sexta-feira, 10 de julho de 2020

Memórias de vivências de uma infância na Serra do Gerês


Um texto de Maria Cidália Valgrante que me deu a sua autorização para ser reproduzido aqui neste blogue e que nos conta as memórias das suas vivências de infância na Serra do Gerês.

Meu pai partia cedo para a serra, nessa época havia plantações de carvalhos e outras árvores adaptáveis ao terreno. Quanto a nós ficava-mos por ali, olhava-mos a serra, as árvores e algumas águias que sempre por ali nos visitavam.

Nesta imensidão do nada procurava-mos ouvir sons que não existiam porque por ali havia dias e mais dias que não passava ninguém. Eu só esperava ansiosa que meu pai chega-se, para que ele me conta-se mais uma história. Porém minha mãe não era pessoa de baixar os braços.

Num certo dia foi há vila e de lá trouxe galinhas e ovos. Dai a poucos dias já tinha-mos pintainhos e de hora avante aquelas pequeninas aves nos faziam companhia. Problema era mantê-las seguras, de dia eram as águias e os (miotos) que sempre queriam almoço de noite eram as ratazanas e as doninhas que queriam jantar.


Mas de dia era-mos nós que as soltava-mos e as levava-mos até a um pequeno parque junto há casa e perto da estrada ali havia relva arbustos e algumas pequenas pedras que levantava-mos para elas procurarem bichinhos. Passava-se mais depressa o tempo e em certos domingos até havia (não digo churrasco porque ninguém conhecia tal palavra mas sim) um frango guisado embelezava a mesa e o nosso almoço.

Tudo isto faz parte das minhas memórias.

Quanto a mim na minha inocência de criança eu era feliz, admirava o céu azul as nuvens e queria a todo o custo ter umas asas e brincar na rua. Coisa que minha mãe não deixava ela tinha medo que algum lobo ou até aquelas enormes águias me levassem.

Até o “demo” para ali era chamado uma vez que era grande a superstição nessa época. Ela, a superstição era tanta que para quem não estava habituado a seguir num caminho o estalar de um galho o cair de uma folha ou o som de uma ave e logo era o “demo” esse perseguidor das almas que por ali rodopiava.

Até o motivo do grande susto dos meus pais que eu sem querer protagonizei. Num certo dia tinha caído um grande nevão e há noite tudo era silêncio. Enquanto meus pais conversavam há lareira eu ia-me entretendo a brincar com uns pauzitos, pois brinquedos eu não conhecia. Tudo estava bem comigo quando repente senti um medo horrível,toda eu tremia. (Passaram tantos anos e eu ainda me lembro muito bem disso. Corri para meus pais dizendo tenho medo,tenho medo. Sem saberem o que me fazer ou o que se estaria a passar, e para mais ainda ali sem ter ninguém por perto a quem pedir ajuda, apenas me acarinhavam.

Mas em muito pouco tempo o medo passou e eu fiquei bem, já não sentia qualquer medo de nada. Quando tudo já estava normal ouvimos perto da casa um uivo como se fosse um grito na selva. No dia seguinte, meu pai ao abrir a porta deparou-se com as enormes pegadas de um lobo. Ele tinha estado ali, eu não o vi nem senti mas talvez só o magnetismo da proximidade da fera me causa-se todo aquele medo.

OS GUARDAS FLORESTAIS

Homens, chefes de família, funcionários do Estado. Eram alguns destes funcionários colocados em casas construídas nos sítios mais recônditos da floresta. Sem qualquer meio de locomoção palmilhavam quilómetros a pé. Mas nem por isso muitos se não deixavam de apaixonar pela floresta.
Enfrentando por vezes intempéries e até sol ardente ou chuva e frio e eles lá estavam prontos para qualquer ocorrência. Não tinham dias feriados nem folgas nem domingos nem fins de semana,. Apenas 30 dias de férias por ano.

Sempre fardados, pois eram considerados vinte e quatro horas por dia ao serviço quer houvesse ou não qualquer anormalidade. A farda azul que sempre vi vestida a meu pai, aquelas fivelas e os dísticos 'M N' no boné estas tinham de estar sempre bem amarelos e ainda a carabina (Mauser) sempre ao ombro.

Era aos domingos dia de descanso do pessoal trabalhador que meu pai descansava um pouco mais em casa não evitando porém que tivesse de ir a Albergaria,entregar registos e receber ordens para a semana. Quando o tempo o permitia ia-mos com ele. Em Albergaria era um pouco diferente de Leonte. Havia mais movimento, sempre mais gente uma vez que era também ali que se juntavam engenheiros e outras pessoas com posições mais elevadas. A reprodução de peixe (as trutas) seria uma das causas, uma espécie de laboratório onde se fazia a tal manobra com peixes adultos era de seguida depositada em tanques. Quando os ovos eclodiam os peixinhos eram então alimentados por peixe cosido depois de ser retirada toda a gordura por senhoras que se dedicavam a esse trabalho. Mudavam então para tanques maiores até serem alimentados a carne.

Era expressamente proibido mexer nos tanques. Casos se passaram em que senhoras com unhas pintadas de vermelho se esqueceram de ler e quando tentaram acarinhar os peixinhos não se livraram de uma boa dentada.

Era em Albergaria na casa de guarda e suas dependências que se juntava sempre muita gente e se contavam e ouviam histórias e peripécias de muita espécie, umas verídicas outras nem tanto assim.  Uma delas o medo dos lobos. Havia muitos ferozes, e algum medo. Certo dia dois homens dois valentões sabiam que um lobo deambulava por ali pois os cavalos davam sinal. Pensaram então matar o lobo. Prenderam um cavalo a uma árvore e munidos cada um de sua arma subiram para esta. Esperaram e quando o lobo se aproximou pronto a atacar o animal, eles ficaram como electrizados, não se conseguindo mexer nem falar sequer. Só quando alguém ouviu a aflição do cavalo chamou mais gente o lobo fugiu o animal foi solto e eles retirados sem fala.

