Os anos de 1895 e 1896 assinalam uma data histórica na «luta» dos povos serranos contra a presença dos Serviços Florestais na Serra do Gerês.
Como sabemos, a chegada dos Serviços Florestais foi imposta às gentes da Serra do Gerês em Agosto de 1888, ficando o Estado a gerir uma grande área florestal e não só.
No entanto, em Julho de 1895 os habitantes de Vilarinho da Furna iniciaram um incidente com a Mata Nacional, que teve «um deplorável efeito moral para os serviços florestais.» De facto, nunca os povos vizinhos, sobretudo do Campo do Gerês e de Vilarinho da Furna, tomaram a bem a constituição da Nata Nacional, contrariando-a por todos os modos, e nestes termos requereram os moradores de Vilarinho à Câmara Municipal de Terras de Bouro o aforamento de uma grande porção da serra das duas encostas do Rio Homem, incluindo aí terrenos compreendidos nos limites da Mata Nacional.
Tal acontecimento, transmitido pelo regente florestal Sousa Pereira, era comunicado superiormente a 30 de Julho de 1895 pelo silvicultor Mário Viana, que em ofício datado de Lisboa participava que a Câmara Municipal de Terras de Bouro procedera a 16 e 17 de Julho à medição dos terrenos que pretendia aforar aos moradores de Vilarinho da Furna, dentro da área compreendida entre os rios da Mó, Palheiros e Parrade, até terrenos que se achavam dentro do perímetro florestal.
Nessa ocasião compareceu no local o mestre florestal Manoel Joaquim Pires Dias e Freitas para contestar o acto e esclarecer sobre os limites da mata, sendo-lhe objectado pelos camaristas que só a Câmara tinha direito sobre aqueles terrenos.
Em mão própria foi entre no Governo Civil de Braga, pelo regente Sousa Pereira, que logo para ali se deslocara, uma cópia da planta do perímetro florestal e uma cópia do auto de posse e ao governador-civil oficiou remetendo-lhe o edital da Câmara sobre o aforamento, pedindo-lhe que na sua qualidade de presidente do Conselho do Distrito empregasse todos os esforços para evitar a realização de tal atentado aos interesses do Estado.
"Consta-me porém que é provável nada conseguir" e que ao aforamento de Vilarinho se seguirá o de Vilar da Veiga, assim terminava o silvicultor Viana, numa certa previsão, a notícia que mandava à Direcção Geral da Agricultura.
Em consequência disto, foi mandada cópia deste ofício ao governador-civil de Braga e mandado o Inspector dos Serviços Florestais ao Gerês averiguar do que se passava, informando a 10 de Agosto os factos já sabidos. Acabava por pedir também a interferência do governador-civil, pelo que do seu ofício foi igualmente mandada cópia àquela autoridade.
O governador-civil de Braga, Visconde da Torre, enviava em Setembro ao Ministro das Obras Públicas um requerimento em que a Junta de Paróquia de S. João do Campo pedia para ser concedido para logradouro do povo de Vilarinho da Furna o montado da margem direita do Rio Homem, que estava na posse do Estado, desde Vilarinho da Furna are ao Ribeiro de Azevieiro (Azevinhão), incluindo também a vertente do nascente limitada pela crista do monte, ou Outeiro de Palheiros, na direcção do Sul a Norte.
Este requerimento, assinado pelo abade João Hipólito Martins Capela, presidente, e pelos vogais João António Martins, Manoel Martins e António Martins Pial, teve do silvicultor Mário Viana, a 26 de Setembro, a seguinte informação: "julgo poder ser concedida à referida Junta a parte da serra do Gerês limitada ao norte e oeste pela extrema da mata, ao sul pelo rio Homem até ao rio de Azevieiro e a leste pelas águas vertentes do mesmo de Azevieiro, até ao marco geodesio das Eiras. Esta concessão, que em ocasiões normais não seria vantajosa para o Estado, é, dadas as circunstâncias espaciais, a meu ver indispensavelmente precisa para evitar dissabores, complicações maiores e rebelião dos povos, que são de natural insoburdinados e vandálicos e que se mostram descontentes pela falta de pastos e de despojos de limpezas e que não têm a conte-los nos seus impetos a convicção da força da autoridade silvicola local".
