Para compreendermos a actual relação do Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG) com as populações que habitam dentro desta área protegida, temos primeiro de conhecer a História da forma como o Estado «chegou» a estas paragens.
Ao longo das décadas, a relação das populações locais com os Serviços Florestais e, após 1970/1971, com o Parque Nacional da Peneda-Gerês foi sempre uma relação conflituosa e difícil.
Muitas vezes costuma-se dizer que "o que nasce torto, dificilmente se endireita" e por vezes este parece ser o mote de uma relação com altos e baixos desde 1888. Em diversas publicações neste blogue, já descrevi a forma como os Serviços Florestais foram executando os seus trabalhos de arborização das serranias do Gerês. Falta escrever o resto da História, isto é, como foi a chegada às outras serras que fariam mais tarde parte do PNPG e a forma como essa relação evoluiu no tempo. Os arquivos (ainda) existem em qualquer lado, faltará vontade de o fazer.
No artigo "Uma Breve Nota Sobre a História do Parque Nacional da Peneda-Gerês", o autor Adolfo Morais de Macedo, faz uma resenha da História do PNPG.
O texto a seguir é extraído e adaptado do livro "Mata do Gerês - Subsídios para uma Monografia Florestal", de Tude Martins de Sousa, publicado em 1926. O texto (muito longo) relata os primeiros meses da presença dos Serviços Florestais na Serra do Gerês e inicia uma série de publicações neste blogue que irão relatar os tempos conturbados da chegada dos Serviços Florestais à Serra do Gerês.
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Embora a primeira ideia da formação da mata do Gerês se deva ir buscar à viagem da família real áquela serra em 1887, só no ano imediato se realizaram as primeiras diligências para a instalação dos serviços florestais.
De facto, em Agosto de 1888, sendo ministro das obras públicas Emidio Navarro e Elvino Brito director geral da agricultura, foi mandado ao Gerês o inspector dos serviços florestais, o silvicultor Pedro Roberto da Cunha e Silva, para estudar a serra e procurar os meios de ela passar à posse do Estado, salvando-se assim o numeroso e variado arvoredo existente e promovendo-se de futuro o seu povoamento regular.
Desata visita resultou a convicção da alta vantagem de submeter uma boa parte da serra ao regime florestal, aproveitando logo o inspector a oportunidade para dar efectivação aos seus desejos, que representavam também os desejos do Governo.
Para tal efeito dirigiu-se em ofício de 16 de Agosto de 1888, datado das Caldas do Gerês, ao administrador do concelho de Terras de Bouro, perguntando-lhe se a parte da serra compreendida entre as vertentes do Rio Homem, a partir da sua origem, até mais abaixo do ribeiro do Ramisquedo, que estavam cobertos de arvoredo, pertenciam ao município, corporações ou particulares, e no caso afirmativo a quem pertenciam e quais os títulos de posse que podiam apresentar.
Mais perguntava, no caso de esta parte da serra pertencer à Câmara, quais os actos por ela praticados que demonstrassem tal direito, bem como os rendimentos que ela auferia da venda de madeiras e lenhas e quais as providências tomadas para obstar à sua completa destruição e meios de polícia empregados na sua fiscalização.
A este ofício respondia com outro, também das Caldas e na mesma data, o administrador do Concelho, Manuel Joaquim Leite Ribeiro, informando, com respeito aos ditos terrenos, não lhe constar que pertencessem a particulares, e que, até àquela data, o município não tinha exercido qualquer acto, pelo qual se pudesse julgar que os referidos montes lhe pertencessem.
Por tal resposta, voltou o inspector a oficiar, ainda em 16 de Agosto, ao Administrador, ponderando-lhe que ao Governo competia, como poder central, tomar posse daqueles terrenos, para obstar a que o resto do arvoredo existente fosse destruído pelo fogo e pelo machado, terminando por pedia àquela autoridade que lhe desse a posse deles e lhe indicasse os nomes de oito indivíduos da sua confiança a quem pudesse entregar a vigilância da mata.
Quando aos povos, o Governo regularizaria a exploração dos arvoredos e reconstituiria os povoamentos, sem ofender as regalias que eles gozavam dos montes, garantindo-lhes as pastagens, lenhas, cepas, etc.
Respondeu logo o administrador que daria ao Estado a posse solicitada no dia imediato, 17 de Agosto, em Leonte.
