segunda-feira, 28 de outubro de 2019

A Villegiatura e a Serra (II)


A segunda parte deste fabuloso texto de Ricardo Jorge do seu livro "Caldas do Gerez - Guia Thermal" editado em 1891.

Esta obra aborda vários temas relacionados com o termalismo geresiano, as suas águas termo-medicinais, a sua acção hidro-termal, a clínia hidrotermal, etc. Um dos capítulos mais interessantes está relacionado com a denominada "villegiatura", isto é a "temporada que se passa fora da terra, a banhos, no campo ou viajando, para descansar dos trabalhos habituais."

Ricardo Jorge fala-nos de paisagens conhecidas e das sensações que elas proporcionam.

A primeira parte deste texto pode ser encontrada aqui.

O texto transcrito abaixo é mantido na sua forma original e com o Português que era escrito em finais do Século XIX.

"(...)

Nas Caldas. A povoação das Caldas do Gerez, cuja história e vicissitudes já traçamos, era ha 40 annos apenas habitada na temporada balnear. Hoje tem habitantes proprios, de numero computavel em 240. No apogeu da quadra chega a conter mais de 800 pessoas; e mesmo fóra da estação, tem sempre uma população adventicia d'operarios, por causa das obras publicas e particulares.

O lugar das Caldas pertence à freguezia de Villar da Veiga, de que dista 7 kilometros, e ao concelho de Terras de Bouro que tem a sua séde em Cóvas. Hoje pela sua concorrencia e desenvolvimento é a terra mais importante do concelho.

Jaz a estancia á altitude de 468m na aresta do valle, engastada entre as duas cordas de serrania, que limitam a profunda garganta. Sobranceiam-n'a d'um lado e d'outro os empinados alcantis; de nascente o cume da Pedra-Bella e as vertentes do Varejeiro e Junco; do poente o cabelo da Pereira e Outeiro-Rubio.

As casas occupam apertada faxa entre o morro do spé da montanha e a margem esquerda do rio Gerez, que se despenha n'um leito inclinado de calhaus rolados: apenas algumas casas começam d'edificar-se na escarpa aprumada da margem direita. Grande parte das primitivas edificações do seculo passado foram apeiadas, a bem do aformosamento e da hygiene; subsistem ainda algumas, defronte dos antigos poços, com as suas longas varandas e as escadas exteriores de patamar.

A estrada atravessa as Caldas de lado a lado, dilatada em avenida. Passa rente da fieira dos Poços, que co o seu tecto pyramidal semelham capellas, e facejam-n'a os Hoteis, os edificios que mais avultam. São nada menos d'oito. Estrema-se entre elles o Grande Hotel Universal, vasta edificação em quadra, com o seu claustro ajardinado e jogos d'agua, grande sala de jantar, salão, gabinetes de leitura e jogo, illuminado a luz electrica, com todos os requisitos emfim d'um estabelecimento de primeira ordem, de que o Gerez póde ufanar-se. Mesa excellente, d'uma culinaria apurada, e sujeita à prescripções dieteticas mais meticulosas - serviço d'hospedagem desvelado - pharmacia e serviço pharmaceutico - consultorio medico - casa de banhos frios e thermaes, - tudo alli se congrega para a maior commodidade do hospede e do cliente.

O Gerez tem uma Estação telegrapho-postal de serviço completo, e Correio duas vezes por dia, pela manhã e de tarde. É a sede d'uma secção a guarda-fiscal e da circumscripção florestal do Gerez.

Em torno das Caldas ha bellos passeios. O da estrada até á volta do tortullo, donde se disfructa a veiga do Villar, é o clássico dos passeiantes d'aguas, que por elle medem chronometricamente o intervalo das doses. O antigo era o do Castanheiro, muito pitoresco, que vai até próximo do elegante chalet florestal dos guardas, ao norte da povoação, d'onde se desce, pelo prolongamento da estrada. De tarde, a mais apreciada volta de passeio é a dos Viveiros, parque florestal de creação, dividido em alfóbres, e cortado por um bello trecho de rio, contiguo á estancia dos banhos de rio na grande piscina do Poço-Verde, assim chamado pelo tom esmeralda-vivo das aguas, que se precipitam em lindissima cascata do alto de tres enormes blocos despenhados. A arte veio alli completar as bellezas naturaes sem as deformar.

Logar d'encanto é ainda a matta, que circunda o Chalet Tait, um pedaço de floresta virgem, com quedas de agua, cerrada d'ervedeiros, carvalhos, asereiros e castanheiros.

