sábado, 7 de junho de 2025

Trilhos seculares - Entre Cabril e a Portela do Homem, uma caminhada pela Serra do Gerês

 


Esta caminhada levou-me num desafio nas grandes distâncias pela Serra do Gerês, percorrendo um traçado que há uns anos me colocou à prova num dia de chuva. Desta vez, a meteorologia foi mais amena, permitindo a contemplação das longas paisagens do Vale do Rio Cabril e das alturas do Couce. 

Por outro lado, foi o regresso a uma paisagem mais uma vez com o intuito de a compreender, estudar, saber mais, completando a visão que um olhar fugaz ma havia chamado a atenção numa caminhada recente. 

Em Março de 2026 propus ao Ulisses Pereira que fosse o meu guia numa incursão pelas paisagens de Cabril. O Ulisses Pereira é daqueles homens que já não se encontram muito pelas nossas aldeias. Prezando as suas raízes e, acima de tudo, homenageando-as todos os dias ao não deixar esquecer as pequenas coisas que distingue e particulariza cada lugar, o Ulisses é um verdadeiro arquivo de conhecimento das tradições de Cabril e da Serra do Gerês. A memória das ladainhas e dos contos de infância, as recordações dos dias de pastoreio quando criança, o querer compreender cada ruga do rosto dos idosos da sua terra, o tentar fazer a junção do novo com o velho na tentativa de abrir consciências para novos paradigmas, as memórias dos topónimos e o seu significado. Nessa caminhada, há já quase 10 anos, o Ulisses, que é homem de Cabril, mostrou-nos a humildade com que se deve saudar a serra, a montanha como um ente muito acima de nós.





Assim, sempre que passo por Taboucinhas recordo-me desta caminhada em particular, e desta vez voltou a acontecer, pois parte do trajecto seria o mesmo que fiz naquele diz chuvoso de Março de 2016.

Como algumas caminhadas recentes, a jornada iniciou-se após um café na Padaria e Pastelaria de Cabril, seguindo para Porto de Chãos, Chão e atravessamos o Rio Cabril no Pontelhão. Daqui, seguimos para o Carvalhal e entramos num íngreme estradão que iniciou a subida serra acima, levando-nos por Azerim, Buracos, Queixadoiros, Cavada, Gavião, Corga do Gavião e chegamos a Taboucinhas.

A paisagem transforma-se a cada passo; se num momento estamos «à beira rio» com a vista limitada pelos campos que ladeiam os prados verdejantes, em breve estaríamos embrenhados por um caminho florestal percorrendo velhas bouças e com o horizonte que se alargava ao vale, mas encoberto pelas ramadas das árvores que se elevam aos céus. De seguida, e atravessando o curso de água, caminhávamos por carreiros de pastoreio que nos levariam então a Taboucinhas.





Pelas palavras do Ulisses Pereira, soubemos da história da branda do Ti Secundino: Cabril é uma freguesia que está inserida totalmente no Parque Nacional Peneda-Gerês, logo todas as aldeias, são aldeias de montanha que sempre viveram e continuam a viver essencialmente da actividade agropastoril, por isso não é de admirar que a Serra do Gerês, fosse um importante complemento dessa forma de vida, seja com pastagens, pois os animais também faziam a transumância a partir do dia 1 de Maio até ao 29 de Setembro, assim como no cultivo do centeio e do colmo, este último essencial para a cobertura das casas, o telhado da época. 

Por isso grande parte dos currais e das cabanas da Serra do Gerês, são pertence das várias populações de Cabril, mas as populações ao contrário da Serra da Peneda e da Serra do Soajo, sobretudo em Castro Laboreiro, concelho de Melgaço, e Soajo, concelho de Arcos de Valdevez, nunca construíram brandas, que são núcleos habitacionais temporários cuja origem se prende com a necessidade das populações utilizarem os pastos na serra para alimentarem os animais. 

As pessoas de Cabril, sempre optaram por ter residência fixa nas várias aldeias, só ficando a viver na serra os vezeireiros, e só na altura da transumância dos animais, esporadicamente algumas pessoas quando iam lavrar e semear os currais e quando era para se fazer a colheita do centeio e do colmo. A única pessoa que teve o que eu vou chamar, uma "mini" branda, foi o "Ti" Secundino. 

