Por entre a individualidade de cada lugar da Serra do Gerês, o Curral de Absedo destaca-se pela sua singularidade. Aquele é um local remoto repleto de silêncio, mistério e misticismo, um local onde as tribos nómadas que em tempos deambulavam por aquelas paragens escolheram para deixar as suas milenares marcas.
O Curral de Absedo foi o destino de uma jornada que é sempre longa através das penedias e altos que nos mostram os largos horizontes do Parque Nacional.
O caminho começou na tranquilidade da Mata de Albergaria e por entre o sussurrar da conversa entre o Forno e o Maceira que juntam forças antes de alimentar o Homem. Pela Costa de Sabrosa acima, o mundo ia-se afundando atrás de mim enquanto as paredes graníticas do Cantarelo se encrespavam por entre o caos de rochas aprumadas que limitavam o horizonte. Por aqui, a subida é sempre feita em força, pois a montanha obriga-nos à sua veneração olhando o profundo vale do Rio Forno que se fecha e eleva ao formar as paredes alcantiladas do Cabeço do Corno Godinho e as muralhas do Pé de Medela.
Com largos horizontes, a paisagem alarga-se pela albufeira da Barragem de Vilarinho das Furnas e eleva-se para o Pé de Cabril, para a Serra Amarela e para os altos de Soajo e Peneda, entrando Galiza adentro.
Percorrendo a encosta e passando sobre o Canto do Rio Forno, a larga trepada leva-nos à Lameira das Ruivas e prossegue pelo topo da Água dos Vidros até à Lomba de Burro já nas imediações dos Prados da Messe, local de um curto descanso antes da subida para a Torrinheira.
Com o Verão a contar os seus últimos dias, os Prados da Messe são o local tranquilo pela manhã e oferecem a água necessária para o resto da jornada. Lá pelos altos, os ventos do Estio secaram as fontas e estas só brotam de forma tímida para os lados do Curral de Premoinho.
Continuando caminho, a subida continua a ser feita tirando partido dos velhos carreiros seculares que calcorreiam a serra. Passando o colo que oculta a visão, a imensidão do Cantarelo realça a beleza dos Prados Caveiros magnificamente verdes nestes dias de Verão. À medida que estes se ocultam na volta da Lomba do Cantarelo, vamos ganhando altitude para chegar à Chã do Cimo da Água da Pala. Aqui, caminhamos já à vista de imensos horizontes, e o nosso olhar vai mergulhar no imenso vale do Rio da Touça e no Vale de Fechinhas, sendo este coroado pelos altos de Rocalva e Roca Negra. Para Sul, Porta Roibas faz-se notar e a Nascente o promontório granítico de Borrageiros é indisfarçável.
O primeiro objectivo do dia seriam as ladeiras da Torrinheira (Cabeço da Cova da Porca ou 'Estorrinheira') onde também encontramos os restos de uma pequena exploração mineira ali feita nos anos 40 do século XX.
Após a passagem da Torrinheira, inicia-se a descida ao longo do bordo da profunda Corga de Cagarouço que se abre para o Rechão, já no Vale do Alto Homem. Apreciando a Ravina da Cova da Porca, um só poderá imaginar como as gentes do Campo do Gerês subiam aquelas paredes para conseguir chegar a Absedo? O vale é profundo e de certa forma grotesco na forma como se afunda no granito; simplesmente magnífico.
Descido o bordo da corga e flectindo à direita, chegamos ao enigmático Curral de Absedo cuja sua visão nos acompanha na descida. Perfeitamente circular e com um muro de divisão mais ou menos orientado no sentido Nascente - Poente, o curral é um dos mais extremos da Serra do Gerês. A sua localização representa quase como que uma representação da «luta» do homem na sua sobrevivência nestas serras. Com o seu forno pastoril alagado, o curral é ainda visitado pelos animais nas suas longas deambulações pela serra durante os meses da vezeira. O local traz-nos a tranquilidade e o silêncio dos locais longínquos numa montanha perdida nas grandes cordilheiras do mundo.
A interpretação do topónimo "absedo" é curiosa. Do mirandês, podemos tirar que "abexedo", o mesmo que "abissedo" ou "absedo, é um "sítio virado a norte; sítio desabrigado", o que nos ajuda a entender um pouco aquele lugar tão remoto.
Foi este local onde, há cerca de seis mil anos, o homem primitivo escolheu para deixar a sua marca de presença na rudeza da montanha. A 11 de Julho de 2012, dava-se a descoberta de uma série de figuras rupestres até então desconhecidas e que são uma das belas repesentações da Arte Atlântica no nosso território. Uma explicação destas figuras surge no final deste artigo.
Após um pequeno descanso e uma passagem pelas figuras rupestres de Absedo, sigo então pelo topo da Corga de Valongo até tomar o caminho secular que liga os Prados da Messe a Borrageiros. Seguindo na direcção dos Prados da Messe, passo nas imediações do Curral de Premoinho e do Curral de Bezerros, seguindo depois para o Rendeiro, porta de acesso às chãs da Messe. A parte final do percurso seria feita descendo a Costa de Sabrosa e depois, enveredando pela Estrada da Geira, em direcção ao Campo do Gerês pela frondosa Mata de Albergaria.
