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sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

"A Aposta", um conto de Natal de Luís Vendeirinho

 


O emaranhado de gente pela sala, desiludidos, mirones, abastados e remediados, reincidentes, solitários, sóbrios e ébrios, sobretudo homens, uns de família, outros tantos abandonados, sonhadores, doutores, negociantes, jovens, velhos e assim-assim,  senhores de histórias guardadas a sete chaves e de confidências raras, presas das sombras que, noites dentro, se repetiam em silêncio no ímpeto da fé, do ente vulgarizado em forma de fezada, eram as teias do imaginário que os fariam dali saírem em glória, livres dos males que ficavam à porta, para regressarem ao colo amargo da realidade renegada. Alguns fariam gala da coragem para desafiarem a sorte, outros levariam com eles histórias de miséria humana para exemplo, a maioria devedora da humilhação a que se sujeitava, vergada à injustiça dos números com promessas de redenção. O nosso homem, o responsável pelo relato do insólito no palco onde tudo, ou quase, se resumia ao banal confronto com o desamparo humano entre fumo e bebida, estava sentado ao balcão entretido com o cálculo mental sobre para quantos mais copos dariam as notas que sobravam do serão sem ter ousado jogar. A sala estava decorada conforme a quadra, sobre a mesa de canto um bolo-rei fatiado cumpria a tradição da oferta aos presentes, no ar pairavam discretos acordes de música, ouviam-se exclamações fortuitas de contentamento e desabafos de impaciência, as conversas envolviam-se no burburinho a roçar o irreal. Havia tempo para nova dose de conhaque, o barman acendeu a cigarrilha da personagem que, ao dar por ele, ficou curioso com a súbita companhia de um velho, um daqueles velhos cuja velhice não permite outro atributo, o rosto macerado pelo tempo, o cabelo branco, o olhar luzente e interrogativo que só aos velhos cabe. A conversa entre eles, a ser despertada sob cujo pretexto fosse, cumpriria o ritual da noite, dessa noite em especial. No final das despesas, era sagrado virem à tona as intimidades, a razão das presenças que desembocava num parto geminado. Contra a previsão do conviva que deixava a cigarrilha apagar-se no cinzeiro, o velho muito velho foi escutando e escutando, até saber da mágoa daquele que ia jogar a ficha guardada. Tempos idos, aquela sala era um hábito, um refúgio de cuja sentença viria a livrar-se. Numa noite de Natal haveria de fazer a promessa de despertar do pesadelo, e cumpriu. Levou no bolso uma ficha para memória da sua fraqueza. “E esta noite voltei aqui. Vou ser avô, não quero nada que me prenda ao passado, nem este pedaço de plástico. Jogo ou não, mesmo que seja para rematar a minha libertação?” Foi quando o velho lhe falou acerca do mistério que cada número tem. Se jogasse, a aposta falaria, o resultado também. A ficha foi colocada sobre o número vinte e cinco, as apostas feitas, a roda girou, abrandou e parou. Vinte e quatro. “É parte do teu passado”. De regresso a casa, o jogador tentou perceber donde conhecia aquela figura que não lhe era de todo estranha. Na data certa a Ceia foi em família. Já o Ano Novo começara, na arrumação de uma gaveta o nosso homem encontrou um envelope roído, insuspeito. Ao abri-lo, entre fotos antigas deu com a do avô. Se não era o seu companheiro de sala, tinha parecenças. Na confusão do emaranhado de gente era difícil tê-lo visto.

Texto de Luís Vendeirinho

Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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