sábado, 24 de fevereiro de 2024

Trilhos seculares - Prados da Messe em dia de nevada

 


Esta foi uma singular caminhada pelas serranias do Gerês num dia onde a neve cobria toda a paisagem em altitude. Não foi dia de nevada como a registada a 18 de Janeiro de 2023, mas estivemos lá perto.

Assim, decidi recuperar parte do texto que então escrevi, pois mesmo caminhando acompanhado e onde a entreajuda foi fundamental, nestas situações não deixamos de ser indivíduos diferentes que temos sensações de isolamento e solidão num esforço que se faz para vencer um desafio que se perfila e amontoa, na verdadeira acepção da palavra, à nossa frente e a cada passo que damos.



Conselho de banda sonora para esta leitura: If These Trees Could Talk - "The Bones of a Dying World"

A Serra do Gerês começara a vestir-se de branco no dia anterior, com um vento forte a varrer as encostas e a antecipar o que iria chegar.

A noite começou com chuva e o insistente som das goteiras nas ruas da aldeia marcaram os últimos minutos do despertar. Adormecia embalado pelo ritmo da chuva e pelo grave compasso do vento. Sabendo que as paisagens estariam lá, decidiu-se caminhar aos Prados da Messe subindo a Costa de Sabrosa.



A chegada à Volta do Covo mostrou-se uma imagem única do Rio Homem na sua passagem pela Mata de Albergaria e as encostas superiores da Sabrosa e do Vale do Rio do Forno cobertas por um intenso manto branco. Carro estacionado na Albergaria, mochila às costas e rumamos em direcção ao Curral de Albergaria que certamente estava coberto de neve. Tirando o som de fundo do Rio do Forno, a Mata de Albergaria estava imersa num silêncio típico destes dias. Parece que a Natureza se silencia para que o «espectáculo visual» seja absorvido com maior intensidade.

Estando a latitudes baixas, e apesar de tempos a tempos sermos brindados com a chegada da neve, nos últimos anos Portugal não tem assistido a grandes nevões. Temos histórias de resgates de mineiros e do árduo trabalho e de vivência nas serranias, mas estas são cada vez mais histórias para contar ao borralho. Por outro lado, é sempre difícil nos livrarmos de um esquema bem montado há já muitos anos e no qual Portugal é uma imensa planície com uma única montanha no centro, da mesma forma que é bordejado para o oceano por um leito pedregoso, excepto nas praias do extremo Sul, e que neste país só se escuta uma música que caracteriza o «ser Português». Aliando estas situações e temperando-as com a falta de senso comum apimentada com Facebooks e Instagrams, compreendemos uma certa reacção geral à chegada da neve... ou se calhar, não. 



A Costa de Sabrosa estava coberta de neve na sua parte superior, neve esse que vai aumentando de espessura à medida que o altímetro ganha volume. Em pouco tempo deixávamos de caminhar, mas marchavamos costa acima, sozinhos.

Conselho de leitura: A Complete Guide to Solo Hiking.

A paisagem arrebatava-se a cada momento. Cada olhar era um esgar de espanto, uma ânsia a querer olhar para todo o lado numa vontade de tudo abarcar e recordar. No entanto, a cada paisagem conhecida, surgia a ideia de uma nova perspectiva: ou tentava vislumbrar o Pé de Cabril e a Corneda, as encostas de Bemposta e Bargiela, as vertentes da Serra Amarela e o enquadramento com a Pena Longa, o contraste dos milhares de ramadas na Mata de Albergaria, as lonjuras do Soajo e da Peneda, a profundidade do Vale do Rio Forno imerso na neblina que rodopiava por entre as conjecturas do vento, a imponência do Pé de Medela e a altivez do Corno Godinho, ou a simplicidade de uma folha ou de um bugalho cobertos de neve.



Sentia-se o ar frio a entrar nos pulmões e ajeitávamos a roupa numa tentativa de conforto naquele ambiente onde o vento «cortava» a pele. Caminhando serra acima, a neve caía e ia acumulando na paisagem adornada com um nevoeiro que ora se abria e permitia o vislumbra de imensas paisagens brancas, ora - como o cair do pano - se fechava e tornava o mundo num espaço cinzento, escuro, onde o vento uivava por entre o granito cuja textura se realçava ao contraste com a neve.

Conselho de leitura: Solo Hiking: What You Need to Know to Hike Alone.

