Este foi um dia no qual tudo se conjugou para que a Natureza proporcionasse as paisagens pelas quais desejava há já algum tempo. Se o primeiro nevão da época em Novembro havia sido por entre céus escuros e nevoeiro, o dia 19 de Fevereiro de 2016 trouxe o Sol, a neve e o dia que posso considerar ameno para mais uma incursão às Minas dos Carris.
A curiosidade pelas Minas dos Carris surge-nos porque alguém já ouviu falar ou esteve numas ruínas nos píncaros geresianos. Situadas no extremo Oeste dos limites do concelho de Montalegre, o acesso principal para as Minas dos Carris é feito através do concelho de Terras de Bouro. Na realidade, não existe qualquer indicação bem visível que nos mostre o caminho certo para Carris, e por um lado se bem que parece contraditório, ainda bem que assim é! A única indicação do trilho que estará visível ao observador minimamente atento encontra-se junto do início da antiga estrada mineira, mesmo antes da cancela e ao lado da ponte sobre o Rio Homem. Gasta pelo tempo, uma indicação pouco visível pintada a tinta branca indica “Carris” e uma seta aponta nessa direcção.
O caminho (totalmente representado na Folha 31 da Carta Militar de Portugal) inicia-se a uma altitude de 720 metros e rapidamente nos apercebemos que não será um percurso fácil para os mais desprevenidos. A sua dificuldade vai aumentando ao longo do percurso não tanto pela inclinação, mas mais pelo estado do piso. Em quase 9,8 km de extensão, é na sua maioria composto por pedra solta que dificulta a progressão e são escassas as extensões em que o terreno é suave. Na quase totalidade do seu comprimento a velha estrada é acompanhada pelo jovem Rio Homem e o seu rumor por entre as rochas acompanha-nos quase sempre até chegarmos à Chã das Abrótegas.
O caminho para as Minas dos Carris está em grande parte inserido num vale de extrema importância para o Parque Nacional da Peneda-Gerês, no interior da Área de Ambiente Natural e classificado como Zona de Protecção Total e Zona de Protecção Parcial do Tipo I, segundo o Regulamento do Plano de Ordenamento desta área protegida.
O percurso pode ser dividido em duas partes: da Portela do Homem até ao Modorno, e do Modorno até aos Carris. O Cabeço do Modorno, silhueta delimitadora do fundo do vale para quem o sobe, atinge-se após se ter vencido já cerca de 300 metros de altitude por entre pedra solta e uma paisagem única de um vale glaciar. A partir do Modorno, onde nos podemos maravilhar com o Vale do Homem e as suas quedas de água, nomeadamente a impressionante Água da Lage do Sino, o caminho vai apresentar, em algumas zonas, uma inclinação imperceptível há medida que nos aproximamos da Ponte das Águas Chocas, sendo uma caminhada mais fácil a partir daí e até uma área mais plana na Abrótegas após a qual se inicia a subida final para o complexo mineiro, já na Corga da Carvoeirinha (ou da Carvoeira). À passagem pela Ponte das Abrótegas somos presenteados por uma paisagem que nos leva a percorrer com o olhar desde o Alto do Pássaro passando pelo Outeiro Redondo até às alturas do Altar de Cabrões já na raia e o marco geodésico dos Carris.
No início dos anos 90 ainda era possível observar ao longo do Vale do Alto Homem uma linha de postes de madeira sobre os quais assentava o cabo metálico de telefone, que permitia as comunicações com o complexo mineiro. Nos nossos dias são raros os sinais, ao longo do caminho, daquilo que mais tarde iremos encontrar no sopé de Carris. Tirando os últimos trabalhos executados nos anos 90 pelo Parque Nacional da Peneda-Gerês, com o objectivo de melhorar o caminho para a reflorestação de zonas de alta montanha, é possível observar, mesmo no seu início, conjuntos alinhados de rochas que marcam o que então teria sido uma estrada privada em terra batida que permitia a passagem de camiões e veículos ligeiros para o transporte do minério, abastecimentos e não só. Antes do início da construção da estrada existia um caminho de «pé posto» que ligava o antigo caminho florestal que tinha origem na Portela de Leonte aos Carris e pelo qual muitos dos materiais que seriam utilizados para a construção do complexo dos Carris eram transportadas em ombros pela quantia de 2$50 nos idos anos de 40.