Ficam algumas fotografias do dia...
As figuras rupestres de Absedo
O sítio de arte rupestre de Obsedo foi descoberto ocasionalmente, em meados de 2012, por Rui Barbosa, residente em Braga e frequentador habitual das altas serranias do Gerês. Tendo comunicado aos serviços do Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG), em 19 de Julho desse ano, a existência de uma gravura rupestre numa remota localização daquela serra, deslocaram-se ao local, em 21 de Agosto, técnicos do Departamento de Gestão de Áreas Classificadas do Norte (DGAC-N) do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), nomeadamente um dos signatários [AR] e o engenheiro florestal Jorge Dias, acompanhados pelo informante. O objectivo dessa visita foi no sentido de se proceder ao reconhecimento do sítio arqueológico, bem como à sua rigorosa localização e caracterização preliminar. Tendo-se constatado estar perante um motivo circular comum na designada Arte Atlântica, dessa primeira incursão resultou ainda a descoberta de outros motivos gravados em superfícies adjacentes
O Painel 5 encontra-se no seguimento do anterior, separado deste por uma diáclase. É o painel com maior grau de inclinação entre os já identificados. As gravuras consistem em três sulcos lineares, com 34 m de comprimento, dispostos ao longo da rocha e seguindo o seu declive natural, mas sem relação óbvia uns com os outros. Têm todos alguma sinuosidade, em particular o inferior, colocado de forma a aproveitar o rebordo do painel, sendo o único que apresenta um profunda covinha a interromper o sulco.
O painel 6 é, sem dúvida, o que apresenta os motivos mais originais e peculiares de todo o conjunto. Encontra-se um pouco acima do painel 5, mas lateralmente, sobre o rebordo do maciço. A superfície quase horizontal separa-se em duas partes por uma fissura e apresenta cotas ligeiramente desniveladas. Os motivos encontram-se dispostos em sequência, em grupos de dois, e alinhados sensivelmente no sentido Norte-Sul. Um grupo de motivos situa-se junto ao rebordo Poente, outro cerca de 3,5 m para Nordeste do primeiro e o último encontra-se mais afastado do rebordo. Todas as figuras apresentam idêntica dimensão e morfologia. Medem cerca de 50-60 cm de comprimento e 30 cm de largura, conformando uma oval larga, rebaixada na superfície da rocha, em cujo interior, seguindo o eixo longitudinal, foi delimitada outra oval em relevo, mais estreita. No interior desta gravura gravou-se sulco fundo e rectilíneo. Num dos casos, este sulco interno aproveita e segue uma linha de fractura natural.
Por fim, ligeiramente afastados destes motivos, e colocados mesmo no rebordo natural do maciço rochoso, encontram-se alguns pequenos entalhes artificiais de forma rectangular ou arredondada, de funcionalidade desconhecida.
O Painel 7 situa-se numa zona mais meridional do maciço rochoso, no seu sector mais elevado. Tem uma superfície quase horizontal, de textura extremamente irregular, que dificulta sobremaneira o discernimento dos contornos do motivo gravado. Este configura uma representação de contorno subquadrangular com cantos arredondados, embora haja dificuldade em compreender se se trata de uma figura aberta ou se apresentaria organização simétrica, encontrando-se o lado direito muito degradado ou apenas esboçado. O contorno, irregular, é definido por três sulcos dispostos genericamente em paralelo, embora o sulco exterior se afaste alguns centímetros dos demais no lado meridional da figura.
Na sequência dos resultados obtidos nas visitas de reconhecimento é possível, aprioristicamente, tecer algumas considerações sobre o conjunto em apreço.
Em primeiro lugar, analisando a sua distribuição ao longo do afloramento rochoso, há uma sugestão de intencionalidade e relação mútua na distribuição das gravuras pelos diferentes painéis. Desde logo, pela forma como as várias superfícies decoradas surgem naturalmente aos olhos do observador à medida que se percorrer o grande maciço. A excepção é a combinação de círculos concêntricos do painel 1. A sua localização é a mais espectacular do conjunto, parecendo existir algumpropósito em tornar esta figura, de certo modo, distintiva. Pese embora se situe numa plataforma "fechada" naturalmente, com um único acesso pelo corredor Norte, é a única passível de ser visualizada de diferentes ângulos e pontos de observação, nomeadamente a partir da superfície superior, detendo-se daí uma perspectiva "aérea" do seu enquadramento e da sua morfologia.
O posicionamento das três covinhas do painel 3 precisamente no ponto específico de acesso à plataforma superior também não parece ser casual, fazendo a transição entre os dois grupos de painéis e indicando, simultaneamente, o caminho para a posição privilegiada de observação sobre o motivo circular do painel 1.