De facto, ali se lavrou o seguinte auto:
"Auto de posse - Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e oitenta e oito aos dezassete dias do mês de Agosto do mesmo ano no sitio de Leonte, onde estavam presentes o administrador do concelho de Terras de Bouro, Manuel Joaquim Leite Ribeiro, comigo escrivão a seu cargo e oficial da administração, achando-se igualmente presentes o inspector dos serviços florestais Pedro Roberto da Cunha e Silva, e o silvicultor subalterno Francisco Ferreira Loureiro e as testemunhas presenciais adiante nomeadas e no fim assinadas, para o fim de proceder á posse da parte da serra do Gerês, a partir do rio na direcção de Pedra Bela até á Portela do Homem; bem como as vertentes do Rio Homem a partir da sua origem até ao ribeiro de Tirliron (Águas das Mós). E estando assim todos os presentes foi pelo dito administrador dada a posse dos referidos terrenos e arvoredos ao inspector dos serviços florestais para serem incorporados na administração florestal e ficarem a ela sujeitos, ficando garantidos aos povos o uso das pastagens e bem assim o fornecimento de matos, lenha, cepas, frutos, etc., entendendo-se que esta concessão é unicamente para os povos que actualmente estão no uso e costume de se utilizarem da parte da serra, regulando-se, porém, estas concessões de forma a não prejudicar o arvoredo existente e trabalhos que se vão encetar. E por esta forma, depois de preenchidas as formalidades legais requeridas em similhantes actos, ficou tomada a posse por êle inspector para todos os efeitos. E para constar foi lavrado este auto na presença dos supramencionados e das testemunhas Serafim dos Anjos Silva, casado, proprietário, e António Joaquim Alves, solteiro, proprietário, ambos da freguesia de Vilar da Veiga, lugar das Caldas do Gerês, comarca de Vieira. Todos vão assinar depois dêste lido por mim escrivão da administração. João Fernandes da Silva Rego, escrivão da administração, o subscrevi e assino. (aa) Manuel Joaquim Leite Ribeiro, Pedro Roberto da Cunha e Silva, Francisco Ferreira de Loureiro, Serafim dos Anjos da Silva, António Joaquim Alves, João Fernandes da Silva Rego, oficial da administração Francisco Mendes."
Ficou assim desde esta hora nas mãos do Estado uma das maiores e melhores promessas de riqueza florestal e uma das mais pitorescas e valiosas regiões da serra portuguesa; restava agora que o Estado se lançasse abertamente na espinhosa tarefa de a salvar da ignorância, da maldade e da má vontade dos povos vizinhos e de estabelecer ali uma fonte permanente de actividade e de trabalho.
E de facto assim sucedeu, pois que por portaria de 7 de Setembro seguinte foram nomeados os primeiros guardas, tendo já antes ido para o Gerês algum pessoal encarregado do levantamento da planta topográfica do que ao Estado pertencia.
Mas, dias amargos estavam reservados para todos quantos tinham de colaborar nos trabalhos de iniciação, como cortado tem sido sempre de espinhos, contrariedades e canseiras o longo período de consolidação e de harmonia com os povos, tão difíceis de conquistar para o seu interesse imediato e para o interesse do país.
Assim, poucos dias volvidos sobre a posse, começaram a esboçar-se sinais de resistência e oposição, como bem se pode ver no ofício seguinte, que em 21 de Agosto de 1888 o regente florestal Álvaro António de Carvalho dirigia ao Inspector dos Serviços Florestais:
"Il.mo e Ex.mo Sr. - Em referênica ao meu telegrama de hoje, tenho a honra de comunicar a V. Ex.ª que os ânimos dos povos dos lugares próximos ao Gerês, especialmente os de Vilarinho, se acham bastante excitados com a posse que o Estado tomou dos terrenos chamados «Serra do Gerês».
Enquanto não serenam, parece-me, depois de ouvir o Ex.mo Sr. Administrador do Concelho, ser conveniente sustar os trabalhos de levantamento de plantas destes terrenos.
Os trabalhos de triangulação de que me acho incumbido, têm concorrido para a efervescência de ânimos que se nota, apesar de começarem em sítio bastante afastado da povoação, como é a Borrageira.
Vindo os quatro condutores desenvolver este serviço, muitos mais motivos existirão para exaltar os povos.
Fico aguandando as ordens de V. Ex.ª
Deus guarde V. Ex.ª - Caldas do Gerês, 21 de Agosto de 1888.