Ao longo da agora decrepita estrada vamos observando um ou outro pequeno muro, ou um ou outro alinhamento de pedras que nos podem sugerir a existência de uma rude estrada serrana. O primeiro sinal sólido da existência de algo mais complexo na serra surge-nos junto da zona que dá pelo nome de ‘Água da Pala’. Aqui, e já coberta pela vegetação, observamos à nossa esquerda uma área delimitada por um pequeno e baixo muro. Em tempos terá servido de curral para abrigo dos rebanhos, tal como é referido num artigo publicado no Século Ilustrado em Março de 1955, tendo também servido como armazém relacionado com a exploração mineira ou manutenção do estradão por parte de cantoneiros. Do lado direito podemos observar, também por entre a vegetação, uma pequena construção com tijolos de cimento que nos dá a ideia de ser uma pequena guarita, sendo também referenciada como um pequeno abrigo dos cantoneiros que mantinham o estradão em estado de circulação. Esta zona antecede uma ponte em pedra e todo este lugar é extremamente peculiar e bucólico.
Na Água da Pala iniciava-se um trilho de pé posto (embora não estando assinalado na Folha 31 – Outeiro 'Montalegre' da Carta Militar de Portugal à escala 1:25 000, editada em 1997 pelo Instituto Geográfico do Exército e baseada em trabalhos de campo levados a cabo em 1996, surge numa edição mais antiga baseada em trabalhos de campo desenvolvidos em 1949.), ou carreiro, que atravessava o Rio Homem e subia ao longo do rio pela sua margem direita no sopé da Encosta do Sol até se dividir para o topo do Cabeço do Modorno e para os Carris, algumas centenas de metros após atravessar novamente o Homem sensivelmente à cota de 1050 metros de altitude.
Não havendo registos cartográficos deste trilho em direcção aos Carris, documentos fotográficos atestam a sua continuação para as zonas mais elevadas da serra. Quem observa a Encosta do Sol a partir da Água da Pala, terá a sensação de ainda poder vislumbrar o traçado deste pequeno trilho composto em algumas zonas por um chão lageado e complementado por pequenas pontas sobre pequenos cursos de água. Este traçado sem dúvida nos proporcionaria uma visão distinta do vale do Rio Homem. Porém, e após várias tentativas de observar no terreno a sua progressão, cheguei à conclusão de que este trilho já desapareceu em muitos locais e será extremamente difícil tentar seguir o seu antigo percurso, senão mesmo impossível.
Após passar a Água da Pala, o caminho continua a sua lenta subida em direcção aos Carris. Na margem esquerda do Homem, temos a oportunidade de observar os picos escarpados que delimitam os Prados Caveiros . Esta fase mais plana do trilho segue pela Ponte do Cagarouço (ou Cagarrouço, conforme a designação dada em S. João do Campo.) sobre a Ribeira do Cagarouço, um pequeno afluente do Rio Homem, que percorre um estreito vale encaixado. É nesta fase que o caminho se volta a inclinar ligeiramente e ouvimos o rugido do jovem rio a poucos metros de distância. Por entre a vegetação é por vezes fácil ter um olhar sobre lagoas que no Verão são sempre uma forma de retemperar forças. O trilho ultrapassa a cota dos 1000 metros de altitude momentos antes de entrarmos numa fase do percurso onde vamos superar vários metros de altitude em pouca distância, ultrapassando assim um bom declive. O trilho flecte para a direita no que são conhecidas como as ‘Curvas do Febra’, um dos cantoneiros responsáveis por aquela parte do caminho, e em pouca distância subimos 30 metros em altitude antes de flectir para a nossa esquerda. Nesta parte do caminho podemos ter uma imagem do Vale do Homem só superada pela paisagem que nos aguarda poucos metros após a passagem da Ribeira do Modorno. Um pouco mais à frente entramos numa parte do caminho que é ladeado, à direita, por uma parede sólida de granito e, à esquerda, por uma queda de 50 metros que termina no Rio Homem. O declive aqui é acentuado e notório, mas o esforço para chegar à meia distância merece a pena.
