Alcantilada por entre as encostas agrestes da Serra Amarela, Vilarinho da Furna constituía um «mundo à parte». Quase fechados sobre si próprios, os habitantes da aldeia desaparecida desenvolveram uma série de crenças e superstições que toldavam os momentos de relativa solidão nos dias mais escuros do seu longo Inverno.
No seu livro "Vilarinho da Furna - Uma Aldeia Comunitária" (reedição INCM, 1981), Jorge Dias leva-nos a conhecer o mundo supersticioso de Vilarinho da Furna. Transcrevo aqui esse texto...
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Vamos agora entrar no campo da superstição pura, naquela zona obscura da crença, que tem resistido séculos à acção da Igreja, e se mantém, ainda hoje, quase tão viva como outrora. Para bem compreendermos a mentalidade desta gente, devemos lembrar-nos que eles se encontram um pouco à margem da História; são como charcos parados em depressões das margens dum rio torrencial. O rio corre, uma vezes revolto e temeroso, outras vezes mais calmo e risonho, mas caminha sempre para o seu fim, que é o mar, enquanto os charcos lá ficam a reflectir as estrelas nas noites calmas de verão, ou perturbados pelas chuvas e ventos do inverno, mas praticamente fechados em si, quase que com destino próprio. Por isso, os habitantes destas regiões solitárias e agrestes, que vivem entre encostas rochosas e sombrias, onde o inverno pesa mais que o verão, cercados ainda por velhos bosques espontâneos, onde uma vida misteriosa pulula, não são facilmente influenciados pelas correntes do pensamento, ou da civilização. A civilização chega lá na forma de alguns instrumentos mais aperfeiçoados, ou de algumas fazendas da industria mais baratas, mas o seu espírito escapa-se-lhes. Do pensamento só chega o aspecto mais degradado e mercantilizado: o jornal. Mas, mesmo este, só o recebem um ou dois que emigraram, noutros tempos, e querem ainda ter a impressão de guardarem contacto com o mundo em que viveram. É, contudo, só a impressão, porque o meio é mais forte do que o indivíduo, e ao fim duns anos de luta o homem é novamente assimilado.
Colocado no meio duma paisagem grandiosa e esmagadora, o homem vive continuamente ameaçado por forças malignas e espíritos maus que é preciso aplacar. Não é naturalmente tão viva a crença nesses espíritos, como o foi há muitos séculos, mas é contudo ainda extraordinariamente viva.
Qualquer acto da vida tem o seu ritual, que muitas vezes se nos escapa, ou porque no-lo escondem, ou porque já se tornou imperceptível à força de repetido. Muitas práticas mesmo, já representam automatismo tradicional, e os homens esqueceram-se do seu significado primitivo. Pode-se dizer que a superstição forma uma longa cadeia, cujos primeiros elos já foram esquecidos, e só surgem ocasionalmente, embora se lhes tenha perdido o sentido, e em que os últimos se misturam inconscientemente com os valores da vida actual.
Como já dissemos, a superstição é a crença em certas forças que é preciso aplacar, ou chamar em auxílio do homem, ou que muitas vezes só se desejam interpretar.
A pseudo-ciência, que permite ao homem dominar essas forças, é a magia. Esta tem determinado mitos e dogmas, se bem que rudimentares, porque a magia tem sempre fins utilitários em vista, enquanto a religião se propões objectivos elevados e fins superiores. A magia visa, como dissemos, fins utilitários e práticos que, como é natural, variam segundo as profissões dos indivíduos e as circunstâncias em que eles se encontram, possuindo determinadas fórmulas para os diferentes casos.