Il-mo e Ex.mo Sr. Inspector dos Serviços Florestais - O regente florestal, (a) Árvaro António de Carvalho."
O fermento mau estava efectivamente em actividade, pelo que era preciso ir-se estudando as origens e fins, para lhe opor medidas de contra-acção eficaz, resolvendo o Inspector dos Serviços Florestais publicar em 14 de Setembro o edital seguinte, que dava satisfação a necessidades e reclamações dos povos, que andavam na voz corrente e eram afinal a confirmação do que já se assegurava no auto de Leonte.
EDITAL
Pedro Roberto da Cunha e Silva, inspector dos serviços florestais, por Sua Majestade Fidelíssima, que Deus guarde, etc.
Faço saber:
1.º
Que continua livre o uso das pastagens na parte da serra do Gerês hoje sujeita ao regime florestal.
2.º
Que o abastecimento de lenhas secas continua a ser permitido, como até agora, naquela parte da serra.
3.º
Que o arranque de cepa e fabrico de carvão também continua a ser permitido.
4.º
Que continua a ser permitido a apanha de medronho e de matos para adubo das terras, pelos povos que estavam nesse costume.
5.º
Finalmente, que estas regalias concedidas aos povos ficam sujeitas à fiscalização dos empregados e guardas florestais.
Lisboa, 14 de Setembro de 1888. - Pedro Roberto da Cunha e Silva
Se bem que este edital viesse lançar uma pouca de água na efervescência que cada vez mais se ateava, o mal estar avolumava-se dia a dia e já não havia meio de sustar os acontecimentos que se preparavam, quanto mais que pessoas de decidido ascendente sobre os povos, como por exemplo o abade de Vilar da Veiga e porventura outros indivíduos, era dos primeiros a estimular-lhes a má vontade e a excitar-lhes o espírito de vindicta.
Assim, a explosão tinha de dar-se, mas, apesar de concertada com todos os segredos e reservas em vários concilíabulos e reuniões preliminares, todos os preparativos se tornavam conhecidos, como deles dava conta p regente florestal Álvaro António de Carvalho no detalhado ofício que se segue, de 3 de Outubro de 88:
"Il.mo e Ex.mo Sr. - Estamos chegados a um período bastante agudo sobre a posse que o Estado tomou da serra do Gerês.
A descrença geral que se nota, e que se afunda em que as concessões que se fizeram no edital que V. Ex.ª mandou afixar são provisórias, e talvez a má fé de outros que exploram esta questão para animar as massas, obriga-me hoje a oficiar a V. Ex.ª.
Segundo informações que me chegaram ontem, alguns indivíduos de Vilar da Veiga, têm-se reunido há algumas noites, para conferenciarem no meio de fazerem um assalto ao pessoal encarregado do levantamento da planta da Serra, e por meio da força obrigá-lo a retirar, com o fim, dizem eles, de amedrontar o Governo, e por este modo esperam que as autoridades competentes desanimem, e mandem suster todos os trabalhos. Se eles se saírem bem desta acção, supõem que nunca mais se tentará a arborização nesta parte do país.
Estes indivíduos, segundo as mesmas informações, são secundados pelos povos de Fafião, Cabril, Pincães, sendo um dos cabeças de motim o regedor de Louredo, concelho de Vieira.
Adiantam as informações mais, que se houver dificuldades em encontrar o pessoal na Serra, que virão todos em massa ao Gerês.
Como V. Exº. bem sabe, este lugar, logo que não se achem aqui famílias a uso das águas, compõe-se de uns 40 indivíduos, o máximo, contando crianças, e oferece-se perfeitamente a uma investida dos povos alvoroçados. Além disto acha-se a onze léguas da cabeça de distrito, e num caso crítico, dum momento para o outro, é impossível ser socorrido.
Por outro lado, os de Vilarinho também têm as suas reuniões. As informações de que há destes não são tão assustadoas, por enquanto.
Parace-me, pois, conveniente para eviat algum acontecimento bastante desagradável, que o pessoal en carregado do levantamento da planta da Serra, não se afaste muito do Gerês, e que para este lugar venha uma força armada para proteger desde já o pessoal de qualquer investida, e ao mesmo tempo os viveiros de árvores que se fizerem em breve.
Deus guarde a V. Ex.ª - Caldas do Gerês, 3 de Outubro de 1888 - Il.mo e Ex.mo Sr. Inspector dos Serviços Florestais - O regrente florestal, Álvaro António de Carvalho."
