terça-feira, 2 de agosto de 2016

A noite em que a barragem teve medo


"A água no talvegue começava já a subir consideravelmente. Rogelio não ia esperar mais. De olhos postos no chão, tentava a custo dominar a ansiedade que o paralisava. Sentiu de repente uma sucessão de pequenos golpes frios na cabeça, como picadas, a que logo parecia suceder a sensação de uma gota de sangue escorrendo pela pele do crânio. Passou a mão pela testa e olhou para cima: tinha começado a nevar, e da bruma que as luzes indistintas ofuscavam via surgir uma sucessão de pequenos flocos brancos que lhe acertavam no rosto. Essas pequenas carícias de frio ardente produziam nele uma comoção inesperada, como se o seu aparecimento fosse a manifestação de uma evidência que viria completar a jornada, selando os campos e paralisando a vida e tudo o que naquele vale se erguera. Antevia, no espesso manto branco que se avizinhava, a barragem arruinada e inútil, e o vermelho do seu sangue derramado sobre ele, no local onde a sua vida chegaria ao fim. As lágrimas começaram a correr-lhe, quentes, pelo rosto. Os seus olhos, que há muito não choravam, derramavam agora todas as tristezas e alegrias de que Rogelio era feito, destiladas num longo processo através das espirais de sangue e soros que lhe serpenteavam pelo corpo todo até alcançarem a cabeça envelhecida que, como a figura de proa de um navio fustigado, se arqueava para cima, para a neve que caía, esboçando um esgar impreciso, no qual um sorriso e um grito pareciam confundir-se.

Então, quase exausto desse êxtase, debruçou-se a custo sobre a primeira carga de dinamite e, apertando-a contra o peito, começou a caminhar, entrando com os pés na água gelada. Ouviu o rumorejar das águas que os seus passos incertos provocavam. No negro sem fundo do seu espelho reflectia-se o vapor irreal do nevoeiro e o clarão das lâmpadas descrevendo um arco na abóbada celeste que se elevava em direcção às profundezas insondáveis da noite. O frio mordia-lhe os tornozelos, entranhava-se na carne, enroscava-se nas pernas, instilava o seu veneno azulado, buscando inexoravelmente atingir o osso. Rogelio fechava os olhos e respirava em soluços, sentindo estalar as cordas do coração, apertando contra o peito a dinamite que esperara tantos anos por rebentar. No fundo desconhecido do Homem, aprisionado contra o betão que lhe serviria doravante de cárcere, espigavam-se rochas afiadas, restos de escombros que agora se submergiam e que o curso livre das águas jamais rolaria até converter nos seixos polidos sobre os quais muitas vezes Rogelio, de pés nus, caminhara, atravessando as águas transparentes e primaveris do rio com o qual partilhava a condição.

Os pés feriam-se nas profundezas aceradas e invisíveis, e por todo o corpo se espalhava um turpor gelado que lhe paralisava os músculos. Rogelio sentia que algo dentro de si se petrificava. Um ruído metálico parecia ressoar algures nas profundezas do seu corpo, como o do casco de um navio rasgando-se ao longo de uma barreira de recife. A boca de descarga estava à sua frente. Alguns metros mais e alcançá-la-ia. Teria ainda de se içar para dentro dela. Parou um instante para repousar. Inesperadamente, lembrou-se de Alda. Sorriu, pensou que no fundo o que estava a fazer fazia-o por ela. Fechou os olhos. Uma espécie de sono poroso invadiu-o, como um borrão negro espalhando-se no papel. Então a água começou a subir, de repente, dentro dele, invadindo-lhe o corpo, ascendendo ao longo do abdómen, inundando-lhe o peito, espalhando-se na floração dos pulmões. Survia-a pela boca, pelas narinas, numa derradeira inspiração amniótica. O rio entrava-lhe pelos ouvidos, liquefazendo-lhe os olhos, bailando-lhe nos cabelos, até encher e transbordar por completo toda a represa do seu corpo, acolhendo-o suavemente no seu seio."

Extraído de 'Rio Homem', de André Gago - Edições ASA, Dezembro de 2010.

Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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