Visitei Vilarinho da Furna, Serra Amarela, como eu gosto; na tranquilidade da manhã, escutando os madrugadores pássaros e o suave ondular das tranquilas águas que escondem a aldeia e a vão submergindo numa cada vez mais profunda camada lodosa.
Vilarinho, cuja "ruína é testemunho de um acto de desprezo", nas palavras de André Gago, ali estava, calma, tranquila, adormecida para sempre...
Nos escritos de Miguel Torga "Derradeira visita à aldeia de Vilarinho da Furna, em vésperas de ser alagada, como tantas da região. Primeiro, o Estado, através dos Serviços Florestais, espoliou estes povos pastoris do espaço montanhês de que necessitavam para manter os rebanhos, de onde tiravam o melhor da alimentação — o leite, o queijo e a carne — e alicerçavam a economia — a lã, as crias e as peles; depois, o super-Estado, o capitalismo, transformou-lhes as várzeas de cultivo em albufeiras — ponto final das suas possibilidades de vida. E assim, progressivamente, foram riscados do mapa alguns dos últimos núcleos comunitários do país. Conhecê-los, era rememorar todo um caminho penoso de esforço gregário do bicho antropóide, desde que ergueu as mãos do chão e chegou a pessoa, os instintos agressivos transformados paulatinamente em boas maneiras de trato e colaboração. Talvez que o testemunho de uma urbanidade tão dignamente conseguida, com a correspondente cultura que ela implica, não interesse a uma época que prefere convívios de arregimentação embrutecida e produtiva, e dispõe de meios rápidos e eficientes para os conseguir, desde a lavagem do cérebro aos campos de concentração. Mas eu ainda sou pela ordem voluntária no ócio e no trabalho, por uma disciplina cívica consentida e prestante, a que os heréticos chamam democracia de rosto humano. De maneira que gostava de ir de vez em quando até Vilarinho presenciar a harmonia social em pleno funcionamento, sem polícias fardados ou à paisana. Dava-me contentamento ver a lei moral a pulsar quente e consciente nos corações, e a entreajuda espontânea a produzir os seus frutos. Regressava de lá com um pouco mais de esperança nos outros e em mim.
Do esfacelamento interior que vai sofrer aquela gente, desenraizada no mundo, com todas as amarras afectivas cortadas, sem mortos no cemitério para chorar e lajes afeiçoadas aos pés para caminhar, já nem falo. Quem me entenderia?
(Miguel Torga, Diário XI) - Gerês, 6 de Agosto de 1968
Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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