisses, que é homem de Cabril, mostrou-nos a humildade com que se deve saudar a serra, a montanha como um ente muito acima de nós. Assim, foi com uma profunda humildade que segui o Ulisses e foi com um grande coração e sempre um sorriso estampado no rosto que o Ulisses nos falou das suas memórias e nas memórias da sua aldeia. E só por isto, valeu a pena aquele dia e o esforço dos grandes declives.

Eram 4:00 quando acordei e por entre o inebriar do sono, escutei a chuva que se desfazia em gotas contra o vidro da janela. Lá fora, no breu da noite, chovia copiosamente. Voltei a adormecer embalado pelo som da chuva e o calor tépido dos lençóis. Enquanto que me acomodava, os gatos iam rosnando, impaciente por lhes estragar a perseguição na liberdade do sonho.

O dia acabaria por surgir nublado, mas a chuva deixara de ser tão intensa. Se se mantivesse assim já não seria mau. Com tudo já preparado do dia anterior, embarquei no corcel verde e segui num trotear rápido para o ponto de encontro onde já se encontravam os camaradas de jornada. Seguimos então para Cabril, o nosso segundo ponto de encontro, onde aguardava o nosso guia e mais dois companheiros que se juntariam a nós. Após um pequeno-almoço rápido, iniciamos então a nossa jornada.



Esta iniciava-se em Cabril e de seguida dirigimo-nos através de Cavalos para o Rio Cabril e passamos por Porto de Chãos, Chão e atravessamos o rio no Pontelhão. Daqui, seguimos para o Carvalhal e entramos num íngreme estradão passando depois por Azerim, Buracos, Queixadoiros, Cavada, Gavião, Corga do Gavião e chegamos a Taboucinhas. Por esta altura a serra já me havia posto no lugar e o ritmo inicial foi substituído por um passo mais pausado que me permitiu ir apreciando a paisagem que se iam afundando atrás de mim. Por vezes, o vislumbre da Fecha marcava os lugares mais escuros da serra encoberta, aqui e ali, por uma névoa que caprichosamente nos mostrava as vicissitudes da orografia.



Deixando Taboucinhas para trás, seguimos então para Porta Fernandes e passamos depois pelo Porto Tapado, Penedo de Encosto, Curral do Carvalho, Teixinhal, Couçadoiro e mais acima subimos até às Lajes de Lagoa, chegando depois a Lagoa. Esta encontrava-se repleta de água como que à espera dos dias primaveris que a vão cobrir com pequenas pétalas brancas tornando-a num verdadeiro oásis para a vida anfíbia que ainda vai despertar do inebriante frio do Inverno. Seguimos depois para o magnífico Abrigo de Lagoa, que foi o local de descanso e repasto, aquecendo a alma ao lume que em pouco tempo se faz crepitar.



O Abrigo de Lagoa foi recentemente recuperado pelas gentes de Cabril. O abrigo anterior estava já em más condições e os compartes acharam por bem fazer algo por aquele velho e decrépito edifício, recuperando-o e melhorando as condições de abrigo não só para os pastores e para as gentes das aldeias, mas também para aqueles que por ali passam em demanda de altas paisagens e profundos vales. Infelizmente, e numa atitude que só pode ser compreendido como de má vizinhança e de perseguição, o Parque Nacional da Peneda-Gerês decidiu multar em vários milhares de euros aqueles que decidiram fazer tal obra. Talvez se vários abrigos destes existissem pela serra se evitasse o triste espectáculo que ocorreu no dia 9 de Janeiro nas Minas dos Carris. Mas quando algumas inteligências são mais pequenas do que aquilo que se assumem, não há canudo que lhes valha...

A paisagem era bastante diferente daquela que tinha memória de há uns dias atrás. Nessa altura, era a neve que dominava a paisagem com os picos serranos do Gerês pintados de branco. Neste dia, a neve destacava-se, resistente, do cinza granítico reforçado pelo pesar das nuvens que a todo o momento nos ameaçavam de chuva. Em certos momentos, a luz do sol e o seu calor tornavam-se mais fortes, para logo serem ocultados pela passagem de uma nuvem mais pesada. Era hora...

Terminando o nosso descanso, era então hora de regressar a Cabril. Deixando o nosso abrigo para trás, rumamos em direcção ao Lago Marinho, seguindo depois para Virtelo, e iniciando a íngreme descida para Cabril por Vale Pedra Cavalos, passando nos Picotos, Chã das Edras, Chã da Escaleira, Lajes da Escaleira e Vale da Escaleira, que nos proporcionou magníficas e únicas paisagens sobre o vale de Cabril e dos alcantilados da Surreira do Meio-Dia. A descida continuou através da Laje da Ponte, Aguieira e atravessamos o Rio Cabril na Ponte do Bico, subindo depois para Caselas, Chãos e finalmente Cavalos, chegando então a Cabril.

Foi um dia único e peculiar de montanha na presença de um guia magnífico e ao qual humildemente devo e agradeço todos os topónimos e orónimos utilizados neste texto.

Obrigado Ulisses e aos restantes camaradas de caminhada!

Algumas fotografias do dia...

































Fotografia: © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

1 comentário:

nat. disse...

Como gosto de ver aqui todas as fotos do Gerês que publica...
E que saudades do Gerês!
Cheira a férias e a paz quando por aqui passo...