sábado, 8 de abril de 2023

Trilhos seculares - A longa Escaleira

 


Esta é a adaptação de um texto que já foi anteriormente publicado aqui neste blogue, mas adaptado a este magnífico dia de caminhada entre Cabril e o Lago Marinho, subindo a longa Escaleira.

Desta vez a subida foi na companhia de diversas pessoas que sentem a montanha de forma distinta. É sempre bom partilhar emoções e sensações através dos carreiros seculares que aos poucos (ainda) vou desbravando pela Serra do Gerês. Vemos e (acima de tudo) sentimos a montanha de maneira distinta e esta troca de visões e emoções faz-nos crescer.

O desafio da Escaleira está sempre lá, a olhar para nós todas as vezes que passamos Cabril a caminho das terras altas de Xertelo ou para rumarmos a paragens cada vez mais embrenhadas em Trás-os-Montes. A parede não é inexpugnável, mas aquelas vertentes quase a prumo escondem os velhos carreiros seculares que os pastores, carvoeiros, contrabandistas e apanhistas das terras de Cabril desbravaram por entre as dobras do granito, aproveitando os patamares que a orografia lhes foi concedendo.


Com o passar dos anos, estes trilhos vão-se enchendo de vegetação e esquecimento que esconde a história daquelas gentes que foram fazendo as tréguas possíveis com a serra que os mira de forma silenciosa. É como um Adamastor adormecido que ali se ergue, imponente, rude e sem misericórdia para quem o desafia, pensando que - mesmo que o suba - o terá vencido. Não, a montanha apenas teve compaixão por quem a venera e respeita.

É assim a subida da Escaleira iniciando no lugar de Cabril; algo que se deve fazer com respeito e em profunda veneração pela sua imponência que se agiganta a cada vislumbre das paredes alcantiladas da Surreira do Meio-Dia.

Iniciando o dia em Cabril, continuamos por Cavalos para o Rio Cabril, passando por Porto de Chãos, Chão e atravessamos o rio no Pontelhão. Daqui, seguimos para o Carvalhal onde se toma um carreiro que lentamente nos vai levar a ganhar altitude até chegar à Laje da Ponte, empinando serra acima até chegar ao Vale da Escaleira, seguindo pelas Lajes da Escaleira para a Chã da Escaleira e Chã das Edras, passando nos Picotos para o Vale Pedra Cavalos. Toda esta subida deve ser feita com cuidado e apreciando a paisagem que se afunda atrás de nós. O vislumbre das paredes da Surreira do Meio-Dia merece paragens contemplativas e o mesmo se deve fazer para o Vale do Rio Cabril, no qual os pequenos lugares e a paisagem humana se vai desenhando com menos detalhe à medida que ganhamos altitude. As paisagens são únicas e deslumbrantes, e mesmo o Fojo de Xertelo nos vai parecer como que apenas um estranho e alienígena desenho na vertente da montanha.

O carreiro pelo Vale Pedra Cavalos vai-nos levar a cruzar o estradão da EDP (que termina no Porto da Laje), descendo depois ligeiramente para os Currais de Virtelo. O carreiro vai sendo assinalado pelas altas mariolas que eventualmente nos levam até ao Lago Marinho.



Segundo Carlos M. Ribeiro (que o refere como 'Lagoa do Marinho'), o Lago Marinho está "(...) situada no sector sudeste da Serra do Gerês, dentro da bacia de drenagem do ribeiro do Couce (afluente do rio Cabril), a Lagoa do Marinho é uma área endorreica - o escoamento das águas faz-se através de uma depressão interior, sem saída para o mar. 

Parte da sua área envolvente está ocupada por uma moreia terminal em forma de arco. Para os menos conhecedores da matéria, as moreias são um amontoado de sedimentos com diversas dimensões, que foram transportados e acumulados pelo glaciar à frente e aos lados da língua glaciar, até quando e onde este se fundiu. Quando observadas ao pormenor, permitem a reconstituição do movimento glaciar, e são um indicador fundamental dos limites de máxima extensão da glaciação. Significa isto que, o limite de um dos glaciares que ocupou a Serra do Gerês, foi a Lagoa do Marinho. 