Em seguida e numa larga exposição alvitrava o mesmo silvicultor vários pareceres sobre coisas a realizar para garantir o prestígio das autoridades florestais e a marcha regular dos serviços, solicitando maior número de guardas e mais elevada dotação orçamental.
Apesar de tal informação, não teve despacho o requerimento da gente de Vilarinho, dor forma que em 10 de Abril de 1896 o silvicultor Viana voltava a informar que um representante dos habitantes de Vilarinho da Furna se achava munido de uma escritura registada de aforamento que a Câmara Municipal de Terras de Bouro pretendera em tempos fazer vigorar em favor daquele povo. Nesse aforamento incluíam-se terrenos baldios municipais e outros pertencentes ao Estado.
Era o aforamento contra o qual se protestara em tempos, pretendendo invalidá-lo, tendo-se então acordado em que a Junta de Paróquia requereria os terrenos que indevidamente a Câmara lhe pretendia aforar.
Era uma fórmula conciliadora de satisfazer os povos e salvar ao mesmo tempo a autoridade do Estado.
Mas, diz o silvicultor, "a Junta requereu nesse sentido e como o seu requerimento não obteve ainda despacho, procuraram os habitantes de Vilarinho fazer valer perante os tribunais a primitiva escritura e apesar da irregularidade do aforamento, parece contarem com uma decisão favorável.
"Parecendo-me grave o procedimento do povo de Vilarinho e as consequências que ele pode vir a ter, tenho a honra de solicitar a V. Ex.ª se digne instar junto do Ministo pelo despacho do requerimento da Junta de Paróquia, se V. Ex.ª assim o houver por conveniente".
Continuavam do Gerês as más notícias do Regente ali em serviço e entre elas a de que os incêndios se repetiam na serra, pelo que o silvicultor Viana comunicava em Abril o aparecimento em simultâneo de três incêndios no dia 19: um na Ribeira da Mó, outro na Água da Adega e outro na Bargiela (Varziela), tendo já havido um outro no dia 14 em Istriz (Estriz), que destruiu parte da sementeira de penisco de 1891, e termina a por mais uma vez insistir no pedido de despacho do requerimento dos povos a pedir os terrenos já descritos.
Mas, não pararam aqui os incidentes, que se estenderam por mais alguns anos, e em 29 de Julho de 1896 oficiava o silvicultor, solicitando cópia do requerimento em que o povo de Vilarinho pedia a Encosta do Altar, para servir de fundamento ao processo a instaurar-lhes, por no dia 13 de Abril terem cortado 9 carvalhos em terrenos do Estado.
Segiu seus termos o processo na comarca de Amares, onde infelizmente teve um desfecho inesperado contra o Estado, o que o silvicultor Mário Viana, sempre solicito em zelar os interesses que lhe estavam confiados, comunicava em ofício datada daquela vila em 22 de Março de 1897, informando que o processo fora mandado arquivar em 11 de Janeiro, ficando assim impunes os transgressores.
Tal impunidade animou à prática de novas transgressões, repetindo-se o mesmo delito em 26 de Fevereiro de 1897 no mesmo local, a Corga de Mamoas.
Levantado o auto, foi este também mandado para juízo, depois de o silvicultor ter conferenciado com o juiz e delegado de Amares, que prometeram estudar melhor este segundo caso, pois o primeiro processo fora arquivado por terem os delinquentes requerido exclusão por incompetência, fundada na posse que se atribuíam dos referidos terrenos.
Em longo ofício ao delegado, datado do Gerês de 21 de Março de 1897, remetendo o auto, emprega o silvicultor todos os argumentos e diligências para a condenação dos réus, mas ainda desta vez sem resultado, o que não admira, pois às questões da Mata com os povos, sempre cortadas de incidentes locais, não faltaram também curiosas incidentes dos tribunais!
Fortes com a escritura de aforamento que a Câmara fizera e o tribunal das justiças já reconhecera, têm os moradores de Vilarinho mantido a sua atitude de não acatarem o direito do Estado, exibindo aquele documento sempre que o julgam oportuno, e opondo-se mesmo a que dentro dele o Estado faça qualquer trabalho, como sucedeu em 1901 no Pedredo, em longo da Geira Romana, embora em terrenos que o mesmo Estado reputa também seus.
