Como é tradição, o blogue Carris apresenta um conto de Natal da autoria de Luís Vendeirinho para esta quadra de 2024.
Absolutio
“Sim, senhor padre. A tentação falou mais alto”. E o carteiro arrependido ergueu-se, dada a penitência, para ouvir a cortina fechar-se atrás de si enquanto caminhava no mármore tingido pela luz dum vitral. Entrara no templo confiante que as orações, impostas pelo ritual, bastariam para lhe aliviar a consciência. Engano. Ia preso por dúvidas, sufocado com o receio de bater contra a justiça dos homens, na prece para a coragem que lhe fugia vir donde não a sabia adormecida. Fora na pobreza da solidão, no abandono onde não reconhecia um só nome que pudesse dar à amizade, que tinha germinado a ideia trágica para fazê-lo acreditar na sua insanidade. Por altura das Festas, o saco de trabalho pesava em dobro com os votos que distribuía de casa em casa. Carregado com palavras fraternas, nessa manhã soalheira foi atraiçoado pelo sentimento negro do despeito anónimo, ele que não se lembrava já de qualquer abraço ou rosto de alegria para o conforto passageiro a que todos brindavam. Para o derradeiro cacifo, rés da calçada em frente do palacete que sempre lhe avivara a imaginação, com o jardim velado por sebes altas onde se ouvia o cantar da água, tantas vazes misturado com a música quase imperceptível vinda pela janela, tinha um maço de envelopes. Carteiro sabe sempre o que escondem os sobrescritos, sabe distingui-los pela forma, pela franquia, pelo tato. E roubou um para si, não lhe importou qual, num gesto inexplicável que foi saboroso como louvor atribuído pela dedicação a uma causa. Ao fazer-se o lampejo do remorso pela traição, já longe do local do crime, jurou não violar o segredo selado que tinha entre mãos.
Dias depois regressou pelo próprio pé, quase noite e sem a insígnia, iluminado pela sinceridade do gesto que faltara na presença do padre. A imaginação do carteiro ficou à entrada, esboroou-se em surpresa. Era um velhote, barbudo e bem-humorado para as circunstâncias, quem o convidava a entrar. Instalados no aconchego da sala onde crepitava o lume, o anfitrião deu ao ambiente um toque morno vindo em forma de música. Ao ver o carteiro emperrado nas suas razões, com a carta no colo, o velhote falou-lhe com um brilho vivo no olhar. “Se o motivo não fosse para ti constrangedor, achavas outro meio para o resolver sem pedires para me falar. Eu conheço-te, és o carteiro, o homem capaz de fazer pontes onde mais ninguém se atreve, porque o peso do trabalho não está no saco que te confiam. És fraco como todos os outros, erras. Não apagues agora o teu erro com palavras, basta-me o gesto do missionário, nesta Quadra”. Duas palavras, duas vieram-lhe do íntimo com a mão estendida. “Eu roubei”.
Ambos cearam. O carteiro guardou a pergunta por fazer: como explicar tantas cartas dirigidas a um velho solitário?
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