Ainda aquilo que me lembro

O dia do nascimento do meu irmão em Leonte. O seu baptizado contava o meu pai foi em Terras de Bouro o seu padrinho de baptismo um seu colega e amigo o S. Guimarães por isso eu falei dele.

Recordo um dia era dia de festa volta-mos para casa era já noite e estavam a desfazer os andores. Também fui um dia a casa do S. Guimarães, tinha havido dias antes uma forte trovoada ,uma faisca entrou em casa e depois de ter morto o cão que estava debaixo dum móvel correu a divisão em volta deixando um risco negro mas não feriu ninguém.

Lembro ainda uma situação passada em Leonte, certa tarde estava só com minha mãe quando vindos da estrada ouvimos muitos gritos. Fomos ver quando já se aproximavam 2 homens ´a pedir água'. Vinham cansadíssimos, traziam numa padiola uma jovem que tinha sido atingida por uma pedra num rebentamento nas minas dos Carris. Depois de uns momentos de descanso seguiram para o Geres na esperança de conseguir tratamento médico para ela. Havia muito pouco socorro. Qualquer ferido ou doente era transportado numa manta enrolada em dois paus fazendo do que representa hoje uma maca ou então deitado numa esteira na esperança de alguém lhe fiz-se uma mézinha.

Contava ainda meu pai que todo aquele material que guardavam na nossa casa e muito mais era empregue mas minas . Homens credenciados nessas operações depositavam o dinamite nos sítios cruciais, juntavam depois o rastilho e na hora de o ligar para a explosão havia uma ou mais vozes
que gritavam, esconder. Cada um procurava o seu melhor esconderijo. Ao dar-se a explosão saltavam pedras por todo o lado e nem sempre as coisas corria bem.

Estou a tornar-me cansativa divulgando todas estas minhas memórias.

Mas não vou deixar em vão uma história que muito se contava.

História, lenda ou fantasia seja lá o que for. Não deixa mos por exemplo a lenda da ponte da Mizarela e quantas mais.

Respeito os nossos antepassados, aquilo que não conheço,mas também a ciência que ultrapassa a superstição.

Em certo dia sereno um pastor vigiou na serra o seu rebanho e calmamente quando a noite chegou como era habitual recolheu no curral os seus animais contou-os estavam todos, tudo bem. Decidiu porém ele também a sua ceia. Fez uma fogueira, foi ao saco que tinha trazido de casa .restava-lhe ainda um naco de broa e um bocado de toucinho. Calmamente começou por assar nas brasas o toucinho e pingar o molho na broa.

Passou-se algum tempo, e quando ele nada previa entrou na cabana um senhor elegantemente vestido. Fato preto chapéu de coco na cabeça, trazia espetado num pau um sardão e sem dizer uma palavra começou também ele a assar o sardão e querendo a todo o custo pingar na broa do pastor. Foi-se o pastor refugiando o que podia quando ás tantas pronunciou e por várias vezes: “Pinga lá que eu pingo cá”.

Estava a apoderar-se dele o medo, sem saber o que fazer e repetindo a mesma frase decidiu rezar. Rezou o que sabia e nada, o homem continuava ali calado. Até que em determinado momento a coragem falou mais alto, ergueu-se e gritou “Valha-me as sete missas de Natal”Ainda mal tinha acabado de dizer a última palavra e já um estrondo enorme se ouviu a fogueira apagou e tudo ficou envolvido em fumo.

Emudecido levou tempo a recuperar, mas de seguida recordou várias histórias que já tinha ouvido a outros pastores. Afinal também ele tinha sido visitado pelo tal MAFARRICO

Histórias de pastores.

Esta não é história,

Quando da última vez que fui ao Geres fiquei estupefacta ao olhar há esquerda e ver em grandes letras CAFE GRILO mais uma vez eu recuei no tempo. Mas como tudo mudou, ali havia uma casinha um pouco abaixo da berma da estrada.

Lembro um pouco dele o Ti Grilo este homem devia ser uma referencia uma vez que muito ouvia falar dele. Recordo assim muito ao longe o meu pai a falar com ele.

O pastor o Ti Grilo.

Como deixei o Geres.

Estávamos havia quase quatro anos em Leonte, minha mãe desesperava. Era um passar de dias e mais dias, agora já eramos mais um, o meu irmão ela não podia ajudar em mais nada. O meu pai com um ordenado baixíssimo como todos os funcionários do estado na época. Minha mãe, filha de agricultores dizia se eu ao menos pudesse ter uma horta, mas aqui é impossível.

Dizia então para meu pai (O Zé) pede para sair-mos daqui. Mas ele sentia-se dividido, já tinha os seus amigos que fazia com facilidade, homem justo amigo do seu amigo um grande contador de histórias, amava a serra os bichos, como filha, mas digo um homem há frente do seu tempo. Um bom pai.

Conversaram e foi a minha mãe que até era um pouco acanhada que pediu ao administrador. Contou-lhe a história as dificuldades e eu em breve também teria a escola.

Ele ouviu-a e em breve o meu pai recebeu a ordem da transferência para a Tapada de Mafra. Começava ou continuava a nossa aventura ou vida nómada.

Os anos passam, o mundo gira a saudade fica.

Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

1 comentário:

Jorge Guedes disse...

Fantásticas memórias que dão vida aos lugares, à serra! Obrigado pela partilha!