E assim com ele se apresentaram no Gerês em Junho de 1901 ao regente Carlos de Oliveira Carvalho, ali então em serviço, que os aconselhou a procurarem um acordo com a Mata, alvitre que repeliram, por estar toda a povoação na crença de que o aforamento era legal.
Desse documento extratou o regente as confrontações, que são como se segue: "Pelo sul desde o sítio denominado da Teixeira, até ao Portelo do Calvo de Fundevila e daí à tomada do Brasileiro, na Cabreira à Portela da Cal, ao penedo onde entra o Cerco, à corga do Gavião, à Pedra Pinta, às Laceiras, ao ribeiro do Sarilhão, à pedra Chão do Cnadeinho, ao estreito do rio da Mó e daí seguindo toda a Geira Romana até aos marcos miliários da Cova da Porca e confronta de todos esses pontos do sul com monte aforado aos moradores do Campo e com a Mata Florestal do Gerês e daí seguindo para o norte pelo lado nascente até ao rio Homem, à Chã das Ovelhas, ao Cabeço da Pousada, ao Outeiro Agudo, ao sítio denominado das Covinhasm à Chã do Azevinheiro, ao curral de Separros, à Chã do Corisco, e confronta de todos esses pontos pelo nascente com a Mata Florestal do Gerês e daí seguindo para o poente pelo lado do norte até à Chã da Fonte e daí ao Bocal do Fento, à Portela das Ruivas, ao cabeço das Ladroeiras, ao cimo da Chã da Fonte, até ao cabeço do Torneiro e confronta de todos esses pontos pelo com terrenos baldios dos segundos outurgantes e daí seguindo para o sul pelo lado do ponte até ao Vidoal e daí ao cimo da Chã do Carvalho, ao rio de CUvela, por toso este Rio abaixo até ao rio Homem e daí até ao sítio denominado de Teixeira, onde se principiou e confronta de todos esses lados pelo poente com montes vistoriados dos moradores dos logares da freguesia de Brufe e com terrenos baldios municipais e têm estes montes todos a superfície quadrada de 566 hectares, 42 ares e 80 centiares."
É para notar que dentro do terreno aforado, que entrou pelo terreno da Mata numa extensão de cerca de seis quilómetros, ficou e se conserva a casa de guarda florestal da Bouça da Mó e que no pé que fica indicado e se conserva ainda as relações entre Vilarinho e a Mata, ambos disputando entre si uma parte da Serra, cujo direito de posse nenhum reconhece ao outro.
Tamanha ousadia por parte do povo de Vilarinho só foi certamente tomada pelo que se vinha passando com o povo de S. João do Campo que propositadamente suscitara a questão do Mourinho, para derimir e definir direitos de posse.
Efectivamente, a 3 de Janeiro de 1893 o silvicultor chefe do 2.º grupo, Mário Viana, comunicava em ofício datado de Lisboa, que no dia 30 de Dezembro, 18 indivíduos de S. João do Campo foram ao sítio denominado Mourinho, dentro do perímetro do Estado, tendo cortado e facturado ali três carvalhas, ocorrência de que foi levantado auto pelo regente Sousa Pereira, seguidamente remetido ao silvicultor e por este ao delegado de Amares.
Ao processo do Estado opuseram os moradores do Campo a questão do direito de propriedade, para só depois desta definir ser, ou não, considerado o delito de transgressão.
E assim caminharam as coisas, até que em Agosto de 1895 om inspector oficiou do Gerês ao director geral de agricultura, pedindo-lhe que solicitasse providências ao procurador régio da relação do Porto, para que fosse abreviado o julgamento da causa e salvaguardados os direitos e interesses do Estado.
Assim, e em resposta, mandava em 24 de Agosto o procurador régio cópia de um ofício do delegado de Amares em que este informava que aguardava a decisão da acção instaurada para se averiguar a quem pertencia a propriedade, para depois se avaliar a respinsabilidade criminal do delinquentes, decisão que, afinal, foi depois dada contra o Estado.
Desta sentença apelou o delegado, mas por acordão da relação do Porto, de 15 de Maio de 1900, foi ele confirmada, tendo-o ainda sido no Supremo Tribunal de Justiça por acordão de 11 de Janeiro de 1901, ficando assim vencido o Estado em todas as instâncias.
Texto adaptad de "Mata do Gerês - Subsídios Para Uma Monografia Florestal", Tude Martins de Sousa, 1926.
Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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