Com uma orientação nne-ssw, esta é ocupada por uma turfeira com cerca de 100 metros de comprimento por 50 metros de largura. A título de curiosidade, as turfeiras são habitats naturais de elevado valor biológico que ocorrem em biótopos permanentemente encharcados. São consideradas um dos maiores reservatórios de carbono do planeta, e a acumulação do CO2 é vista como uma das alternativas para atenuar o aquecimento global - na sua maioria são atapetadas por musgos (género Sphagnum), onde coexistem também bolas de algodão (Eriophorum Angustifoliumas), Urzes (Calluna Vulgaris), Tojos (Ulex Minor) e plantas insectívoras como a Orvalhinha (Drosera Rotundifolia). 

Topograficamente, esta lagoa posiciona-se dentro de uma área de relevo aplanado sobre um substracto granítico a cerca de 1200 metros de altitude. A esta altitude, ainda que relativamente baixa, e na presença de uma maior concentração de raios ultra-violetas e de uma menor poluição atmosférica, o azul do céu já é dominante (...)."

Após uma visita ao Lago Marinho, descemos então para o Abrigo de Lagoa, local de uma paragem para o almoço e merecido descanso após tremenda trepada desde Cabril. O silêncio profundo da montanha envolve o visitante que se deixa embalar pelo ocasional soprar do vento e por um estranho calor de Inverno que nos aquece a pele ainda com a memória das primeiras horas gélidas da manhã em terras de Cabril.

Eventualmente, é então hora de encetar o regresso, seguindo em direcção a Lagoa e tomando o estradão no sentido descendente. Nas proximidades da Roca Alta, seguimos então por um velho carreiro que nos levou a passar por Lajes de Lagoa, seguindo então pelo Couçadoiro, Teixinhal, Curral do Carvalho, Penedo do Encosto e Porto Tapado. Caminha-se por pequenos vales e corgas que impedem o correr do vento e consequentemente da brisa fresca de uma tarde de Inverno, aumentando a sensação de calor fazendo despir os corpos. Chegando a Porta Fernandes, temos já o vislumbre de Taboucinhas.

Taboucinhas guarda a história do "Ti" Secundino. Na verdade, ninguém sabe dizer de onde veio o "Ti" Secundino, apesar de ainda existir muita gente que o conheceu. Dizem que apareceu em Cabril com uma filha, pois antigamente aparecia assim muita gente que ficava a dormir nos palheiros. Havia muitos pobres, muita gente a fazer esse modo de vida. Ninguém sabia qual era a terra dele, alguns dizem ser de Cabeceiras, outros de Fafe e ainda aqueles que afirmam ser de Celorico. Veio para Cabril como resineiro e acabou por ficar, fixando residência no lugar de Cavalos, no sítio da Balteira e por lá ficou, até que teve a possibilidade de comprar uma parcela de terreno a comissão fabriqueira de Cabril. Porém, o pedaço de terreno era muito longe das aldeias, demasiado longe, e estava localizado em Taboucinhas, mesmo no começo da serra. Isso não o desanimou o "Ti" Secundino, que murou o pedaço de terreno, cavou, lavrou, procurou água, fez duas poças, construiu casa.

O homem passou a morar em Taboucinhas, cultivava batatas e milho na sua época, couves, vinho, tinha árvores de fruto, chegou a criar porcos e galinhas. Apesar de ter a residência na aldeia de Cavalos, o "Ti" Secundino e o seu burro, só desciam quando as condições eram muito adversas.

Com a morte do "Ti" Secundino, tudo em Taboucinhas e na sua "mini" branda morreu. A casa acabou por arder, restam as paredes. As cerejeiras caíram, as vides morreram, as couves e as batatas deram lugar a silvas, tojos e fetos, sinais do tempo...

Após um curto descanso em Taboucinhas, inicia-se a jornada final até Cabril, descendo pela Corga do Gavião, Gavião, Cavada, Queixadoiros, Buracos e Azerim, através de uma refrescante sombra proporcionada pelo arvoredo que nos fez ter uma trégua do Sol. Descíamos então pela Encosta do Carvão para o Carvalhal - por onde havíamos passado de manhã - e enveredamos por São Ane, atravessando o Rio Cabril e finalmente chegando ao nosso ponto de partida depois de uma jornada de 16,9 km com 941 metros D+.

Ficam algumas fotografias do dia... 






Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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