O caminho florestal do ponte, que se dirige a S. João do Campo, é também um passeio aprasivel; trepa pela encosta até á Chã de Pereira, offerecendo a melhor vista das Caldas, e abraçando todo o valle desde o collo de Leonte até á Veiga de Villar. A meio passa pela Cascata das Caldas, e por uma chapada, sobre que paira amorosa lenda, a Cova do Castelhano.

A SERRA, A Serra do Gerez; que de tradições de bellezas naturaes, afamadas pela recordação viva dos viajantes e pelos trechos enthusiastas dos naturistas! Se todo o Portugal é um paiz pitoresco, o Gerez realça como o mais formoso trecho do seu solo abençoado.

Arrancar exclamações de transporte, aos que possuem a mais delicada esthesia dos quadros de montanha, aos que se dedicaram na digressão pela nossa provincia mais encantadora, e sobretudo áquelles que d'outras terras nos visitam, que se extasiaram perante as serras florestadas mais celebras da Europa, é um titulo d'ufania para a nossa serra. O recorte exquisito dos seus macissos e cumiadas, as suas mattas virgens alastradas por valles e alturas, os mananciaes abundantissimos d'agua que por toda a parte jorra do seu ventre e joga em cascatas pelos fraguedos, o typo especial da flora e a curiosidade da fauna, imprimem-lhe um caracteristico de superior encanto para todos os que commumguem no culto da montanha.

Bem o disse Link, que ao transpor o Cavado se passou o Lethes mythologico. Empolga-se o espirito da sugestão cultural da montanha; como que nelle se concentra aquela grandeza immensa, a enormidade das alturas, a enormidade das massas. E toda aquella vida eshuberante e liberrima, independente e nova, incute uma sensibilidade vigorante á alma alquebrada nos embates rasteiros da lucta social. O cultualismo da montanha, que tem alli um dos altares sagrados, possue uma sensualidade mystica, um poder roburante, como nada mais, na indestructivel idolatria da natureza.

Ao attentar no mapa orographico da provincia, vê-se que a sua estrema de leste é orlada por uma cordilheira no meio da qual se destaca o macisso do Gerez, abraçado pelos rios Homem e Cavado, e pegado pelo sul á serra da Cabreira e pelo norte á de Lindoso e Suajo.

Quem encarar da riba sul do Cavado o perfil do Ferez, imaginará vêr a extranha corporatura d'um monstro que alli dorme e somno profundo da natureza; o espinhaço afestoado d'apophyses caprichosas recorta-se numa direcção sensivelmente leste-oeste; cauda e flancos encosta-os por nordeste e nascente ás alturas de Barroso e ás montanhas gallaico-asturianas; a cabeça ligada ao corpo pelo collo de Leonte e coroada pelos dois tentaculos do Pé do Cabril, vem descançar entre os dois rios Homem e Cavado (Gerez Thermal).

A estes rios correspondem dois grandes valles de confluencia, formando os dois lados d'um triangulo; o Gerez propriamente dito tapa a base d'este triangulo, e depois baixa de eminencia em eminencia, declinando até ao vertice do angulo em contra-fortes successivos. De bacia a bacia vão dois valles parallelos, transversalmente rasgados; um, o de poente, mais largo e acessivel, vem de Vilarinho das Furnas, por S. João do Campo, até Rio-Caldo; outro, mais estreito e mais fundo, em ravina, parte d'Albergaria, sobre até ao desfiladeiro de Leonte e desce depois até á Foz do Caldo, passando pelas Caldas. A se paral-os uma lombada de serra que vai empinando de sul a norte até ao Cabril, acabando pela escarpa da Bagiella na confluencia do rio de Leonte com o Homem; esta cumiada dilata-se a partir do Escuredo num planalto de dois kilometros de largo, a Chá de Lamas.

A grande massa de montanha contorna o angulo aobtuso formado pelos dois thalwegs do Homem e de Leonte; em declive pelo lado do Cavado talha-se em escarpa abrupta desde as Lamas d'Homom até á Pedra Bela; uma chapada immensa se estende até Pitões á vista de Montalegre e d'ella emergem innumeras culminancias entre as quaes se destacam o Borrageiro (1433m), Cantarello (1425m) e Carris (1507m).

Por todo este ambito de valles e montanhas digressam os excursionistas. Ha quem dias e dias por lá volteie, acoitado á noite nas lapas dos rochedos ou nas tendas de campanha; principalmente caçadores e naturalistas. Vindo pernoitar ás Caldas podem em dias diversos visitar-se as partes mais notaveis da serra. Os bons andarilhos excursionam a pé; os menos validos ou menos avezados ás grandes marchas recorrerão aos muares, que se alugam nas Caldas, animaes de pouca apparencia, mas muito seguros para as asperezas da viação de montanha. Não faltam também guias, que conhecem a serra palmo a palmo.

(...)"

Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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