Nós podemos dividir essas fórmulas em quatro tipos principais: agrícolas, medicinais, marítimas e eróticas. Em Vilarinho temos de excluir as marítima, que como é natural, não têm lá razão de existir. As fórmulas eróticas também quase não existem a não ser em pequena coisas, como as práticas da noite de S. João de que falamos abaixo. As mais importantes são as duas primeiras, pois, como camponeses, em primeiro lugar está a necessidade de proteger as colheitas, e como homens as de se defenderem pessoalmente contra as investidas dos espíritos malignos. A magia ten duas atitudes: uma passiva, de mera defesa contra o ataque, outra activa, em que procura aproveitar-se das forças existentes na natureza, para obter determinados fins. Segundo Frazer ("Les Origines magiques de la Royauté", Paris, 1920 - "L'Homme Dieu et l'Immortalité", Paris, 1928), a magia assenta em dois princípios do pensamento primitivo, a saber: primeiro, todo o semelhante atrai o semelhante, ou um efeito é semelhante à sua causa; segundo, as coisas que uma vez estiveram em contacto, continuam a exercer acção uma sobre a outra, mesmo que o contacto tenha acabado. Ao primeiro chama-lhe lei de semelhança e ao segundo lei de contágio ou contacto. Da primeira lei conclui-se que se pode obter efeito por simples imitação, da segunda, que aqui que se fizer a um objecto material, se faz à pessoa com quem ele esteve em contacto. Vê-se que os grandes princípios lógicos da magia, se reduzem a duas aplicações diferentes e falsas na associação da ideias.
As principais práticas supersticiosas neste povo de agricultores e pastores têm por fim proteger as colheitas, e relacionam-se com festas e ritos pagãos, hoje em grande parte confundidos ou misturados com práticas cristãs. As duas principais épocas são as dos solstícios, que coincidem com o Natal e o S. João. Como em muitas outras regiões da Europa, repetem-se aqui certos costumes, que não vale a pena enumerar por serem extensivos a todo o país. Além disso, a consciência pagã perdeu-se, e o que se festeja hoje é o nascimento do Menino Jesus e não dum novo ano que começa, assim como no S. João é também o S. João Baptista, e não a época da plenitude da vida e das colheitas.
Contudo, a superstição pode-se facilmente distinguir da religião propriamente dita, numa série de costumes ligados a festas cíclicas como: o Natal, os Reis, o Carnaval, a Páscoa, o S. João, etc.
Na noite de Natal, pela meia-noite, vêm à rua com um cavaco aceso tirado da lareira, para ver de que lado está o vento. Depois, conforme o resultado, sabem o tempo que vai haver durante metade do ano. Chamam-lhe as têmporas. Se vem do Norte, o ano é frio; não mata nem cria. Se é do Sul, o ano é quente. Se é do Nascente, vão ter chuva quente. Se é do Poente, vão ter chuva fria. Outros costumam ir às cortes do gado, a essa hora, ver para que lado estão deitados os bois e as vacas, tirando também daí conclusões do tempo. No S. João também se pode adivinhas o tempo por processos idênticos.
Nos Reis, costuma ir um grupo de rapaziada pelas portas cantar, e no dia seguinte vão pedir à porta de quem cantaram. Costume esse relacionado com antigas práticas pagãs.
Sobrevivências dum deus da vegetação, que em muitos lugares se sacrifica na forma do Judas (Jorge Dias, "A queima do Judas", in "O Nosso Lar", 1949, n.º 3), e que se supõe remontar aos tempos neolíticos (Richard Weiss, "Volkskunde der Schweiz, Erlenbach-Zurique, 1946, pág. 159), encontrámo-lo no forma do Pai Velho. O Pai Velho, é um boneco de palha vestido com roupas de homem, que no Domingo Gordo e na terça-feira de Entrudo costumam passear pelas ruas da povoação e pelo campo, dentro dum carro de bois. Atrás vai outro carro, enfeitado com flores e cheio de moças a cantar, acompanhado por uma ronda de rapazes, a tocar viola, concertina e cavaco.
No dia 1.º de Maio, também costumam pôr maias nas portas e janelas. Na véspera, seja muito ou pouco o serviço, vai sempre um de cada casa apanhar maias. Dizem eles, que é para comemorar o milagre que sucedeu quando Nosso Senhor andava perseguido e se refugiou numa casa de gente amiga. Um inimigo viu-o entrar na casa, e marcou-a com uma flor de giesta, mas no dia seguinte, quando veio com muito soldados para o matar, toas as portas e janelas estavam enfeitadas com maias, e ele não pôde reconhecer a casa em que Jesus se acolhera.