Os acontecimentos continuavam em marcha, como ainda em telegrama de 8 o confirmava o mesmo regente e rebentavam ostensivamente em fins de Novembro, como diz o regente florestal de 1.ª classe, Adolfo de Oliveira, neste telegrama:
"Ex. mo Sr. Inspector dos Serviços Florestais - Ministério das Obras Públicas - Lisboa.
Grande alarme, muitas árvores arrancadas, só a comparência de V. Ex.ª que pode fazer concessões pode evitar o conflito. - O Regente de 1.ª classe, Adolfo de Oliveira."
Este telegrama, do dia 26, produziu o efeito desejado, porquanto, poucos dias depois o inspector dos serviços florestais chegava ao Gerês para avaliar dos factos passados e tomar as necessárias providências.
Acompanhado do admisnistrador do concelho, Leite Ribeiro, e do 2.º oficial do Ministério das Obras Públicas, Manuel Nunes, fez levantar logo um auto de investigação sobre os acontecimentos dos dias 25, 26, 27, 28 e 29 de Novembro, no qual se averiguou que um guarda tinha afirmado existir no Gerês um edital com tais proibições que os povos se deviam revoltar pelas multas e exigências a que ficavam sujeitos; que o guarda Francisco Poças afirmara ser proibido trazer fouces dentro da mata, tendo-lhe dito o guarda António Ribeiro de Carvalho Leite que nem mesmo os cães lá seriam consentidos; que outros guardas afirmavam que seriam lançadas multas pelo gado que entrasse na mata, pelos produtos que tirassem, etc.
Em vista disto, que revelava, da parte de quem tinha por dever mostrar-se prudente, uma falta de tino que mais irritava os ânimos, altamente propensos a bem receberam todas as impressões más, foram imediatamente suspensos e depois demitidos dos seus lugares os guardas António Ribeiro de Carvalho Leite e Francisco Poças.
O inspector ouviu directamente os povos, que por fim delegaram poderes em um seu representante, para de ambas as partes se chegar a acordo no que houvesse de se estabelecer de parte a parte para boa harmonia do futuro.
De quanto então se passou, dão claramente conta os documentos seguintes, um ofício do inspector dos Serviços Florestais e a representação formulada pelos povos e em seu nome assinada pelo seu procurador António Joaquim Mantins Ribeiro.
Il.mo e Ex.mo Sr. - Apresentando a V. Ex.ª a representação que me foi entregue e assinada por António Joaquim Mantins Ribeiro, eleito pelos delegados das freguesias do Vilar da Veiga, Rio Caldo, S. João do Campo, Vilarinho, Santa Isabel, Cabril, Louredo e S. João da Cova, para os representar, cumpre-me pôr V. Ex.ª ao corrente de todos os factos ultimamente ocorridos no Gerês.
A dúvida em que os povos limítrofes da serra estavam, de que seriam coartadas as suas regalias com os trabalhos de organização da serra do Gerês, fez com que eu publicasse o edital de 14 de Setembro último, com o qual os povos ficaram satisfeitos e permaneceriam sossegados e tranquilos, se não houvessem indivíduos menos escrupulosos, que sem motivo algum, propalaram que o edital era provisório, e que em breve seria revogado por outro em que seriam defesas as concessões que ao presente se faziam.
O próprio prior do Vilar da Veiga, na ocasião da missa, e depois de ler o edital disse: "Que por enquanto as promessas eram boas, mas que de futuro sabe Deus o que seria."
Não contentes com isto, levaram a sua audácia, a fazer um edital manuscrito, em que se dizia que seriam multados todos os gados que aparecessem na serra, estabelecendo mesmo multas.
O receio, porém, de que tal edital fosse apanhado, fez com que ele, apenas afixado e lido, fosse logo retirado, não me tendo sido possível obter um só exemplar, não obstante os prémios que ofereci.
Ainda mais excitou o povo os ditos de dois guardas, que asseguravam que em breve começaria a vigorar um novo regulamento, chegando mesmo a dizerem que nem cães se permitiriam dentro da mata e que tratassem de os matar para não serem multados.