Vencida a Costa de Sabrosa, o olhar pousava agora nos Prados Caveiros após ter passado a pequena planície branca que a Lameira das Ruivas se transformara. Atento a todos os pormenores, os sentidos aprumam-se na busca da vida selvagem: ora perscrutava o chão em busca de pegadas; ora mirava as encostas em busca de silhuetas; ora escutava o vento, atento ao chamamento dos lobos. 




A descida para os Prados da Messe fez-se com cuidado. Abrigados do vento, os pequenos passos cobriam-se de placas de gelo sobre as quais todo o cuidado era pouco. Uma vez ou outra, o gelo cedia e o passo tornava-se mais longo. Os Prados da Messe pareciam um cenário de um filme por onde caminhava mergulhado no compasso ritmado do esmagar dos cristais de gelo e neve sobre as botas. Adoro o som do caminhar na neve... faz-me recordar cantigas de Revolução!

O cenário era perfeito e não é necessário ser-se um fotógrafo profissional para ter o enquadramento perfeito e fazer a fotografia do ano. Está lá tudo, basta apontar a câmara fotográfica. As ruínas da Casa dos Serviços Florestais estavam adornadas por colunas de neve e gelo, e as árvores pareciam guardiãs geladas daquele espaço. Por momentos, a Sul, as nuvens afastavam-se e o céu azul compunha o belo quadro. No entanto, a Norte, erguia-se um negrume que ia ganhando intensidade.



Os Prados da Messe foram o local de descanso e repasto. Trocadas as roupas suadas e retemperadas as forças, seguimos caminho, mas não antes de saudar o casal de montanhistas que, entretanto, chegara ao abrigo.

As caminhadas a solo permitem-nos apurar a nossa gestão do risco. Ele está sempre presente por muito que tentemos minimizá-lo. Se tivermos consciência desse risco, este será menor e cada passo é pensado ao pormenor. Se acharmos que o risco não existe e que o salto vale a pena, será meio caminho andado para o desastre.

Nesta caminhada, e mesmo sem a presença da neve, a parte mais difícil surge após a passagem do Conho. Aqui, já percorremos mais de metade do caminho e o cansaço começa a dar sinais de que se acumula. Com um intenso cenário de neve, multiplicamos este esforço por cem!



Caminhando na direcção do Curral da Pedra surgem-nos diversos cursos de água escondidos pela neve que foi fazendo ponte por entre a vegetação. Mesmo conhecendo o caminho, torna-se complicado navegar nos espaços e todo o cuidado é pouco. Aqui e ali, a ajuda dos bastões de caminhada é essencial. Ultrapassados estes pequenos grandes obstáculos, caminh-se na descida para o Porto de Vacas para aqui encontrar um ribeiro intransponível e engrossado com a chuva e a neve. Caminhamos um pouco a montante e encontramos uma zona onde o Ribeiro de Porto de Vacas se estreita, permitindo a passagem pedra a pedra de forma cuidadosa para evitar o resvalo. Iniciamos a longa e penosa subida para o Conho. 

Caminhando com neve pelo joelho, cada passo custa mais do que o anterior. Doseando o esforço, o declive é vencido numa trepada dura pela neve. Curiosamente, tenho a sensação de que - nesta condições - não demoramos muito mais do que o normal a ultrapassar a subida que me levaria à Lomba de Pau, mas o esforço é imensamente superior. Entre as duas grandes mariolas chegamos a um inferno gelado, com um vento forte e arrebatador. A visibilidade é de poucos metros, e a neve afunda-se obrigando a que cada passo seja feito em esforço. Aqui e ali, porém, as vicissitudes do local fazem com que caminhe quase em rocha, trazendo um descanso enquanto nos preparamos para ultrapassar as duas pequenas corgas que limitam a turfeira das Gralheiras. 



Atingido o ponto mais elevado do dia à vista do Arco do Borrageiro, iniciamos então a descida para a Chã da Fonte, seguindo depois para o Colo da Preza onde tenho o maravilho vislumbre do Vale de Teixeira nas suas vestes invernais.

Depressa chegamos ao Vidoal e tudo à minha volta continua um cenário de neve, porém marcado com milhares de pegadas de muitos que por ali se divertiram. Deixamos o Vidoal e seguimos a direcção da Chã de Carvalho, encetando a descida para a Portela de Leonte que é feita ligeira, regressando depois à Albergaria pela estrada percorrida a forma veloz por muitos condutores.

Ficam algumas fotografias do dia...


































Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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