Somos chegados a meio do caminho e o descanso na Ponte do Modorno é merecido. A água da ribeira é sempre fresca e corrente, mesmo no Verão. Ao entrar neste pequeno vale temos a visão de uma pequena queda de água por debaixo da ponte e são poucos os que resistem a uma fotografia. Situados na ponte em direcção ao final do vale, por onde vemos o Rio Homem, temos à nossa direita o imponente Cabeço do Modorno, uma escarpa granítica que atinge os 1317 metros de altitude. Conheci todas as pontes até ao Modorno já em cimento, mas o meu fascínio por este vale e por Carris começou a ser despertado pelas velhas pontes de madeira que antigamente permitiam a passagem célere e um tanto ou quanto aventureira. É sempre bom descansar e retemperar forças junto do Cabeço do Modorno, mas logo ali à frente temos uma surpresa à nossa espera. Logo após abandonar a Ponte do Modorno e seguindo o nosso caminho, vamos encontrar uma das mais fantásticas paisagens que a Serra do Gerês tem para nos oferecer. É com deslumbre que observamos o Vale do Alto Homem e a forma como este se projecta no céu. O seu delimitar pelos picos das serras leva-nos a imaginar, sonhar um mundo antigo. Atenção ao vocabulário, pois é aqui que nos começam a faltar as palavras... O vale foi esculpido aos longos dos séculos pelas forças da Natureza e a sua forma remonta aos tempos das últimas glaciações. Segundo A. Brum Ferreira (et al.) (“Formas e depósitos glaciários e periglaciários da Serra do Geres-Xurés (Portugal; Galiza) – Levantamento cartográfico” Brum Ferreira, A,; Vidal Romani, J. R.; Vilaplana, J. M.; Rodrigues, M. L.; Zêzere, J. L.; Monge, C.) e citando os trabalhos de Schmidt-Thome, “…ao longo do vale do Rio Homem, as línguas glaciárias teriam atingindo a altitude de 600 m.” “Segundo o mesmo autor, no máximo da glaciação, a espessura mínima do glaciar do vale do Rio Homem seria de 500 m.” (ainda citando o artigo de Brum Ferreira (et al.), “No entender de COUDE-GAUSSEN, apenas a parte montante do vale do Rio Homem poderia ter sido percorrida por urna língua glaciária, mas nenhuma prova de glaciação foi encontrada pela autora, a não ser no vale afluente de Água da Pala, onde uma pequena língua glaciária teria descido até à altitude de cerca de 900 m (COUDE-GAUSSEN, 1981, p. 182-183).”) .
Ao longe vemos a Serra Amarela e com bom tempo facilmente se vislumbram as antenas do Muro localizadas em Louriça. Saindo do pequeno vale da Ribeira do Modorno entramos novamente no vale do Alto Homem e logo ali à nossa frente observamos uma estreita queda de água, a Água da Laje do Sino, com uma altura superior a 110 metros. Toda esta zona propicia paisagens deslumbrantes em ou após dias de chuva com as paredes rasgadas pelos cursos de água que se precipitam no vale, ou então nos frios dias de Inverno com a imagem das quedas de água geladas que se amarram às paredes graníticas.
Prosseguindo o trilho ao longo do vale vamos ganhando altitude, atingindo os 1200 metros de forma suave. Nesta fase o caminho chega a complicar-se devido ao seu estado degradado. Na cota dos 1190 metros e olhando para o Rio Homem, deveríamos observar algumas construções surgem assinaladas na Folha 31 na sua edição de 1949, mas já não surgem na edição de 1997. Estas construções estavam escondidas pela vegetação que entretanto desapareceu devido a um incêndio florestal ali ocorrido em Setembro de 2013. Nesta zona fabricava-se e comercializava-se o carvão que vinha também de outros pontos da serra, tais como Pincães ou Fafião. O Rio Homem é, nesta fase, constituído por uma série de pequenos ribeiros que têm origem nos inúmeros vales que golpeiam o topo da serra. Aos 1200 metros de altitude, na zona do velho Curral do Teixo (que assim se chama porque se diz que antigamente ali existia uma árvore desta espécie), o trilho flecte ligeiramente para a direita seguindo o pequenos Rio Homem que aqui se engrossa com o riacho do Corgo dos Salgueiros da Amoreira. O nosso percurso segue a base da Rocha da Água do Cando, passando pela Ponte das Águas Chocas (1285 metros) e entrando na Chã das Abrótegas até atingir a Ponte das Abrótegas (1325 metros). A Chã das Abrótegas define, juntamente com o Outeiro Redondo, uma área plana que é atravessada pela velha estrada mineira até atingir e seguir ao longo da base do contraforte dos Carris. Foi neste planalto, mais precisamente no Curral das Abrótegas, onde esteve montado nos dias 17 a 19 de Setembro de 1908 o acampamento da primeira expedição venatória levada a cabo na Serra do Gerês. Esta expedição, organizada pela revista Illustração Portugueza, teve como objectivo atestar que na altura de facto a cabra selvagem estava extinta, pois caso contrário poderia ser caçada… Na zona têm origem vários carreiros de pé posto, sendo os mais interessantes aqueles que seguem para as Minas das Sombras (Galiza - Espanha) e para os Cocões do Concelinho (através das Lamas de Homem) e, mais tarde, Minas de Borrageiros e Lagoa do Marinho.
