Ontem revisitamos o grande nevão de Fevereiro de 1944 e hoje volto a apresentar o relato de outro acontecimento ocorrido onze anos depois da história anterior.
Certamente que na Serra do Gerês ocorreram muitos episódios deste tipo numa altura em que as condições meteorológicas eram diferentes daquelas dos nossos dias. Os relatos de «neves eternas» foram muitas vezes referidos pelos engenheiros da Circunscrição Mineira do Norte quando escreviam os relatórios sobre as concessão mineiras em 1944 e ainda nos nossos dias, são muitos aqueles residentes do Parque Nacional que em pequenos se recordam dos intensos nevões que cobriam as aldeias serranas.
A fotografia que encima este texto, mostra a máquina de arrasto utilizada para a limpeza da neve, bem como o Eng. Virgílio de Brito Murta, o sócio-gerente José Augusto Inácio e o cão "Rapaz".
O grande nevão de Fevereiro de 1955
Episódio singular das dificuldades originadas pelo mau tempo ocorreu em Fevereiro de 1955. Naquela altura, e durante mais de uma semana, nevou intensamente e de forma contínua na Serra do Gerês de tal maneira que em alguns pontos a neve chegou a atingir cerca de quatro metros de espessura, tornando impossível o trânsito de veículos e mesmo de peões. A mais de 1400 metros de altitude, os mineiros e o pessoal técnico e administrativo, num total de cerca de duzentas pessoas que na altura trabalhavam nas Minas dos Carris, ficaram isolados nas suas instalações, tornando-se problemática a situação que de dia para dia o estado do tempo foi criando. Pelo telefone, uma vez que os fios resistiram ao peso da neve, foi sendo mantido contacto, até que as notícias se tornaram alarmantes, pois o pessoal, em especial os mineiros (que eram cento e vinte) estavam sem pão nem legumes, com escassa roupa e cada vez mais à mercê dos lobos, que segundo o jornal ‘O Século’, “…uivavam famintos, noite e dia, por aquelas redondezas.”
Devido à situação alarmante que se desenvolvia nos píncaros do Gerês, foi decidido organizar uma brigada de socorro e depois de organizada, esta brigada saiu da Portela de Leonte e percorreu em circunstâncias difíceis a distância até à Água da Pala, onde entrou em contacto com o pessoal dos Carris. Os mineiros tiveram de descer até ao ponto de contacto, ligados uns aos outros por uma corda e meio enterrados na camada de neve. Segundo relatos de Carlos Sousa, os mineiros percorreram o caminho no Vale do Homem cantando canções patrióticas e ‘A Portuguesa’ para assim manter o ânimo durante a difícil operação.
Foram necessários oito dias de trabalho intenso para desobstruir as vias de acesso às minas bloqueadas. Vinte e oito operários ofereceram-se para essa difícil tarefa, a fim de se conseguir passagem para uma camioneta carregada de pão, visto ser este o alimento que fazia mais urgente falta e não ser possível levar simultaneamente legumes e roupas. Após trabalho fatigante e perigoso, pôde a brigada fazer chegar a camioneta ao ponto combinado onde os mineiros esperavam, havia bastante tempo, sob um frio cortante e com receio de que não desse resultado o plano que se traçara. Quase quatro horas durou a heroica escalada daqueles sete quilómetros. Por fim viveu-se outra faceta da dramática e abnegada aventura: os mineiros tardavam a chegar ao ponto combinado e, dada a intensidade do nevão que caía e que tapava os sulcos abertos horas antes, receava-se que os homens se perdessem ou, ligados uns aos outros, perecessem todos na tragédia da queda em algum precipício encoberto. Quando o telefone tocou com as notícias da chegada, “soltaram-se gritos de entusiástica alegria.”
Porém, os relatos descritos no jornal ‘O Século’ e depois na revista ‘O Século Ilustrado’, parecem representar mais um acto de propaganda do Estado Novo do que uma verdadeira descrição dos factos ocorridos. O nevão de Fevereiro de 1955 ficou na memória dos trabalhadores e segundo Augusto Vieira, que viveu os acontecimentos, “chegamos a estar lá isolados sem os camiões puderem lá ir e sem alimentação.” No entanto, Virgílio Murta coloca em dúvida a ocorrência dessa expedição de salvamento, “pois havia no Inverno sempre em stock uma boa quantidade de materiais e alimentos.” A mina ter-se-á mantido em actividade, com o nevão a afectar um pouco o ritmo de laboração. A imprensa da altura terá feito “um certo alarido, mas não era caso para isso.” Também as memórias de Fernando Ferreira do Fundo, o ’Mil’, jovem operário que nesses anos trabalhava nas Minas dos Carris, lembram que “várias vezes tivemos que abrir caminho na neve até à Portela do Homem, para vir um camião reabastecer de géneros alimentícios para a mina. Ia uma equipa de 20 homens abrir a estrada até à Portela do Homem e quando vínhamos de regresso, tínhamos que abrir novamente o caminho, isto porque o caminho já estava tapado novamente com a neve.” Noutra ocasião, “o meu pai que era guarda na mina, e entrava em casa às 6 da manhã e para entrar, tinha que abrir um túnel na neve para puder entrar em casa, e eu saia 2 horas mais tarde e tinha que abrir novamente o mesmo túnel, porque senão eu já não podia sair” e da mesma forma recorda que “as fontes, eram fontes de poço, e com a neve ficava tudo tapado, e como não tínhamos referência da fonte, tínhamos que derreter a neve para conseguir água” para beber e para os afazeres diários. Em igual sentido refere Manuel Antunes Gonçalves, “quando nevava ou fazia muito frio, a água gelava nos canos e nós tínhamos de fazer uma fogueira por debaixo dos canos para a água descongelar.”
Localizadas nos pontos mais altos da Serra do Gerês, e como se constatou no Inverno de 1955, o acesso às Minas dos Carris tornava-se muito difícil. Apesar de a estrada ser habitualmente mantida em condições de circulação, tornava-se por vezes perigoso subir o Vale do Homem. Nas palavras de Virgílio Mura, “enquanto trabalhei e vivi nos Carris, eu saia de carro de duas em duas semanas, normalmente na tarde de Sexta-feira e regressava nas Segundas-feiras de manhã. A excepção verificou-se só na altura do nevão de 1955 em que ficámos retidos algum tempo. A Companhia, nos meses de Inverno, mantinha uma equipa de limpeza da neve na estrada, que a mantinha em razoáveis condições. Só duas vezes me aconteceu não conseguir subir de carro até à mina. Havia uma casa de apoio, com algumas tarimbas e telefone, ao lado esquerdo da estrada, na direcção da subida. Daí, se víamos muita neve na serra, telefonávamos a perguntar se podíamos subir. Nessas vezes disseram-nos que sim, que estavam limpando a neve. Mas realmente estavam um bocado atrasados. Uma vez, com o Zé de Sousa, deixámos o carro e fomos a pé pela neve. Da outra vez, sozinho, consegui voltar o carro e regressei à tal casa onde esperei que me informassem quando realmente a estrada estivesse transitável.”
Texto adaptado de "Minas dos Carris - Histórias Mineiras na Serra do Gerês" (Rui C. Barbosa, Dezembro de 2013.
Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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