terça-feira, 23 de abril de 2024

Trilhos seculares - Pelas paredes da Roca das Pias

 


Quem viaja pela Estrada Nacional 103, a certa altura não deixa de se impressionar com uma paisagem que lhe surge para os lados da Serra do Gerês. A certo ponto, surge-nos um colosso granítico que se eleva da paisagem, como que um farol imponente indicando a chegada a uma "Alexandria da Alma". Ali, por entre a rudeza do granito elevam-se os altos de Rocalva, Roca Negra e Roca de Pias.

Da mesma, esta paisagem toma-nos de assombro com as suas paredes alcantiladas quando a vemos de perto. Como gigantes de pedra, verdadeiros titãs guardiões dos altos e dos segredos seculares dos povos serranos, a nossa admiração torna-se imensa quando nos deles aproximamos e à medida que se agigantam ao olhar.


Sempre que vejo estas paisagens e por elas caminho, inclino-me em reverência e respeito por quem ali viveu e dali tirou o seu sustento. Por outro lado, a minha presença por entre as penedias rochosas dos altos, fazem-me sentir mais vivo do que nunca. Reinhold Messner, alpinista italiano, refere que "os dias que estes homens passam nas montanhas, são os dias em que realmente vivem. Quando as cabeças se limpam das teias de aranha, e o sangue corre com força pelas veias. Quando os cinco sentidos recobram a vitalidade, e o homem completo se torna mais sensível, e então já pode ouvir as vozes da Natureza, e ver as belezas que só estavam ao alcance dos mais ousados."

Esta citação descreve na perfeição a caminhada que hoje fiz ao subir as paredes da Roca de Pias. Não foi a primeira vez que por ali passei, há já muitos anos com o Xavier e a Xara, trepei aquele granito com o coração nas mãos e hoje foi a altura de tentar relembrar esse dia.


A caminhada começou na tranquilidade matinal do Arado. O ar fresco da manhã trazia-me o cantarolar do rio no seu leito e a música da passarada a despertar. A jornada do dia anterior estava já nas recordações e as botas pediam de novo o pó da terra. Bastão a caminho, segui então na direcção do Curral da Malhadoura com os seus gigantes blocos de granito. Foi o local para abastecer o cantil e seguir jornada até ao Curral dos Portos antes da viragem na Tribela e descida para a Ponte de Servas. O Rio do Conho corria tranquilo ao longo do vale que teria de percorrer para chegar a Entre-Águas, mas antes a passagem pelas imediações do Poço Azul.

Em Entre-Águas surgem-nos várias opções de caminhos a percorrer, mas só um deles me levaria a percorrer as emoções que procurava. Atravessando o rio, logo surgem as mariolas e o escondido carreiro que me farão subir encosta acima. Apesar de já por ali ter calcorreado, o passar dos anos turvara-me a memória e o que sentia era a novidade e o espanto das novas perspectivas que paisagens conhecidas; o Vale do Rio Conho a tornar-se distante, o Estreito a afundar na paisagem e os velhos teixos a cumear a estreita corga... um passo de cada vez.

"Ah, não peçam a graça de uma vida fácil! Peçam para se tornarem homens mais fortes! Não peçam para terem tarefas proporcionais às vossas forças! Peçam para que as vossas forças estejam à altura das vossas tarefas."

Lionel Terray

Um passo de cada vez e vai-se subindo a encosta. O carreiro tira proveito das travessias que a rocha foi criando. Aqui e ali, a vegetação toma conta dos passos e toda a atenção é pouca, sendo necessário um extremo cuidado. Não é uma subida para os fracos de coração... pelo esforço, pelas emoções e pela paisagem.

Na verdade, o gigante cabeço que domina a paisagem a partir do fundo do vale está agora a poucas centenas de metros, e surge, altaneiro, como a morada dos deuses que deve ser respeitada. A nossa presença naquele lugar baseia-se nisso mesmo, no respeito que devemos ter por onde estamos e por nós próprios.

Com o desaparecimento dos grandes rebanhos de cabras, os carreiros serranos foram desaparecendo da paisagem física e da memória dos homens. Não havendo quem mantenha os caminhos, restam as velhas mariolas que ali ficam a recordar outros tempos. Estas são agora pontos de referências fundamentais para que a nossa orientação nos leve ao destino pretendido. Serpenteando encosta acima, o carreiro vai ladeado os colos, passando pelas grandes lajes e atravessando pequenas corgas. Estas são paredes que devem ser percorridas em tempo seco, pois com a água tornam-se verdadeiras armadilhas para os incautos.

Subindo e a paisagem alarga-se; o que há pouco olhava inclinando a cabeça para cima, está agora abaixo dos meus pés. Porém, e apesar de estar a seu lado, pareço caminhar no ombro de um gigante. Vencida a pendente de mais de 350 metros de altitude em pouco mais de 850 metros de distância, surge-nos a visão do topo da Rocalva a dominar o horizonte. A partir daqui, o percurso torna-se mais calmo e a adrenalina da subida deixa-nos agora soltar as emoções acumuladas nos momentos de paragem durante a subida.

O regresso far-se-ia pelo Vale do Cando descendo inicialmente pelo Quinão do Meio e seguindo depois pela Encosta do Cando em direcção à encosta de Arrocela no topo da Corga Giesteira. Depois, descida para o Curral de Coriscada (Portelos), seguindo para os Cabeços de Junceda e regressando ao Arado.

Ficam algumas fotografias do dia...




















Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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