É bem sabido de todos que este costume tem raízes em ritos pagãos, cujo significado se perdeu entre o povo, mas que subsiste em muitos sítios e com outras formas, como o Maio Moço, as Rainhas de Maio, e a Árvore de Maio.
No dia de Páscoa, quando o Senhor visita as casas, costumam enfeitar as janelas com ramos de loureiro.
No S. João as moças sabem ler nas águas prognósticos de casamento, para isso deitam-lhe à noite um ovo, e conforme os desenhos que este fizer na água, assim será o seu destino. O orvalho da noite de S. João dá beleza aos homens e vigor aos velhos, e muitos esfregam-se com ele pela manhã cedo, antes do sol nascer.
Onde porém estas crenças são mais vivas é no respeitante à defesa do indivíduo perante os ataques dessas forças misteriosas, que umas vezes surgem na forma de doença estranha, ou de repente, quando de noite se vai por um caminho.
São as bruxas, os lobisomens e ainda espíritos indefinidos, que sob a forma duma sombra tolhem a pessoa de medo e a aniquilam. Até os próprios animais estão sujeitos a esses ataques. Para isso, os homens defendem-se com talismãs e amuletos de grandes virtudes. Ao pescoço das crianças com interites, vêem-se umas saquinhas, que contêm vários ingredientes, considerados como eficazes para afastar os meus espíritos. Um talismã muito usado contra os espíritos e contra os lobisomens é o sino saimão (signo Salomonis), que se vê gravado nas camas, nas cangas de bois e noutros lugares. As ferraduras de burro, ou de cavalo pregadas nas portas, também impedem a entrada dos espíritos, sobretudo às bruxas. Todos os actos dos homens devem ser calculados de maneira a evitar que o espírito se possa aproveitar da ocasião.
Um dia, vimos uma rapariga chegar-se a um rego de água, para se lavar. Primeiro lavou as mães, depois fez o sinal da cruz, e só depois disto é que começou a lavar a cara.
Quando uma pessoa fica tolhida por um susto, e não consegue depois encontrar sossegue nem saúde, tem de ser defumada, e para isso procura uma benzedeira, que põe umas brasas num caco, sobre as quais deita: alecrim, loureiro, sal, alho, bosta, fermentos, ruda, oliveira (falta um de que não se lembraram, pois são nove ingredientes).
Enquanto as brasas fumegam, a benzedeira dá três voltas à roda do padecente e diz: "assim como Nossa Senhora defumou o seu menino para cheirar, assim te defumo eu para sarar". E nomeia uma série de santos, apóso que está terminada a defumação.
Também se pode aproveitar a força mágica das benzedeiras para curar certas doenças, como, por exemplo: espinhela caída, ou pulsos abertos. Chama-se a isto, coser o pulso aberto. Quando alguém abre um pulso, procura uma mulher velha, que conheça as maneiras de talhar, e se chama benzedeira.
Esta põe um púcaro de água ao lume até esta ferver, em seguida pega no púcaro, que coloca de fundo para o ar dentro de um alguidar. Se o pulso estiver, de facto, aberto, a água sobre do alguidar para o púcaro, e então a benzedeira coloca sobre o fundo umas tesouras metidas num novelo de linha, com uma agulha e um dedal. O padecente estende o braço sobre o púcado enquanto a benzedeira vai dizendo: "Eu te coso", o padecente responde: "fios tortos". Depois de terem repetido isto algumas vezes, a operação está terminada e o pulso fica são.
(...)
Sobre libisomens e bruxas são inúmeras as histórias, aliás todas parecidas. A crença nos lobisomens é extensiva a grande parte do Mundo. Frazer diz que encontrou estra crença na Europa, na Ásia e na África (James George Frazer, "Le Trésor Légendaire de L'Humanité", Paris, 1925, pág. 41). Por todo o nosso País, assim como por muitas otras regiões da Europa, tivemos ocasião de deparar com gente que sabia histórias acerca dos lobisomens, que nas suas linhas gerais coincidem umas com as outras. Consiste o mito do lobisomem na crença de que certas pessoas, graças à magia, se podem transformar em animais: lobos, burros, bodes, etc., e que depois, a certas horas da noite, vão pelos campos e caminhos cometer desacatos e inquietar as pessoas e os animais. Quem ferir o animal em que a pessoa se transformou, fere ao mesmo tempo o feiticeiro e o encanto acaba, mas convém evitar ser salpicadp pelo sangue, pois podia-se também ficar lobisomem. São várias as explicações dos motivos por ques e fica lobisomem, mas é crença quase geral, que o feiticeiro o não é voluntariamente, e anda a cumprir um fado imposto pelo destino. Este destino actua de maneiras diferentes: ou o feitiço resulta da ordem do nascimento, isto é, quando num casal depois duma série de sete filhas nasce um filho, ou quando se é contaminado pela bada ou pelo sangue dum lobisomem. Reproduzimos aqui uma destas histórias que nos contaram em Vilarinho.
