Lince ou Lobo-cerval? O nome parece indiferente, mas, no caso do Gerês, pode existir uma pequena (grande) diferença...
Expliquemos:
No começo do século dezanove o lobo-cerval ainda frequentava os cerros bravios da serra do Gerês e de Albergaria. Durante o dia refugiava-se nas “gerretas dos penhascos e nos buracos cóveos das árvores antigas” a salvo do olhar humano. Nas horas mais frescas ou no final da tarde deslocava-se discretamente e em silêncio à procura de alimento. Talhado para caça, o lobo-cerval capturava, então, uma razoável variedade de animais silvestres – incluindo possivelmente o corço, a lebre e em menor quantidade o coelho - num exercício de paciência e de agilidade. Mas quando a ocasião se lhe mostrava favorável lançava-se também sobre o “gado miúdo de cabras e ovelhas” despertando o rancor dos aldeões. Extinguiu-se no início do século XIX, como se extinguiu o urso pelo “cuidado que os moradores têm de os perseguir e matar andando dia e noute até os matar ou fazer fugir.”
Para esta região existem diversas citações – a maioria do século XVIII - que relatam tanto o seu aspecto exterior como o seu comportamento, descrevendo-o muitas vezes como um animal insaciável, sedento de sangue e até perigoso.
Eis algumas passagens com a grafia actualizada:
“No ano de 1705 um lobo-cerval aventurou-se no curral de Frutuoso Pereira, de Pincães. Perseguido encarniçadamente, foi morto no topo de um carvalho em Valdepinos.
“… o cerval tem unhas de lanceta como anzóis, é de pele engraçada com várias pintas que lhe dão lustre. A cabeça, a boca, as pernas e as unhas tudo é feitio de gato, mas de tamanho que excede o maior rapozão…”
“…Hé muito prejudicial o seu modo de caçar porque lançado (sobre) o gado miúdo de cabras e ovelhas, aí os agarra com as unhas que lhe deu a natureza (…) e lançando a boca ao pescoço chupa-lhes o sangue até desmaiarem”.
“O cerval defende-se bem dos cães com unhas que os trespassa e atormenta. Sobem às árvores quando não acham rochas sujeitas em que se possam esconder porque são como os gatos, mas muito maiores que o maior raposão.”
“…no ano de 1730 andava Lucas Gonçalves à caça (…) quando viu que em cima de um alto penedo estava um grande bicho (…) resolveu-se a disparar a arma que com grande e feliz sucesso lhe acertou com duas balas que lhe furaram a cabeça (…) Tinha este bicho seis palmos de comprido e quatro de alto, os dentes grandes e grossos, a cabeça semelhante a um gato, a cauda curta e as garras quase do tamanho de hum palmo e recolhidas para dentro…” O caçador levou a pele ao convento de Bouro onde os frades averiguaram ser de um Tigre” (Convém referir que no Gerês, bem como em todo o Noroeste Ibérico, chamavam ao lince Lobo-cerval ou Tigre)
“…há no dito Gerez lobos-cervais que bem lhes podem chamar onças, pois perseguidos dos cães sobem às árvores e devoram gente como fizeram há poucos anos a uma rapariga de Tourem.”
“…Há muitas e diferentes feras, com são os lobos-cervais mais corpulentos que os ordinários quase como tigres” (citação da vertente galega)
Até há poucos anos acreditava-se que o lince-boreal (lobo-cerval) nunca tinha passado a cadeia dos Pirenéus. No entanto, um grupo de investigadores da universidade de Oviedo baseada em dados históricos e restos de fósseis descobriu (através da análise de ADN) que afinal o lince-boreal e o lince ibérico coexistiram no Noroeste da Península Ibérica, explorando, no entanto, nichos ecológicos diferentes. O estudo, que se publicou no ‘Journal of Zoology’, revela que o lince euroasiático também frequentou os montes da Galiza até há pelo menos 300 anos.
Afinal os do Gerês eram linces ou lobos-cervais?
Originalmente publicado na página "Gerês: Em Defesa da Reserva Biogenética da Mata de Albergaria", por Miguel Brandão Pimenta. Reproduzido com autorização.
(1) Fotografias reproduzidas de https://issuu.com/area-norte/docs/estaferia_ayerana_20-web/s/24701
No livro "Urso Pardo- Crônica de uma extinção" há vários relatos e algumas fotos de antigos jornais, a dar conta da existência de lobos cervais ou linces em vários pontos do país, inclusive no gerês.
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