Do auto junto poderá V. Ex.ª certificar-se do que deixo dito pelo depoimento de testemunhas. Estando assim os povos excitados, alguém se aproveitou deste estado para se fazer seu salvador e começou a mandar emissários de sua confiança a fim de que viessem ao Gerês quatro individuos de cada freguesia, pois que ele faria com que fossem atendidos os seus pedidos, que, sendo o cumprimento do meu edital, e sabendo o mesmo individuo que o interesse do governo era mantar o que tinha ordenado, fácil lhe era obter vitória. O caso, porém, não correu como ele imaginava, porque em vez dos quatro individuos que ele desejava, correram ao Gerês as povoações em peso e, se não fosse o mau tempo, ali se apresentariam as de Lindoso, Soajo e Barca, que nada têm com a serra do Gerês, e, sendo assim, dificilmente ele poderia conter tão grande massa de povo, e as consequências seriam, de certo, muito sérias, tanto mais que os povos de Lindoso não podem ver os de Vilarinho por causa dos gados dos primeiros utilizarem as pastagens dos segundos.
Felizmente limitaram-se os povos a eleger como representante o signatário da representação, a quem disseram o que desejavam, impondo-lhe a condição de que a representação só a mim deveria ser entregue.
Ainda alguns representantes se demoraram no Gerês até à minha chegada, que foi retardada pelo temporal que apanhei no caminho da serra da Estrela, e que me obrigou a chegar ao Gerês um dia mais tarde daquele que constava.
Os delegados com que falei apresentaram as suas queixas, que achei justíssimas, e declararam que nada mais desejam senão a garantia d'aquilo que lhes estava prometido no edital.
Recebi a representação que junto passo às mãos de V. Ex.ª, e que foi muito além da minha expectativa. Tudo o que nela se pede é da maior justiça, e em nada prejudica os trabalhos de arborização da serra.
As medidas que os povos propõem, não me atraveria eu a aconselhar ao governo que as pusesse em execução, tais como as multas, que eles desejam para aqueles que cortarem, descacarem ou estragarem o arvoredo.
Sobre a validade da eleição feita pelos povos para serem representados por Joaquim Martins Ribeiro, não só os eleitos dos povos de S. João do Campo e Vilar da Veiga me notificaram essa eleição, senão que na representação que por aquele me foi entregue certufica o administrador do concelho e comandante da força ser verdadeira tal eleição, feita na sua presença por todos os povos que vão mencionados na referida representação.
Este modo de representar seria mais legal, se viesse pelos presidentes das respectivas juntas de paróquia, mas sendo certo que o modo tumultuoso porque as povoações se reuniram no Gerês, está longe de ser legal e normal, e uma vez que elas em massa delegara, para os representar, um indivíduo que julgam de sua inteira confiança, entendi que devia aceitar a representação como legal e como sendo a vontade do povo. O pedido, repito, é justíssimo e em nada altera o edital, antes o restinge um pouco, e por isso julgo da maior necessidade a sua aprovação, afim de que os povos sosseguem e possa viver tranquilos.
Na minha retirada passei na povoação de Vilar da Veiga, onde era esperado por todo o povo, que me acolheu com todo o respeito e me repetiu que ficaria satisfeito atendendo-se às suas justas reclamações, e que estava pronto a auxiliar os trabalhos que o governo estava empreendendo na serra.
Antes de terminar, devo falar de um outro facto, que deu origem a requisição da força, mas que é perfeitamente isolado; refiro-me aos tiros dados no dia 25, nos viveiros, pelos guardas. No viveiro estavam dois guardas vigiando as árvores que ultimamente vieram de França, e pressentindo vultos, chegaram ao sítio em que elas estavam abaceladas e viram arrancar algumas. Como os vultos não retirassem dispararam dois tiros para o viveiro, os quais foram correspondidos do lado do Gerês. Este facto assustou os habitantes e demais guardas, que começaram logo a fazer toques de corneta, havendo alguns espíritos mais exaltados que chegaram a dizer que estavam nas encostas mais de 400 homens. Isto fez com que o regente florestal, Vicente Ferreira Lopes Cordeiro, pedisse a força que então marchou, e que ali se achava na Quarta-feira, dia de que antemão estava marcado para a reunião do povo para eleger o seu representante e apresentar o seu pedido.
A ida da força, a meu ver, foi acertada, pois preveniu algum conflito que se poderia ter dado entre o povo, e nesta caso os resultados poderiam ser funestos.
São estes casos que se passaram; e uma vez atendidas as justas reclamações dos povos, pode o governo abertamente continuar a sua obra civilizadora, obstando ao vandalismo praticado no arvoredo da serra, e progredir no seu repovoamento florestal.