História do lobisomem
"À casa do pastor Cancela, vinha, às vezes, um lobisomem em forma de reixelo (bode), que perturbava a tranquilidade da casa, pondo os animais em sobressalto e causando prejuízos.
O Cancela, que era homem decidido e pouco para medos, escondeu-se, uma noite, entre o centeio, com um cuitelo (cutelo), e esoerou até o reixelo chegar. Quando este veio, e passou aos saltos perto dele, atirou-lhe o cutelo com tal força, que o chão no dia seguinte estava tinto de sangue; mas nem vestígios do reixelo nem do cutelo. O Cancela procurou e matutou no caso, durante muito tempo, mas por fim desistiu e esqueceu-se do sucedido.
Passados tempos, o Cancela foi comprar reses por outras terras e, na casa dum negociente de gado, viu um cutelo igual ao seu, o que o espantou bastante, pelo que perguntou ao homem, onde é que ele tinha adquirido aquele cutelo. Mas o homem não lhe respondeu, e convidou-o a comer com ele, indo-se ambos deitar em seguida.
No dia seguinte pela manhã, o home foi buscar a res (cabras) que o Cancela queria comprar, e não quis dinheiro pelos animais, dizendo que lhos dava em paga dele lhe ter quebrado o encanto, pois já não voltava a transformar-se em reixelo depois de o cancela o ter ferido."
A história, como se vê, não difere do tipo geral da lenda do lobisomem, simplesmente a ida de cumprir um fado, é aqui bem clara, pela expressão: quebrar o encanto. V~e-se perfeitamente que o lobisomem é um feiticeiro involuntário, e vítima de forças mágicas superiores e implacáveis.
É cusioso, que em épocas de grande exaltação da imaginação, como sucedeu durante a Idade Média, chegou a haver verdadeiros casdos de alucinação com carácter patológico, que a medicina classificou de licantropia, e que consistia em certas pessoas se convencerem de que eram lobos, e começarem a andar a quatro e a uivar como esses animais (Oliveira Martins, "Sistema dos Mitos Religiosos", Lisboa, 1922, pág. 322). Hoje a imaginação contenta-se em acreditar na existência de tais seres monstruosos.
As primitivas fontes germânicas já fala nos homens lobos, dotados duma força e ferocidade extraordinárias, crenças qua ainda subsistem (Werwolf ou Boexenwolf no ocidente da Alemanha central) entre outras populações rurais (Eugen Mogk, "Mitologia Nórdica", Coleccion Labor, 308, pág. 66).
As bruxas
Ao contrário dos lobisomens, as bruxas já não cumprem um fado, mas servem-se voluntariamente da magia para poderem exercer depois o seu poder sobre os homens.
A crença nas bruxas é também muito antiga e imensamente espalhada pela Terra, havendo épocas do ano, sobretudo nos dias de S. Tomás, S. João, véspera de Natal e segundas-feiras, em que são mais temíveis (James George Frazer, "Le Trésor Légendaire de L'Humanité", Paris, 1925, pág. 39), tendo todos de se acautelar das suas investidas.
