quarta-feira, 23 de março de 2022

Trilhos seculares - Borrageiros e as alturas de Porta Roibas

 


As grandes caminhadas solitárias pela Serra do Gerês têm sempre um sabor a uma certa conquista. Não será a conquista da montanha, pois esta nunca se deixa conquistar... no máximo, deixa-nos ficar com a sensação dessa conquista. Felizmente, vivemos de sensações, sensações essas que se transformam em emoções e que por sua vez marcam de forma única estes dias que se vão riscando no calendário.

Este dia nasceu com uma atmosfera diferente! O céu, de aspecto marciano, filtrava o Sol transformando-o numa bola quase disforme por entre as nuvens de poeira que haviam chegado durante a noite. A paisagem era muito parecida com os dias da Guiné-Bissau e de certa forma, trouxe a saudade das tardes quentes e das noites tépidas de África. No final do dia, as calças e as botas estariam manchadas pela poeira que se ia depositando por todo o lado!


O dia anterior havia trazido as notícias da neve nas partes mais altas da serra. Assim, quando saí de casa tinha a ideia de ir caminhando pelo Vale do Homem acima e ir vendo de que forma esta paisagem marciana se alterava por entre as corgas carregadas de nuvens e o vento frio que as açoitava. De facto, não me recordava de ver o imenso vale com este aspecto! Sim, em dias de nevoeiro pesado a paisagem torna-se semelhante, mas havia ali algo de diferente. Seria dos tons, seria do facto de saber que parte daquela paisagem teria vindo de terras quentes e eu sentia um vento frio ao passar o Modorno. A coisa, era de facto, estranha!

À medida que me aproximava da Chã das Abrótegas tornava-se evidente que a neve teria desaparecido durante a noite. Não valia o esforço de caminhar mais um ou dois quilómetros para passar pelas ruínas e depois baixar à Lamalonga; assim, tomei a decisão de seguir para Porta Roibas a partir dali.

A jornada seria longa, mas os 28 km no final do dia estariam estampados na felicidade do 'eu'; ao fim e ao cabo, tinha uma montanha «só para mim» num dia tão peculiar.


Saindo da Chã das Abrótegas rumei a Lamas de Homem, passando os seus currais em direcção à descida do Quelhão. O vislumbre da paisagem era ofuscado pela poeira em suspensão e mesmo Maceiras surgia como uma silhueta projectada numa tela cinzenta. Continuando a descer, chegava às imediações dos imensos Cocões do Couçolinho (Cocões do Coucelinho)

Os Cocões do Couçolinho são um verdadeiro testemunho histórico das glaciações na Serra do Gerês. No Quaternário, mais precisamente no Plistocénico (há cerca de 1,8 Ma a 10 000 anos), ocorreram importantes variações climáticas à escala do globo que se caracterizaram pela alternância de períodos glaciários (muito frios) e interglaciários, com glaciações a atingirem, inclusivamente, as latitudes médias. Embora sejam poucas as formas claramente glaciárias, nas serras da Peneda e do Gerês foram identificados vestígios dessas glaciações, dos quais merecem especial destaque os do Alto Vale do Vez e zona de Cocões do Couçolinho - Lagoa do Marinho (vales com perfil em U; moreias; circos glaciários; superfícies de granito polidas, estriadas e com sulcos; depósitos glaciários).

Depósitos fluviais, torrenciais e glaciários constituem as formações geológicas mais recentes na área do Parque e encontram-se presentes em diversos pontos, sendo de destacar os de origem glaciar na Ribeira de Couce, Lagoa do Marinho e no Alto Vale do rio Vez.

Os Cocões do Couçolinho abrigam um curral (Curral do Colástica (Coucões do Coucelinho)) juntamente com outras áreas muradas (sestas). Característica do local, é a presença de diversas moreias glaciares que povoam a paisagem de forma caoticamente ordenada.

Deixando a zona de Cocões do Couçolinho, tomava o carreiro que me levaria à Mina de Borrageiros.



Apesar de próximas e de compartilharem o mesmo veio filoneano, nunca houve uma relação entre os trabalhos realizados na Mina de Borrageiros e nas Minas dos Carris. No entanto, as histórias destes dois complexos mineiros vão-se cruzar em finais dos anos 70 e princípio dos anos 80 quando acabam por ser consideradas como um único campo mineiro.

Para lá dos registos oficiais disponíveis do Instituto Geológico e Mineiro e no arquivo da Circunscrição Mineira do Norte, é difícil escrever a história destas minas devido à ausência de testemunhos pessoais.