O facto de a Câmara Municipal de Terras de Bouro, como representante dos povos, não ter intervido neste assunto, prova o nenhum direito que ella diz ter sobre os terrenos, que podem ser paroquiais, mas nunca municipais, e são agora as próprias juntas de paróquia que, juntamente com o povo, apresnetam condições com que o governo deve fazer os trabalhos, que são não só aceitáveis, mas asd únias em que elas se devem fazer, sem prejuízo da riqueza pecuária, e bem-estar dos povos, pois que da arborização nunca lhes poderá vir a sua ruína, mas sdim um elemento de vida e de progresso.
Por último direi a V. Ex.ª que o administrador do concelho, Manuel Joaquim Leite Ribeiro, é digno de todo o louvor pelo modo como procedeu, e porque tem sido sempre um bom auxiliar.
Os empregados florestais que ali se achavam procederam com toda a prudência, não só os regentes pelas providências que tomaram, como o mestre Seraphim dos Anjos da Silva, que tem prestado bom serviço e é estimado pelos povos.
Deus guarde a V. Ex.ª - Lisboa, 5 de Dezembro de 1888.
Il.mo e Ex.mo Sr. Conselheiro director geral de agricultura O inspector dos serviços florestais, Pedro Roberto da Cunha e Silva.
Representação dos povos da Serra do Gerês
Os povos das freguesias de Vilar da Veiga, Rio Caldo, Covide, S. João do Campo, Vilarinho, Carvalheira, Santa Isabel, cabril, Louredo e S. João da Cova, todos limítrofes da Serra do Gerês, desejam e pedem que o governo de Sua Majestade lhes garanta o prometido no edital de 14 de Setembro do corrente ano e assinado pelo Ex.mo Sr. Pedro Roberto da Cunha e Silva.
Os povos d'estas freguesias não desejam revoltar-se nem ir de encontro às leis do país, mas unicamente desejam uma garantia autêntica e legal das promessas que lhes foram feitas, e que são as saeguintes:
1.ª Poderão apascentar os seus gados;
2.ª Fabricar carvão;
3.ª Roças matos para adubar as terras;
4.ª Apanharem os frutos silvestres sem prejuízo do arvoredo;
5.ª Cortarem e apanharem lenhas secas e rasteiras.
Todas estas garantias e direitos serão para os povos sempre livres e gratuitos;
6.ª Obrigar-se o governo a vender madeiras, segundo a possibilidade dos maciços e a fornecer gratuitamente aos indivíduos necessitados destas freguesias as madeiras que lhe sejam de urgente necessidade, comprovada por atestados legais, e segundo as regras seguidas nas matas do estado.
Todas estas concessões serão reguladas e fiscalizadas pelos empregados florestais.
Os povos das mesmas freguesias prometem auxiliar, sempre que possam, os empregados florestais, para que os arvoredos não sejam destruídos por incêndios, descaques ou cortes, e prometem igualmente fazer com que os seus gados não cheguem onde haja viveiros ou plantações novas; mas desejam que os empregados que guardam a floresta tenham a seu cargo a defesa desses viveiros ou plantações, vistoq ue a pobreza dos povos destas freguesias lhes não permite ter pastores para os seus gados.
As multas somente pdoerão ser aplicadas áqueles que deitarem fogo, que prejudique; aos que descascarem árvores ou as cortarem sem ordem dos empregados florestais, ou áqueles que por abuso ou maldade não cumprirem o que aqui está escrito.
Será declarado aos povos das fregquesias, todas as vezes que se fizeram plantações, o perímetro que elas ocuparem e o tempo durante o qual ali ficam vedadas as pastagens e o rôço, a fim de os mesmos povos desviarem os seus gados para outros sítos da serra.
As plantações serão feitas por forma e com espaço de tempo necessário, para que aos povos não faltem as pastagens dos gados ou matos e lenhas. O chamados curraes ficarão para sempre livres de plantações, afim de os povos ali acurralarem os seus gados, como era de costume antigo.
As leis regulamentares para a arborização, polícia e garantia dos direitos dos povos, dimanarão de um decreto do governo de Sua Majestade. Cada freguesia receberá dois exemplares do Diário do Governo, que lhes servirão de documento e garantia para sempre. Os povos desejam que haja um empregado florestal superior, com quem se possam entender e a quem se possam queixar, sempre que isso seja necessário.
