Em dias de chuvas abundantes, a ribeira gorgolhava da pedra num canto que invadia o bosque. A ponte centenária, construída com as melhores madeiras, já conhecera mais passageiros. Dum lado a vereda que os trazia da aldeia, entre currais e algum plantio de cereal, e doutro um vislumbre de trilho que se afundava no carvalhal entre os laços que a vegetação atava e entre misteriosos sons, do vento, dos pássaros, do ranger, da imaginação. Dum lado os que vinham de visitar a santinha, doutro o caminho para casa. A tradição mandava que a tradição se perpetuasse, netos de pastores, filhos de pastores e um moço que se atrevera a levar, ainda mocinho, o rebanho pela primeira vez aos pastos. Nesse dia, uma cabeça que ainda era amamentada fugiu-lhe da guarda e foi. O jovem pastor segui-lhe o rasto e atravessou a ponte, embrenhou-se no arvoredo e, para seu espanto e alegria, foi dar com o cordeiro anichado junto à fenda de um penedo onde, desde sempre diziam, alguém colocara uma santinha de loiça intacta. O primeiro dia como guardador de rebanho e de visitante da imagem. Na aldeia, o facto em nada contribuiu para alterar as lides, as conversas, salvo a intimidade do pastor com seu avô a quem sucedera, depois de lhe ter confiado que já sabia onde estava a santinha, e por conta de uma cabeça tresmalhada. “Vou pedir por nós à santinha”. A Natureza adormeceu e ressuscitou ano após ano, nada havia que perturbasse a paz daquela gente, até a fome ameaçar as casas quando não houve promessa de chuva quando por ela mais imploravam. Foi quando o jovem pastor conquistou as graças dos seus e a imagem a devoção que haveria de perdurar. Dos céus veio a bênção e a fartura dos celeiros. Por obra de alguém, em jeito de oferenda, desde então e em todas as vésperas do Natal um dos aldeões ia pelo caminho da ponte para colocar um pequeno cesto com trigo junto à imagem. Naquele ano coube a honra ao jovem pastor, que já medrara de corpo e em espírito se enraizara junto dos seus. Com a sacola a tiracolo, onde guardava o cesto novo com alguns dos grãos que davam o pão, pôs-se a caminho numa tarde ventosa, com as ideias na consoada em que o avô era pródigo em histórias, umas vindas das memórias, outras fruto da sua imaginação respeitada. Quando, num sobressalto, percebeu que a ponte tinha cedido à intempérie, ao tempo, na sua missão que parecia ter-se esboroado como um sonho interrompido. E voltou a olhá-la, meio torta, que pedia ajuda para não cair no leito da ribeira uns metros abaixo. O caudal da água não aconselhava aos passos que, em tempo de seca, poderiam evitar a ponte. A meio-caminho de regresso à aldeia, para dar a notícia, a luz da tarde já esmorecia, sentou-se numa pedra que usava sempre que levava o rebanho, cerrou os olhos e esperou. Embalado entre os dias da infância, os festejos, as conversas, os partos no presépio, as colheitas, as primeiras letras na escola já abandonada, os segredos do firmamento em noites claras, pareceu-lhe recordar uma lição especial, sentado à lareira junto do avô: “Se queres conhecer algo que te conquiste a atenção, não olhes apenas uma vez, porque tudo se transforma. Dá tempo ao tempo, não desistas de encontrar o que se esconde do nosso primeiro olhar”. Não mediu na voz qualquer distância, como se o avô ali estivesse com ele. Não havia dúvida de que a ponte, naquele estado, não era o bom caminho. E como pastor não se consola sempre com o mesmo caminho, procurou mais acima no leito e encontrou um tronco tombado. Com cautela e habilidade, estava feito. Se bem o fez à primeira, assim o fez de volta contente por a santinha deles já ter trigo novo. Nessa noite ficaram prometidas obras na ponte, que vinda a ser nova é, ainda, a ponte da fé e do engenho daquela gente.
Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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