domingo, 16 de abril de 2017

"O «Chamado»" (I)


A transcrição da primeira parte do quarto capítulo do livro "No Gerez - a Natureza e o Homem", de Sousa Costa (1934)... Foi mantida a grafia original da obra.

A-pesar das águas termais da serra, que desde Maio a Outubro atraem a peregrinação mundana da flôr macilenta dos enfigadados da cidade, as abas do Gerez não foram até agora mordidas pela traça cosmopolita do figurino. Por tôda a parte o costume local cedeu diante da aluvião incaracterística dos preceitos uniformistas da moda. Em todo o país a árvore da tradição deixou sorvar os frutos ao sôpro nem sempre fecundo da evolução - por vezes ao vento colérico da revolução. De norte a sul, o instinto primitivo da raça, fundamentalmente nacional, dissolveu-se pouco a pouco, degenerando em crasso internacionalismo. Só os povoadps geresianos - e os seus vizinhos barrosões - à parte ligeiras transigências externas de indumentária e comodidade, são hoje o que deviam ter sido há vinte séculos, na era em que as legiões de Tito e Vespasiano, transporta a Portela do Homem, refeitas de alimento e providas de armas nos depósitos da Calcedónia, baixavam aos campos cultivados a impôr tributos à águia cesariana dos pendões romanos.

As freguesias sentem-se bem no seu arqueológico sistema parlamentar, rescendendo ao pitoresco das primeiras idades, e no seu govêrno democrático de eleição directa, assembleia dos cidadãos mais veneráveis pelos seus invernos, pela prudência e saber do seu conselho - cujas soberanas decisões são recebidas como mandamentos tocados de divina graça. Mantêm os seus tribunais seculares, sete por frèguesia, presididos por um ancião, assistidos por seis adjuntos - os homens do «acôrdo», com o respectivo procurador, É o tribunal da Igreja, o do Monteiro, o das Vacas, o das Cabras, o das Ovelhas, o do Lagar de Azeite, o do Lagar do Vinho. Todos êsses tribunais se convocam pelo «chamado» - toque bravio de buzina para o do Monteiro, para os restantes toque brando de frauta pastoril. E as suas multas, as peitas e coimas que lançam sôbre os contraventores, traduzem-se com frequência em razas de pão ou canadas espumejantes de vinho verde.

Fechados como castas medievais à penetração estranha, à influência de origem estrangeira, guardam avaramente as suas mulheres de desvios ou ligações com pretendentes alheios à comuna. Não podendo alimentar os gados, durante a ápoca estival, nos campos onde colhem o pão e o vinho de cada ano, apenas concluídas as fainas agrícolas, apenas na serra as cumeadas deixam pelovéu alvo de neve a verde mantilha rendada das hervagens, transferem-nos para a serra, em manadas e rebanhos, que por lá ficam retouçando até ao despertar dos frios outoniços.

Acompanha-os o «vezeireio» - membro do «acôrdo», à excepção do juiz e do procurador, com obrigação de dar a sua vez ao pastoreio dos gados, de dias ou semanas, conforme o número de rezes que traz ao parto, e de os apresentar «sãos e salvos» à comunidade, ou de pagar »sua estimação» por cada cabeça vítima do lobo traiçoeiro.

É verdade que o «vezeireiro» não dá mostras de irrespeito se desacatar a decisão do tribunal que o obriga a pagamento. E assim, dessas sentenças, e mais alcavalas, tem segunda instância no tribunal da Ribeira, recorrendo em revista para o de Vilar.

Não sei se as leis, as regras e penalidades dos maiores, de tradição pluri-secular, ainda hoje se conservam nos seus nobres papiros patriarcais. No tempo de Frei Cristovão dos Reis, em 1779, ao que o douto egresso assevera nas Reflexões Experimentais, achavam-se codificadas em 7 livros, de forte e macisso papelão, entregues aos 7 anciãos presidentes dos «acôrdos» - que deviam guardá-los no inviolável recato dos Mistérios do culto.

Êstes povoados, de costumes simples, de proceder ingénuo, de moral rude e impermeável ao deletério viver citadino, são neste momento da história contemporânea a mais típica reminiscência do passado remoto. Passado activo e actual, na sua singeleza feliz, quási nos leva ao desconsôlo dos nossos hábitos, das nossas regalias, das nossas exigências, das nossas conquistas - que correspondem, tantas vezes, à nossa irremissível derrota. Êles não possuem nada disso - mas, porque o não conhecem, não o cobiçam, não desejando nada mais. E dormem, e comem, e trabalham, vegetando, na tranquila lei natural dos bois nos eidos e dos pinheiros nas bouças.

Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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