Caldas do Gerês, 2 de Dezembro de 1888 - Como procurador dos povos, António Joaquim Martins Ribeiro
Reconheço de verdadeira a assinatura supra e confirmo ser verdade o Sr. António Joaquim Martins Ribeiro ser o procurador de diferentes povos que se reuniram no Gerês, por os diversos factos se terem passado perante mim.
Gerês, 2 de Dezembro de 1888 - O administrador do concelho, Manuel Joaquim Leite Ribeiro.
Declaro que os povos das freguesias limítrofes do Gerês nomearam o Il.mo Sr. António Joaquim Martins Ribeiro como seu representante, facto este que se passou na minha presença. Gerês, 2 de Dezembro de 1888 - Joaquim Eduardo Pereira de Eça de Chaby, major de infantaria 8, comandante da diligência.
Está conforme. Secretaria da circunscrição florestal do Sul, 7 de Dezembro de 1888 - O regente florestal de 1.ª classe, Vicente Ferreira Lopes Cordeiro (texto extraído do Boletim da Direcção Geral de Agricultura, n.º 3, de Março de 1889).
Parece que na ocasião tomou vulto o boato de que o representante dos povos fora, pela influência que sobre eles exercia, pois era dos mais importantes proprietários da região, um dos seus maiores conselheiros para a resistência às determinações superiores e um dos maiores instigadores para a revolta.
Contra isso protestava ela, obtendo dos oficiais que comandavam as forças militares que ao Gerês foram impôr o respeito às ordens do Governo, a declaração seguinte, cujo autógrafo nos foi dado por um filho do interessado.
Il.mo e Ex.mç Sr.
Constando-me que alguém com fins, para nós completamente desconhecidos tem feito propalar boatos que podem pôr em dúvida a probidade e honradez de carácter de V. Ex.ª, nós abaixo assignados declaramos o seguinte:
1.º Que quando chegamos ao Gerês vimos que a pouca gente que ali se achava estava perfeitamente sossegada;
2.º Que durante a nossa permanência nessa localidade, não nos constou ser o Ex.mo Sr. António Joaquim Martins Ribeiro, amotinador ou cabeça de motim;
3.º Que não nos constou ter o mesmo senhor desacatado a autoridade ou a lei, ou aconselhado alguém a fazer arruaças ou motins;
4.º Que nos parece ter havido precipitação no pedido da força, pois não foi ela requisitada oelo administrador do concelho, o que nos foi declarado pelo mesmo senhos;
5.º Que houve sempre perfeito acordo entre o Ex.no Sr. Pedro Roberto, administrador do Concelho, e Martins Ribeiro em dar razão às reclamações do povo;
6.º Que o Sr. Martins Ribeiro foi escolhido pelos representantes das freguesias limítrofes do Gerês para servir de intermediário entre eles e a autoridade, a fim de que as suas justas reclamações fossem atendidas;
7.º Que estamos intimamente convencidos que o que deu lugar à agitação dos povos, foi o mau serviço feito por alguns guardas florestais, e tanto isso foi reconhecido, que o Ex.mo Sr. Pedro Roberto, depois das investigações a que procedeu despediu 2 ou 3 desses empregados;
8.º Finalmente declaramos que o Sr. Martins Ribeiro, longe de ser cabeça de motim ou chefe de revolta, como alguém querido propalar nestes últimos dias, prestou todo o seu auxílio às autoridades civis e militares, a bem da ordem e dos legítimos interesses dos povos que representava.
Braga, 14 de Dezembro de 1888
Joaquim Eduardo Pereira de Eça de Chaby (Major de infantaria 8)
José Teixeira Pinto (Capitão de infantaria 8)
Francisco Pedro de Almeida (Tenente de infantaria 8)
Joaquim José Dias (Alferes de infantaria 8)
José Servulo Badoni do Couto (Alfares de infantaria 8)
Em vista dos pedisos dos povos interessados e das boas vontades em atender às suas justas reclamações, publicou o Governo um regulamento especial para a serra do Gerês, no qual ficavam atendidos todos os desejos dos mesmos povos e garantidos para o futuro pela força legal que lhes dava o Diário do Governo
É como segue.