Não há distinção clara entre buxa, feiticeira, mulheres de virtude, benzedeiras, etc. Crê-se em geral que as benzedeiras e as mulheres de virtude têm também o poder de se transformar noutros seres, mediante o conhecimento da magia, que possuem, e andam depois a chupar o sangue dos animais e das pessoas, a cometer toda a casta de desacatos, que por vezes podem ir até desgraçar completamente as pessoas. Nem sempre, porém, as benzedeiras têm o poder mágico de serem bruxas, nem feiticeiras, e o seu pode limita-se a aplicar fórmulas que conhecem para curar certos males, ou ajudar as pessoas. Já por aqui se vê, que há duas espécies de feitiços, os bons, e os maus. De facto, as feiticeiras podem ajudar a sarar os enfermos. e a afastar espíritos maus, ou podem aplicar a força mágica contra as pessoas, para as tolher, ou para as tornar presas de outras, como sucede com os filtros de amor, que têm a capacidade de tornar a pessoa que os toma irremediavelmente enamorada de quem lhos dá, mesmo que sejam pessoas velhas e horrendas. Em VIlarinho, e no nosso País, de maneira geral, só as mulheres têm estes poderes mágicos.
Os maus olhados são sempre lançados por mulheres, com feitiços, e só as mulheres conhecem bem a magia activa e sobretudo a magia má. Já Michelet dizia, que para cada feiticeiro há dez mil bruxas (Oliveira Martins, "Sistema dos Mitos Religiosos", 4.ª ed., pág. 214). Por isso, embora as pessoas precisem delas, e as procurem em momentos de aflição, são sempre temidas e odiadas, e em quase todas as épocas foram perseguidas. São seres que têm pacto com o Diabo, e cuja força mágica lhes vem de qualquer origem diabólica e terrível, e que renegaram toda a fé, o que não quer dizer, que em muitas povoações não enfileirem entre as beatas. O povo, serve-se de todos os meios para afugentar os seus feitiços: ramos de alecrim e arruda com uma tesoura aberta sobre o travesseiro dos filhos; rosários de cabeças de alho ao pescoço (também útil para preservar das bichas); figas como amuleto ou como gesto; chinelos velhso queimados; uma luz acesa sempre, desde que a criança nasce até que se baptiza; uma ferradura pregada na porta; meias calçadas do avesso; espada nua à cabeceira, etc. (Oliveira Martins, "Sistema dos Mitos Religiosos", 4.ª ed., pág. 316). Só assim se pode conseguir sossego durante a noite. Desde todos os tempos perseguidas, queimadas pelo Tribunal da Inquisição, às centenas, presas hoje pela polícia, elas continuam sempre as suas práticas mágicas, e continuarão apesar de toda a guerra que se lhes possa fazer, enquanto a população se não elevar a uma compreensão de vida mais perfeita, mais lógica e esclarecida.
A bruxa vive da concepção mítica da Natureza, que dá lugar a todas as crendices e temeores, e morrerá se o homem alcançar uma atitude de reflexão crítica perante o Mundo e a Vida. Porém, estamos ainda longe de chegar a tal idade, e hoje, como outrora, a bruxca predirá o futuro, defumará os tolhidos, coserá os pulsos abertos; levantará espinhelas e partirá louca pelos ares, cavalgando um engaço, para um sabbat longínquo e desvairado, onde se cevarão os espíritos enlouquecidos por uma imaginação histérica e infrene.
Em Vilarinho da Furna, como em muitos outros pontos do País, é esta mais ou menos a crença em tais seres míticos, dos quais se contam inúmeras histórias, que nada trazem de novo. Contarei, contudo, uma, que lá ouvi, como ilustração dessas crenças.
História das bruxas
"Um vaqueiro, chamdo Manuel Guedes, ia certa tarde pelo caminho das Laceiras, quando veio uma mulher montada num burro ao contrário; com a cara virada para o rabo e com muitas galinhas à volta dela.
Quando o Guedes se aproximou o grupo transformou-se em duas lindas mulheres, muito bem vestidas, que começaram a dançar à volta dele, e o queriam levar.
O Guedes alito benzeu-se, e tudo desapareceu como por encanto."
Aqui temos nós uma das muitas variantes destas histórias. Primeiro, a possibilidade das bruxas se transformarem em animais e noutras pessoas, como mulheres muito lindas. Depois, o aspecto estranho em que se apresentam; esta montada num burro ao contrário e com galinhas à volta. Por fim, o elemento de sedução: duas mulheres muito lindas, a dançar à volta do homem.
