quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

"O Presépio Incompleto"

 


Como é tradição, o blogue Carris apresenta um conto de Natal da autoria de Luís Vendeirinho para esta quadra de 2025.

O Presépio Incompleto

A queima do madeiro era o momento esperado na noite de consoada, o corolário da festividade que reunia a gente da aldeia no adro da capela, depois da reunião das famílias no redor das mesas fartas de carnes e de doces, que rivalizavam com a arte dos melhores chefes de cozinha pelo carinho com que eram confecionados. Bem regados, todos vinham aquecer-se até altas horas ao lume, o que era mais um pretexto para continuarem a emborcar os néctares destilados das videiras, entre canções e desafios à boa disposição de cada um.

As camponesas que tinham ajudado a restaurar as três figuras do presépio, concebidas em cartão e tecidos finos para decorarem a rua, gabavam-se do seu trabalho, enquanto as mais velhas ficavam à janela entregues às suas lengalengas. O presépio de rua fora construído sob um telheiro, não fosse nevar sobre as santas imagens, que era suportado por um ferro enterrado na calçada de granito, mas naquele ano um espírito iluminado decidiu que umas luzinhas coloridas iam compor a obra da arte colectiva. E assim foi, iluminaram o presépio ante o qual todos se benziam e alguns oravam a pedir pela protecção do céu.

Vá, compadre! Diga-nos então se na sua cidade há obra como esta! Vossemecê é cá dos nossos, mas falta-lhe uma decoração assim lá na selva donde vem, como usa dizer. E madeiro que arda tão bem como este também não deve ser fácil atear à porta dos vossos palácios.”

Diz bem, diz sim senhor.” – Respondeu o convidado da terra, congeminando numa fracção de segundo como ia entalar o outro. E fê-lo inspirado no pequeno altar natalício, tão presente no seu espírito, apesar de turvado pelas bebidas que já tinha no bucho, e onde, se ainda podia raciocinar, o Menino se aquecia com o bafo da vaca e do burro.

Diz-me que o nosso presépio não está como devia? Olhe que, se lhe falta a vaca, pelo menos vossemecê podia aqui dormir a fazer de burro.” – Toda gente ria, sem excepção, sem ressentimentos entre os gracejos que faziam parte da festa. 

Um dos velhotes que lhes fazia companhia, até ali muito calado, resolveu dar sinal da sua presença e disse bem alto, para que todos ouvissem: “Não há vaca? Ora esperem por mim que vou buscar a minha bezerra à loja e ato-a eu mesmo aqui ao poste. Pelo menos esta noite havemos de ter presépio completo, meio completo quero eu dizer.” – E foi rua acima.

De regresso, para espanto geral, viu-se que o velho não se tinha consolado em trazer só a bezerra. Trazia a bezerra por uma mão e, triunfante, um burro pela outra, cada uma das criaturas presa às cordas que atou ao poste. A festa continuou até o cansaço vergar cada folião por sua vez, indo-se recolher enrolados nas mantas que a noite pedia. 

A aldeia acordou como nada o fazia prever. Um garoto corria, de casa em casa, gritando na sua aflição que acontecera uma desgraça.

O burro comeu o Presépio! O burro comeu o Presépio!” – Numa algazarra geral a minha gente veio saber se era verdade. Pois era. O burro tinha-se consolado com as palhinhas do Menino e, não contente com a sua sorte de burro, tinha esfarrapado as Santas Figuras com a dentadura rija. Quando o pároco perguntou pelo autor da ideia luminosa do burro e da bezerra, todos se calaram, solidários no despertar original.

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