Atendendo ao que me representaram os povos das freguesias de Vilar da Veiga, Rio Caldo, Covide, S. João do Campo, Vilarinho, carvalheira, Santa Isabel, Cabril, Louredo e S. João da Cova, todos limítrofes da Serra do Gerês sobre a necessidade de se prescreverem regras e preceitos que deverão ser observados pelos agentes do Governo incumbidos de dirigir os trabalhos de arborização da referida Serra, que eles pela sua parte se ofereceram a auxiliar;
Considerando que são justas as reclamações dos referidos povos, cujos tradicionais regulados convenientemente, e consoante os desejos que manifestam, de modo algum prejudicar os trabalhos florestais já iniciados e que deverão prosseguir em conformidade com os preceitos técnicos legais:
Hei por bem aprovar o regulamento dos serviços florestais da Serra do Gerês, que faz parte deste decretoi e baixo assinado pelo Ministro e Secretário do Estado dos negócios das Obras Públicas, Comércio e Industria.
O mesmo Ministro e Secretário do Estado assim o tenha entendido e faça executar. paço em 13 de Dezembro de 1888 - REI - Emídio Júlio Navarro.
Regulamento provisório dos serviços de arborização da Serra do Gerês, a que se refere o decreto desta data
Artigo 1.º - O serviço de arborização da Serra do Gerês formará uma secção especial, dirigida por um silvicultor, tendo sob as suas ordens um ou mais regentes, e os guardas de polícia e viveiristas que forem necessários.
Artigo 2.º - Ao silvicultor encarregado da secção compete os serviços técnicos e administrativos relativos aos serviços a seu cargo, devendo por isso elaborar projectos e orçamentos dos trabalhos que deverão executar-se, e apresentar anualmente relatórios dos serviços feitos.
§ único - Os demais empregados ficam, para todos os efeitos, subordinados ao silvicultor encarregado da secção, devendo desempenhar todo o serviço que por ele lhes for determinado.
Art. 3.º - Aos povos limítrofes da Serra do Gerês continuam a ser garantidas as seguintes regalias:
1.º - O apascentamento de gados na serra;
2.º - O fabrico de carvão;
3.º - A roça de mato para adubo das terras;
4.º - A apanha dos produtos silvestres sem prejuízo do arvoredo;
5.º - O corte e apanha de lenhas secas rasteiras e, na falta delas, o fornecimento das árvores que pelos empregados florestais foram marcadas para esse fim, e bem assim, a concessão gratuita de madeiras aos indivíduos de comprovada pobreza.
6.º - A permanência dos currais como logradouros dos gados.
Art. 4.º - Todas as concessões a que se refere o artigo 3.º serão reguladas e fiscalizadas pelos empregados florestais, e sempre gratuitas.
Art. 5.º - Fica expressamente proibido:
1.º Lançar fogo nas serras em sítios que possam prejudicar o arvoredo;
2.º O corte ou descasque de árvores sem prévia licença.
Art. 6.º - Todo aquele que intencionalmente prejudicar os trabalhos de arborização ou não respeitar o que preceitua este regulamento, incorrerá nas penas da lei.
Art. 7.º - Será sempre declarado aos povos, por meio de editais, os perímetros em que se fizerem plantações e que por tal motivo são defesos para as pastagens.
§ único - Aos guardas compete exercer a necessária vigilância a fim de que os gados não entrem dentro do mesmo perímetro até que as plantações tenham atingido um desenvolvimento tal que não possam ser prejudicadas pelo livre apascentamento.
Art. 8.º - Os perímetros destinados às plantações serão demarcados de maneira a não prejudicarem a pastagem dos gados.
Art. 9.º - O Governo nomeará ou contratará para os lugares, a que se refere este regulamento, os indivíduos que, pelas suas habilitações e outros conhecimentos, julgar aptos para o bom desempenho dos serviços neles mencionados.
Art. 10.º - Pelas Direcção Geral de Agricultura serão dadas informações para o cabal cumprimento do presente regulamento.
Paço, em 13 de Dezembro de 1888, - Emídio Júlio Navarro
Este regulamento vinha dar sanção legal aos desejos formulados pelos povos, mas não vinha liquidar em definitivo as hostilidades de muitos que se mantinham irredutíveis e latentes contra os serviços florestais, não respeitando as suas leis nem os seus trabalhos, como depois se verá, embora aparentemente se mostrassem satisfeitos.
Vinha no entanto fechar um primeiro período de luta e de trabalho para a instalação definitiva do Estado (na Serra do Gerês).
Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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