Ninguém sabe dizer de onde veio o homem, apesar de ainda existir muita gente que o conheceu. Dizem que apareceu em Cabril com uma filha, pois antigamente aparecia assim muita gente que ficava a dormir nos palheiros. Havia muitos pobres, muita gente a fazer esse modo de vida. Ninguém sabia qual era a terra dele, alguns dizem ser de Cabeceiras, outros de Fafe e ainda aqueles que afirmam ser de Celorico. Veio para Cabril como resineiro e acabou por ficar, fixando residência no lugar de Cavalos, no sítio da Balteira e por lá ficou, até que teve a possibilidade de comprar uma parcela de terreno a comissão fabriqueira de Cabril. Porém, o que o pedaço de terreno era muito longe das aldeias, demasiado longe, e estava localizado em Taboucinhas, mesmo no começo da serra. Isso não o desanimou o "Ti" Secundino, que murou o pedaço de terreno, cavou, lavrou, procurou água, fez duas poças, construiu casa.

O homem passou a morar em Taboucinhas, cultivava batatas e milho à época, couves, vinho, tinha árvores de fruto, chegou a criar porcos e galinhas. Apesar de ter a residência na aldeia de Cavalos, o "Ti" Secundino e o seu burro, só desciam quando as condições eram muito adversas.

Com a morte do "Ti" Secundino, tudo em Taboucinhas e na sua "mini" branda morreu. A casa acabou por arder, restam as paredes. As cerejeiras caíram, as vides morreram, as couves e as batatas deram lugar a silvas, tojos e fetos, sinais do tempo.




Após uma curta paragem em Taboucinhas, seguimos para Porta Fernandes e passamos depois pelo Porto Tapado, Penedo de Encosto, Curral do Carvalho, Teixinhal, Couçadoiro e mais acima subimos até às Lajes de Lagoa. Pelas encostas, os animais da vezeira vão pastando tirando calmamente partido da frescura que ainda se mantinha naquelas paragens.

A caminhada foi facilitada pelo facto de o carreiro ter sido recentemente limpo, conduzindo-nos até ao estradão da EDP, e a partir daqui seguimos para o Lago Marinho que se encontrava magnificamente enquadrado na paisagem com um céu azul e as suas águas calmas repletas de bolas-de-algodão, num cenário verdadeiramente primaveril.

O Lago Marinho é local único no Parque Nacional da Peneda-Gerês. Carlos M. Ribeiro (que erradamente a refere como 'Lagoa do Marinho'), indica que está "(...) situada no sector sudeste da Serra do Gerês, dentro da bacia de drenagem do ribeiro do Couce (afluente do rio Cabril), a Lagoa do Marinho é uma área endorreica - o escoamento das águas faz-se através de uma depressão interior, sem saída para o mar

Parte da sua área envolvente está ocupada por uma moreia terminal em forma de arco. Para os menos conhecedores da matéria, as moreias são um amontoado de sedimentos com diversas dimensões, que foram transportados e acumulados pelo glaciar à frente e aos lados da língua glaciar, até quando e onde este se fundiu. Quando observadas ao pormenor, permitem a reconstituição do movimento glaciar, e são um indicador fundamental dos limites de máxima extensão da glaciação. Significa isto que, o limite de um dos glaciares que ocupou a Serra do Gerês, foi a Lagoa do Marinho. 

Com uma orientação nne-ssw, esta é ocupada por uma turfeira com cerca de 100 metros de comprimento por 50 metros de largura. A título de curiosidade, as turfeiras são habitats naturais de elevado valor biológico que ocorrem em biótopos permanentemente encharcados. São consideradas um dos maiores reservatórios de carbono do planeta, e a acumulação do CO2 é vista como uma das alternativas para atenuar o aquecimento global - na sua maioria são atapetadas por musgos (género Sphagnum), onde coexistem também bolas de algodão (Eriophorum Angustifoliumas), Urzes (Calluna Vulgaris), Tojos (Ulex Minor) e plantas insectívoras como a Orvalhinha (Drosera Rotundifolia). 

Topograficamente, esta lagoa posiciona-se dentro de uma área de relevo aplanado sobre um substracto granítico a cerca de 1200 metros de altitude. (...)."

Após uma breve visita ao Lago Marinho, e de um vislumbre dos Currais de Lagoa (Para um estudo dos currais de Lagoa e do Couço em Cabril), seguimos na direcção do Abrigo de Lagoa onde se fez um pequeno descanso e se utilizou as suas estruturas após solicitar autorização aos vezeireiros que ali se encontravam. 



Descansados, e com uma temperatura amena, era então hora de iniciar a segunda parte da jornada que terminaria na Portela do Homem. Seguindo em direcção aos Cocões do Coucelinho, os nossos passos levaram-nos pelas paisagens do Vale do Couce (Couço) que abriga muitos currais.