O manifesto mineiro para a mina de ‘Borrageiros’ foi entregue na Câmara Municipal de Montalegre a 18 de Setembro de 1916 por José Frederico Lourenço da Cunha, de 32 anos e residente em Caminha, que descobriu naquele local por inspecção de superfície uma mina de volfrâmio e outros metais. O ponto de partida para a demarcação da concessão mineira 949 ficou definido a 300 metros a partir do alto dos Borrageiros medidos no rumo nascente, seguindo até ao Penedo Redondo até ao Ribeiro do Couce e o curso do mesmo ribeiro até à sua nascente, confrontando pelo nascente com o marco geodésico de Chamições (Chamiçais), do poente com Carris, do Norte com Matança e do Sul com Cidadelha (Cidadelhe). Por endosso, a mina seria cedida a Paul Brandt, cidadão suíço de 37 anos residente no Porto, e a António Lourenço da Cunha, de 43 anos residente em Caminha e gerente da Empresa Hidro Eléctrica do Coura, Lda. Em Outubro os vários filões são estudados pelo Professor F. Fleury do Instituto Superior Técnico, o qual procede à recolha de amostras que submete para análise pelo Professor Charles Laspierre. Em Novembro, Paul Brandt e António Lourenço da Cunha, requerem o reconhecimento oficial do jazigo. O Engenheiro Chefe de Repartição de Minas, Manuel Roldan y Pego, emite os éditos de concessão a 17 de Novembro, sendo publicados no Diário do Governo a 22 de Novembro.

Sem meios de acesso para viaturas, os trabalhos na mina sempre foram rudimentares e inicialmente executados à superfície. O minério obtido no Verão de 1917 era transportado por muares para a casa do juiz de paz de Cabril, José Maria Afonso Pereira, onde ficava depositado. No local da mina não existiam habitações confortáveis e capazes de resistir aos rigores invernais da Serra do Gerês. Após os primeiros trabalhos no Verão de 1917 onde terão sido obtidos cerca de três toneladas de minério, os dois detentores do registo mineiro solicitam a 26 de Dezembro que lhes fosse permitida a transferência do minério para Frades do Pinhedo…

Assim, a Mina de Borrageiros tem uma história mais antiga do que as Minas dos Carris, porém, infelizmente, parte dela perdida para sempre.



Caminhando num cenário quase apocalíptico, procurei então baixar para a estrada florestal que se dirige para o Porto da Laje e percorrê-la até atingir o ponto onde - há muitos anos - teria descido vindo de Porta Roibas. A estrada florestal desce a encosta de Lagoa passando abaixo das Portas do Abelheiro e entrando na Corga de Mão de Carvalho. Esta, parece surgir nascida do ventre granítico de Borrageiros, afundando-se desde a Corga das Mestras, rasgando o granito à medida que entra profundamente nas ravinas. Após passar o ribeiro, já perto do curral de Curral Mão de Carvalho, a estrada entra no Corrego de Cambeiro (parte final da Corga de Valongo) e passa ao lado dos Currais de Conze / Cambeiro. A minha memória recordava-se deste lugar como o local de descida vindo de Porta Roibas, mas a erosão da encosta parecia esconder o carreiro que dali, subiria para os píncaros serranos. Após olhar com mais atenção, lá se vislumbra uma grande mariola que indica o caminho que em ofegante luta, vai subido a encosta. Seria uma trepada de cerca de 400 metros após 17 km sem paragens de monta!

A subida deve-se fazer com calma, tanto pelo esforço que exige, como pela magnífica paisagem que se nos depara a cada passo dado. Os Currais de Conze vão-se afundando no fundo do vale, mas à nossa frente, as Quinas de Arrocela vão ganhando uma respeitosa pujança. O vale é todo ele uma ode à magnífica mestria da Natureza que agraciou aquelas paragens com as mais brutas paisagens deste nosso Gerês que nunca pára de surpreender por muito que o conheçamos.

O carreiro vai-se vencendo com paragens que nos enchem o olhar, mesmo por entre aquele cenário pós-nuclear. A certo ponto, torna-se já discernível o topo das Medas de Porta Roibas. Sendo um pouco confusa a parte final, os últimos metros são vencidos em esforço, mas a recompensa da chegada traz o alento necessário para o resto da jornada.

Porta Roibas é daqueles lugares ímpares no Parque Nacional. Isto talvez parece um lugar-comum e de facto, são imensos os lugares no Parque Nacional que são ímpares. Porém, existe naquelas paragens algo que nos transcende e a paisagem será certamente parte dessa incógnita que nos faz voltar outra vez, e outra vez... e outra vez! 

Encetando o «regresso» após uma já merecida paragem para almoço e pequeno descanso, segui em direcção ao Curral de Premuinho e tomei o carreiro em direcção ao Rendeiro, passando «ao lado» do Curral de Bezerros. Após passar o Rendeiro, entrei num peculiar cenário que fazia os Prados da Messe surgir por entre uma «neblina» cinzenta à luz filtrada do Sol sobre as Albas. Um profundo silêncio inundava aquelas paragens e mesmo o som do vento havia sido ofuscado por dantesco cenário. Daqui, subi à Lomba do Burro e depois à Lameira das Ruivas, descendo então pela Costa de Sabrosa para a Mata de Albergaria. A parte final do percurso fiz pela estrada em direcção à Portela do Homem para descobrir o meu carro coberto com uma fina camada de pó vermelho...

Ficam algumas fotografias do dia...












































Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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