Como elemento último, o fim macabro de levar o homem com elas, para o fazerem vítima dos seus propósitos diabólicos. Contra esta força mágica, o homem aplica-lhe uma forma antídoto, que neste caso foi o sinal da cruz, e o feitiço desfaz-se como por encanto.
É uma cadeia de pensamentos míticos, de simplicade elementar, e sempre parecidos em toda a parte, mas que para a gente ingénua do campo, tem a força imensa do sobrenatural, que os apavora e ao mesmo tempo os atrai, pelo que este maravilhoso contém de riqueza de possibilidades ilimitadas. Enquanto que a imaginação trabalha sobre dados míticos, o seu campo é vasto, e promissor de todas as riquezas e venturas. Para um camponês a vida não começa e avaba limitada pelas necessidades da lavoura e da paisagem que o cerca. A cada momento pode surgir uma moura que lhe descubra uma riqueza fabulosa, ou uma feiticeira que lhe revele mundos e prazeres incomparavelmente superiores aos terrenos. No fundo, é isto que o citadino moderno procura, com o jogo e a lotaria, o cinema e muitas outras varinhas mágicas, simplesmente com muiti piores resultados.
Como acabamos de expor (...), o habitante de Vilarinho tem uma típica feição religiosa, com acentuada tendência para acreditar no mindo invisivel, que se oculta para lá das formas aparentes, não podendo en muitos casos estabelecer destinção nítida entre a religião e a superstição. O cristianismo foi muito mais rígido na luta contra a magia, do quer tinha sido o paganismo, mas ainda não foi capaz de a exterminar, pois, como atrás dissemos, a magia só pode ser destruída no dia em que o homem superar a atitude mítica perante a vida, o que é difícil. Portanto, nestas regiões, em que o homem vive numa fase mental mais simples e menos submetida à disciplina da causalidade lógica, não é de estranhar que a força da superstição demore a ser destruída. Porém, devemos acrescentar, que se a atitude supersticiosa é comum a quase todos, não quer dizer, que não haja na maioria uma elevação mental própria da concepção cristá do mundo. Enquanto pela magia o homem procura dominar directamente as forças ocultas nas coisas, para fins úteis, sem se elevar à noção de seruno e supremo, utilizando somente a vontade para conseguir os seus fins, a religião cristã ensinou-o a conseguir esses fins, rogand a Deus, de quem tudo e todos dependem.
Essa lição de humildade perante Deus, aprendeu-a bem o habitante de Vilarinho, que mostra, na sua crença, rasgos de elevada espiritualidade, aliados a um apuramento de certas qualidades humanas, que o distinguem bem do homem grosseiramente supersticioso.
Que admira se ele ainda acredita na magia. Não acreditam nela tantos, que vivem em contacto com o mundo moderno e dele parecem participar pelo seu exterior? Dez Caro Baroja que em Espanha se empregam amuletos no Século XX iguais aos pré-históricos, como, por exemplo, o «zinguiñarri» basco (Caro Baroja, "Algunos Mitos Españoles", 1944, pág. 269). Ora, segundo Frazer, a Idade-Média da Magia correspondia no espiritual à Idade da Pedra no material (Frazer, "L'Amme, Dieu et l'Immortalité", Paris, 1928), portanto, se no material ainda há sobrevivências, não admira que as haja no espiritual.
Lentamente, muito lentamente, todos estes pequenos mundos individualizados, mercê duma autarquia quase perfeita, vão cada vez estabelecendo mais contactos com o século, até que um dia cairão na órbita única, para que hoje se tende, na qual se apagarão todas estas singularidades de que aqui falamos. É talvez triste, para nós, ver desaparecer a riqueza multiforme de usos, costumes e tradições, que realçam e valorizam a vida. Mas, ninguém pode evitar a marcah lenta do tempo, e nossos dias bastante mais veloz, porque essa marcha é a da evolução da humanidade para um destino talvez mais lógico, mais racional e mais perfeito, em que se perde em pitoresco e emoção romântica, mas se espera ganhar em elevação humana e espiritual.
Texto adaptado de "Vilarinho da Furna - Uma Aldeia Comunitária" (Jorge Dias, reedição de 1981)
Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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