Outro factor de unidade prende-se com o facto de a maioria dos painéis apresentar um único motivo, normalmente de grandes dimensões (painéis 1, 2, 4 e 7) ou, quando há mais do que um, eles se repetirem (três covinhas no painel 3, três sulcos no painel 5, seis motivos idênticos no painel 6). Não se verifica a presença de tipologias repetidas de painel para painel, mas há um "ar de família" que parece unificar todo o conjunto, pelo estilo e técnica de execução das gravuras. A excepção estará, talvez, na ambiguidade e originalidade dos motivos do painel 6. Esta possível unidade de grupo não significa necessariamente que todas as representações sejam coetâneas em absoluto. Sugere, sim, que pertencem a um mesmo período cultural e que a sua implantação espacial poderá não ser aleatória mas estar mutuamente relacionada, embora não haja argumentos para afirmar se a sua execução perdurou no decurso de um tempo curto ou longo.
Atendendo às características estilísticas das maioria das gravuras presentes, de cariz abstracto, geométrico, com recorrência de contornos curvilíneos, e à sua técnica de execução, diríamos que esse "ar de família" se enquadra na tradição de Arte Atlântica do Noroeste Peninsular. Aliás, a Serra do Gerês posiciona-se no limite oriental da área de distribuição desta tradição, que se estende desde a fachada atlântica da Galiza à Beira Litoral portuguesa. Os sítios inventariados com arte rupestre a ela pertencentes geograficamente mais próximos de Obsedo situam-se nas faldas ocidentais da Serra Amarela, entre os quais se destaca o Penedo do Encanto / Bouça do Colado, estudado por António Marinho Baptista nos finais dos anos 70 e inícios dos anos 80 do século transacto.
A composição de círculos concêntricos do painel 1 encontra paralelos em inúmeros motivos similares em toda aquela região, embora as suas grandes dimensões sejam apenas comparáveis, no contexto dos sítios portugueses, com os que ocorrem em Monte dos Fortes I, na região de Valença, embora estes não ultrapassem 1,20 m em diâmetro, ainda que contenham maior número de anéis do que o exemplar em apreço.
Podemos assim propor uma datação pré-histórica para o sítio de Obsedo, não sendo possível maior detalhe cronológico, embora se adi ante que, em sentido lato, a tradição de Arte Atlântica, cujo enquadramento temporal é ainda tema de aceso debate, se poderá balizar entre o IV e o I milénios a.C., ou seja, abrangendo um vasto período da Pré-História Recente.
Neste momento, não será possível, em face do seu ineditismo no contexto do Noroeste peninsular, classificar com exactidão os motivos do painel 6. Mas o modo como estão representados na rocha indubitavelmente lembra a representação da genitália externa feminina. É provável que haja, de facto, um cariz sexual nestas representações, ainda que a sua intencionalidade seja enigmática.
É também difícil aferir a relação do painel 6 com os restantes: fará culturalmente parte do conjunto, ou será algo individualizável, cultural e/ou cronologicamente apartado dos restantes motivos? Estes motivos apresentam um grau de desgaste similar aos demais, mas a técnica de gravação, em baixo relevo, é distinta.
Também a sua implantação muito junto ao limite do maciço, que ali define uma quebra vertical de vários metros e condiciona o movimento do observador, é diferente, assim como a sua possível associação aos entalhes no rebordo rochoso, inexistentes nos restantes painéis.
Em suma, o sítio de Obsedo pode incluir-se na tradição de Arte Atlântica do Noroeste Peninsular, com a incógnita relativa aos motivos do painel 6.
Não é, no entanto, um sítio típico. Apresenta características muito próprias, quer ao nível do reportório iconográfico, quer da distribuição das figuras no suporte e relação espacial que estabelecem entre si.
Uma das suas originalidades prende-se com as grandes dimensões dos motivos gravados que parecem acompanhar e moldar-se ao gigantismo da paisagem granítica da serra.
A implantação espacial deste conjunto é também pouco usual. Os sítios de tão elevada altitude são raros ou inexistentes, embora esse desconhecimento se possa simplesmente dever à escassez de investigação realizada nestes ambientes. Talvez o isolamento do sítio no alto da serra do Gerês seja responsável pelas suas peculiaridades: uma “originalidade serrana”, poderíamos dizer.
A criação deste conjunto poderá eventualmente relacionar-se com o aproveitamento e exploração sazonal dos recursos naturais do alto da serra, talvez não muito distantes daqueles que, tradicionalmente, as comunidades locais mantiveram até há algumas décadas atrás. Apenas nos é consentido especular sobre a origem e os territórios das pessoas que criaram estas gravuras e viveram neste espaço, mas a sua implantação num maciço destacado, visualmente imponente, num local com uma tão forte relação paisagística com o vale superior do Homem, e a percepção longínqua da Portela do Homem, sugerem que possa ter sido delineado, a partir desta, o trajecto principal de acesso ao sítio. E talvez aqui possa residir a chave para uma melhor compreensão do sítio.
Entre a Portela do Homem e Absedo há um forte potencial para a identificação de arqueossítios, incluindo novos núcleos de gravuras rupestres. Obsedo pode constituir, assim, um ponto de partida para uma investigação espacialmente mais alargada, o que permitirá esclarecer se o sítio é uma singularidade ou se está adscrito a conjunto local, e se as peculiares gravuras do painel 6 são ou não únicas, e de que forma se inserem no contexto da arte rupestre da região.
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