Na Ponte das Abrótegas somos interrogados por umas peculiares construções semelhantes a pequenos pilares de rocha e cimento que tinham essa mesma função. Estas construções serviriam de base de apoio de uma tubagem metálica para transportar água desde uma pequena represa ali existente até ao Salto do Lobo ou até à lavaria nova situada no topo da Corga de Lamalonga. Esta captação de água terá sido desactivada em 1954 pois tornou-se desnecessária após o aumento do paredão da represa dos Carris. Nesta fase do caminho a paisagem permite-nos observar o marco geodésico de Carris (1508 metros) e o Altar de Cabrões (1538 metros). Neste planalto podemos também observar vários currais destinados às pastagens de altitude e à transumância ainda levada a cabo na Serra do Gerês na figura das vezeiras de decorrem entre Maio e Setembro.
A zona das Abrótegas permite o descanso antes da subida final, verdadeiro calvário para quem já está cansado do caminho. Ao percorrer o início da subida, um pormenor passa despercebido à quase totalidade das pessoas. Logo no início do declive, a antiga estrada mineira dividia-se em duas, com uma a seguir a direcção do Salto do Lobo, local onde decorreram as primeiras extracções de volfrâmio tirando partido da aluvião vindo da Corga da Carvoeirinha. No terreno é difícil vislumbrar sinais desta parte da estrada e só andando alguns metros no caminho principal que segue em direcção aos Carris, e depois olhando para trás, é que se vê a antiga estrada já coberta de vegetação. Nesta área não existem construções ou edifícios, exceptuando uma ou outra pequena construção de pastores (os formos) ou outros abrigos. Esta zona provavelmente teria o apoio de edifícios de madeira dos quais não existem quaisquer sinais. Por esta zona passava uma conduta de água que teria a sua origem na pequena represa das Abrótegas e que, apoiada nos pilares feitos com aglomerados de pedra, atravessava o pequeno planalto para lá das Abrótegas. Mais pilares são visíveis no extremo deste planalto, que serve de pastagem de altitude ao gado que nos meses da vezeira passeia pela serra, já próximo do caminho antes deste flectir para a esquerda para iniciar a subida final. Seguindo o prolongamento deste caminho secundário e depois entrando em trilhos de pé posto, chega-se às Minas dos Carris pela sua zona inferior junto da lavaria nova, no extremo do vale da Corga de Lamalonga. Mas voltemos à estrada principal e iniciemos a subida final para Carris. A parte final da estrada vence um declive de 70 metros ao longo da Corga da Carvoeirinha e sem dúvida que é para muitos a parte mais complicada de todo o trajecto. No entanto, o final do árduo caminho é sempre uma motivação forte para vencer estes últimos metros. No troço final o declive torna-se menos intenso, com a estrada a tornar-se quase plana mesmo a chegar ao muro que delimitava a entrada no complexo mineiro dos Carris.
A área que actualmente corresponde às Minas dos Carris encontra-se preenchida por uma série de abrigos de montanha que em alguns aspectos se assemelham aos abrigos de pastores e que naquela região são designados como ‘fornos’. A grande profusão destes abrigos numa área tão pequena levantou-me questões sobre a sua utilização.
Sabendo ser uma área carvoeira antes da chegada da mineração, este facto pode ajudar a explicar em parte o elevado número de abrigos / fornos existentes naquela zona, mas será suficiente? Pelas características do local, e apesar da existência do Curral de Carris, facilmente se deduz que esta não seria uma zona privilegiada para as pastagens, pois os Currais das Negras, de Lamalonga, a zona nas imediações das Lamas da Carvoeirinha e os Currais das Abrótegas e de Lamas de Homem, proporcionam zonas de pastagem de altitude e estão resguardadas com os respectivos fornos.
Admitindo que o orónimo ‘Carris’ tenha como origem o facto de aquela ser uma zona de passagem de vários carreiros de montanha (um 'carril' é definido como um caminho estreito; carreiro ou atalho, pela “Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira” da Página Editora, Vol. VI, Bindel Publishing Corp.), é possível que a área fosse escolhida como zona (pouco provável) de paragem para os peregrinos em viagem entre Trás-os-Montes e os santuários no Minho (S. Bento da Porta Aberta) e na Galiza (S. Tiago de Compostela). Muitos destes abrigos podem também ter sido utilizados pela actividade da carvoaria, sendo aquela zona utilizada para o fabrico de carvão (de onde se explica o orónimo ‘Corga da Carvoeira’ ou ‘Corga da Carvoeirinha’). A actividade do contrabando também não pode ser colocada de parte como uma razão para a construção destes abrigos de montanha.
Certamente que a actividade mineira em finais dos anos 30 e princípios dos anos 40 explica muitos dos abrigos, principalmente os que estão localizados na zona do Salto do Lobo e ao longo dos filões paralelos que certamente marcavam a paisagem em algumas zonas e que podem também servir para explicar a origem do orónimo ‘Carris’.
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