Um dos aspectos mais marcantes da milenar presença do Homem na Serra do Gerês, é o grande número de currais existentes um pouco por toda a serra. Estes currais representam ainda nos nossos dias, o «refúgio» seguro nas noites frias dos dias quentes de Verão quando as vezeiras percorrem as pastagens de altitude entre Maio e Setembro.

Uma das áreas mais peculiares que reúne um grande conjunto de currais, é a área de Lagoa e Couço incluída na freguesia de Cabril. Antes de prosseguir com a identificação dos diferentes currais, devo sublinhar a utilização do topónimo 'Couço' em vez de 'Couce' tal como é referido nas nossas cartas militares. Esta designação (Couço) é utilizada pelas gentes de Cabril para designar a área referida como 'Couce'.

Em tempos, publiquei um texto onde inumero os diferentes currais (Para um estudo dos currais de Lagoa e do Couço em Cabril), fazendo o mesmo para os currais em Lamas de Homem (Para um estudo dos currais de Lamas de Homem) num trabalho que não seria possível sem a preciosa ajuda e colaboração do Márcio Azevedo (Presidente da Junta de Freguesia de Cabril) e do Ulisses Pereira. 






Curiosamente, um pouco antes de chegarmos às proximidades da ruínas da Casa do Padre, surge uma estrutura circular muito semelhante a uma outra que se encontra nas proximidades do Curral do Pássaro entre o Outeiro do Pássaro e Cidadelhe. Estas estruturas de pequeno diâmetro podem representar os últimos vestígios de uma ocupação milenar daqueles espaços e que infelizmente, tanto quanto eu sei, nunca terão merecido a devida atenção num estudo mais preciso e aprofundado.

Continuando em direcção a Norte, o caminho leva-nos por paisagens de velhos glaciares, passando por chãs e nas imediações de velhos currais. De repente, por entre a vegetação, surge-nos o vislumbre de uma velha ruína: a Casa do Padre Júlio. Hoje conhecida como a 'Casa do Padre', as ruínas que ali vemos são muito antigas e a sua história perde-se já na penumbra da memória, mas contam a história de um padre que por ali andou fugido.

Segundo nos refere Ulisses Pereira, "nos princípios do século XX, havia um padre na freguesia de Cabril que se chamava Júlio e que era da freguesia próxima de Ruivães. Em tempos, o Padre Júlio tinha sido capelão da monarquia e como em Portugal a República tinha sido recentemente proclamada, o padre viu-se acoitado pelos repúblicanos. Como o padre Júlio era um fervoroso adepto da monarquia, passou então a ser perseguido e a determinada altura os guardas invadiram a igreja para o prender.

Felizmente, a população escondeu o infeliz padre e lhe colocou uma croça, levando-o serra a cima dissmulado por entre as escarpas e penedias, até à casa rústica que já existia então no Couço, pois nessa altura ainda não existia o Abrigo de Lagoa, somente o forno. A partir dessa altura a casa passou a ser designada pela Casa do Padre, e apesar de pertencer a freguesia de Cabril, a casa foi utilizada até meados do século XX pelas gentes da freguesia, nomeadamente pelos caçadores quando faziam as caçadas (batidas) aos lobos e aos corços.

Há já muitos anos abandonada, nos nossos dias a casa é uma ruína da memória de dias passados no isolamento da serra nos tempos onde as distâncias se mediam em saudade. Estas são pequenas histórias que a oralidade vai passando de pais para filhos, de avôs para netos, e que nos ajudam a preencher o belo quadro que é a História da Serra do Gerês. Lendas e mitos que foram surgindo nas longas noites de invernia, contadas ao calor do borralho enquanto que o vento uivava lá fora e a neve ia preenchendo os cantos dos portados".

Fitando as ruínas da Casa do Padre, a Este, a atenção do nosso olhar vira-se então para o promontório granítico que se encontra a Oeste. Borrageiros é um alto granítico facilmente reconhecível na paisagem da Serra do Gerês, albergando na sua encosta Nascente as ruínas da Mina de Borrageiros.

Sem meios de acesso para viaturas, os trabalhos na mina sempre foram rudimentares e inicialmente executados à superfície. O minério obtido no Verão de 1917 era transportado por muares para a casa do juiz de paz de Cabril, José Maria Afonso Pereira, onde ficava depositado. No local da mina não existiam habitações confortáveis e capazes de resistir aos rigores invernais da Serra do Gerês. Após os primeiros trabalhos no Verão de 1917 onde terão sido obtidos cerca de três toneladas de minério, os dois detentores do registo mineiro solicitam a 26 de Dezembro que lhes fosse permitida a transferência do minério para Frades do Pinhedo…

como tivessem procedido a pesquisas durante o Verão findo extraindo nesses trabalhos cerca de 3 toneladas de mineral que precisam de transportar para uma altitude inferior, por ser impossível continuar a viver o pessoal encarregado da sua guarda no referido lugar dos Borrageiros devido a não possuirmos ali habitações confortáveis em que possam resistir aos rigores do Inverno. Pedem, pois, lhe seja concedida licença para transportarem o referido mineral para a habitação de Manuel Maria João Pereira na freguesia de Frades do Pinhedo, pessoa de sua inteira confiança, para se conservar ali até que lhes seja outorgada a concessão.

O minério seria inicialmente transportado para Cabril a 25 de Janeiro de 1918. A 1 de Fevereiro são solicitadas guias especiais e respectivo certificado de exportação para o minério entretanto obtido. De notar que nesta data a demarcação da concessão ainda não tinha sido levada a cabo, sendo-o a 10 de Junho por António Teixeira Pinto na presença de Paul Brandt, a quem a mina havia sido cedida por endosso. Os direitos de descobridores legais seriam oficialmente atribuídos a Paul Brandt e a António Lourenço da Cunha, a 4 de Junho de 1919, sendo publicada a 20 de Junho no Diário do Governo . A 20 de Novembro era emitido o parecer pelo qual poderia ser atribuído à Empresa Mineira dos Borrageiros Lda., entretanto constituída por António Lourenço da Cunha e Paul Brandt, a concessão da Mina de Borrageiros. 

As ruínas da Mina de Borrageiros são assim guardiãs das primeiras memórios do violfrâmio na Serra do Gerês, surgindo cerca de três décadas antes das Minas dos Carris.






Seguindo por uma paisagem granítica e onde o silêncio se antecipa aos dias de Verão, a caminhada levou-me à paisagem dos Cocões do Coucelinho (Concelinho), um verdadeiro testemunho histórico das glaciações na Serra do Gerês. No Quaternário, mais precisamente no Plistocénico (entre cerca de 1,8 Ma a 10 000 anos), ocorreram importantes variações climáticas à escala do globo que se caracterizaram pela alternância de períodos glaciários (muito frios) e interglaciários, com glaciações a atingirem, inclusivamente, as latitudes médias. Embora sejam poucas as formas claramente glaciárias, nas serras da Peneda e do Gerês foram identificados vestígios dessas glaciações, dos quais merecem especial destaque os do Alto Vale do Vez e zona de Cocões de Coucelinho - Lagoa do Marinho (vales com perfil em U; moreias; circos glaciários; superfícies de granito polidas, estriadas e com sulcos; depósitos glaciários). Depósitos fluviais, torrenciais e glaciários constituem as formações geológicas mais recentes na área do Parque e encontram-se presentes em diversos pontos, sendo de destacar os de origem glaciar na Ribeira de Couce, Lagoa do Marinho e no Alto Vale do rio Vez.

Os Cocões do Coucelinho abrigam um curral (Curral do Colástica - Coucões do Coucelinho) juntamente com outras áreas muradas (sestas). Característica do local, é a presença de diversas moreias glaciares que povoam a paisagem de forma caoticamente ordenada.

Aqui os carreiros fecham-se e o múrmurio do passado vai-se perdendo por entre ecos infinitos nas encostas rochosas. Caminhos de pastoreio, da carvoaria e do contrabando, estes carreiros assistiram a inumeras idas e vindas entre as aldeias e os dias do minério que se procurava em cada recanto da serra. Um olhar atento irá descobrir vestígios murados, pequenas sanjas mineiras e restos de abrigos toscos que certamente contariam muitas histórias infelizmente perdidas para sempre na memória de quem as viveu.

Passando a paisagem glaciária, chegamos ao Quelhão que, à vista do Curral de Maceiras e de toda aquela paisagem que se afunda no horizonte, nos conduz aos Currais de Lamas de Homem e à nascente do Rio Homem. Aqui, de novo, perdem-se os muros de pedra solta e os abrigos abandonados do passado, bem como os restos da presença fugaz dos Serviços Florestais na serra alta.

O caminho leva-nos na direcção do Curral das Abrótegas, entroncando antão com a velha estrada mineira para os Carris já centenas de vezes calcorreada. Mas essa é outra história...

Ficam algumas imagens do dia...










Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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