Estava previsto que a minha despedida do Verão de 2021 fosse assinalada com uma subida ao Pico da Nevosa, ponto mais elevado de todo o Parque Nacional da Peneda-Gerês, mas o dia acabaria por ser mais rico do que esperava.
A primeira luz da manhã ainda não se imiscuía pelas frinchas das portadas das janelas quando despertei numa manhã não muito fria, mas suficientemente composta para anunciar a mudança de estação que se avizinhava. O calendário não perdoa e o movimento da Terra também não, apesar dessa coisa estranha que os meteorologistas arranjaram para arrumar melhor as estações dentro dos meses. Eles lá sabem o que fazem...
Mochila pronta e gatos alimentados, lá segui pela Mata de Albergaria já iluminada pela ténue luz matinal e iniciei o dia enveredando pelo caminho florestal junto da velha casamata da Albergaria, seguindo depois pela Milha XXXIII e cumprimentando um corredor solitário que também por ali demandava tão cedo. Passado a Ponte de S. Miguel e as ruínas das casas da velha Guarda Fiscal, chegava ao Vale de S. Miguel e chegava ao Curral de S. Miguel. Aqui, numa epifania, decido enveredar encosta acima, pois era tempo de revisitar velhas paisagens.
A parte inicial da transposição da Encosta do Sol faz-nos valer de todas as forças e motivação, pois a subida é longa e as pequenas corgas que vão surgindo pelo caminho, parecem-se como profundos vales. Entretanto, o cenário de um dia glorioso parecia que se ia compondo - ao longe, os píncaros do Pé de Cabril surgiam já adornados pelos raios de Sol e as Albas faziam jus ao seu nome, enquanto a Lua se despedia ao se esconder por detrás de Calvos. No Vale do Homem, parcialmente mergulhado numa sombra que se ia dissipando, a Pena Longa parecia como uma gigantesca barbatana que emergia de um mar verde-escuro. Em contraluz, os raios de Sol tomavam o lugar das sombras e o vale ia despertando, ao mesmo tempo que um vento frio lambia a pela nua que em breve se cobriria. Ao longe, muito ao longe, uma barreira de nuvens escuras e o vislumbre de um céu lavrado, anunciava as horas de chuva que mais tarde, eventualmente, chegariam.
Se a caminhada pelo caminho mineiro ao longo do Vale do Alto Homem é, em si, uma experiência memorável de contacto com a natureza da Serra do Gerês, a caminhada pelos seus altos é quase como que um acto de veneração de tudo aquilo que observámos e sentimos à medida que vamos ganhando os horizontes dos longos espaços. O caminho que se percorre, ora assinalado com as velhas mariolas, ora escondido por entre a rudeza do granito que se molda com o passar do tempo, é uma jornada pela história daquelas paragens. E esta é uma história muito mais antiga do que a passagem das legiões dos césares e infinitamente mais longa e rica do que os 50 anos de uma instituição que por vezes maneia e sufoca a sua existência. O Homem moldou estas serras e estas serras moldaram os homens e as mulheres que aqui (sobre)vivem e vão resistindo. Assim, os sinais da sua presença podem ser vistos e apreciados ao longo do caminho, e a sua História escreve-se nas pedras e nas construções que por ali foram ficando tanto das longas jornadas de pastorícia, como das fugazes correrias do contrabando.
Subindo a encosta, vamos passar pelo marco geodésico de Negrelos e logo a seguir chegamos à Cruz de Pinheiro. O bordo vale não está muito longe e as suas vertentes, quanto mais não seja na margem oposta do vale, estão mesmo ali. Porém, quando nos aproximamos da Bela Ruiva e após passar pelos gigantes ciclopes imortalizados em rocha pelo passar das eras, apercebemo-nos da magnitude do que se abre perante nós! Apesar de estar aos nossos pés, vergámo-nos em veneração do imenso e somos obrigados a tomar o nosso lugar em toda esta criação. Não lhe atribuo um significado religioso, pois isso é o reflexo da nossa fraqueza, mas é a nossa contemplação que, ao olhar para o fundo onde se encontra o velho caminho mineiro que percorre o vale na sua passagem pela Água da Pala ou pelo imenso Cagarouço, lhe dá uma imensidão que é impossível de descrever com palavras. Apenas os sentimentos o descrevem e esses vivem-se ali, no momento.
Nesta altura o caminho aproxima-se do bordo e o vento soprava forte, arrastando as nuvens que começavam a cobrir o Sol. Em passo ligeiro, segue-se o caminho que no Raio flecte para Norte, seguindo os limites da fronteira e nos leva a uma grande chã que antecede a subida para a Pedra Furada (ou Lage das Cruzes). Em algumas grandes bases de granito junto dos limites de fronteira, ainda são possíveis de observar as velhas cruzes que em tempos delimitaram o perímetro do Gerês Florestal. Após a passagem pela Pedra Furada e pelo Lajão, vamos descer para um largo vale por onde corre a Ribeira da Teixa das Albas e alberga o Curral das Albas, antes de iniciar uma dura subida pelos fraguedos graníticos para passar a Lage do Sino, ladeando a parte superior do Vale do Teixo para nos dirigirmos para o Alto da Amoreira e descer para a Portela de Amoreira, corredor por excelência dos dias do contrabando.
Para lá da Portela da Amoreira, subi ao marco geodésico dos Carris. O horizonte para Nascente era já uma cortina de nuvens negras e ameaçadoras que atiçadas pelo vento, alteravam já a paisagem. Era evidente que a chuva iria chegar, mais cedo ou mais tarde, e por isso foram escassos os minutos que passei no alto dos Carris, baixando então para as ruínas do antigo complexo mineiro para um merecido descanso e um rápido repasto. Ali, encontrei quatro pastores que em final de época procuravam alguns animais na serra.
Não querendo baixar o Vale do Alto Homem seguindo o caminho mineiro, percorri-o entre as Minas dos Carris ao longo da Corga da Carvoeirinha e, passando Cabanas Novas, até ao Curral das Abrótregas, seguindo então na direcção do alto de Lamas de Homem. Depois, segui pelo Outeiro do Pássaro e Chã da Fonte, chegando ao Curral do Pássaro onde finalmente começaram a cair as primeiras gotas de chuva, grossas e pesadas, molhando a terra e o granito, e fazendo com que a passada ainda se viesse a tornar mais cuidadosa na descida para os Currais de Cidadelhe. Depois, e entrando já na Corga de Arrocela, tomei o caminho que liga a Cigarra aos Prados da Messe, já sobre chuva forte e um cheiro eléctrico no ar. Passando pequenas corgas, chegava à longa Corga de Valongo já à vista do Cabeço da Cova da Porca (Torrinheira) e descia para o Curral de Premoim com a sua fonte de ouro não muito afastada. Apesar de os pequenos cursos de água já terem água corrente após as chuvas, convém ter sempre alguma noção sobre onde se pode encontrar água potável por entre este «deserto» granítico.
O caminho levar-me-ia então para os Prados da Messe passando pelo Rendeiro e pela Corga da Água da Pala. Nesta altura, as nuvens já se ia dissipando e o azul do céu já compunha a paisagem. Farrapos de nuvens adornavam as vertentes das encostas da serra agora brilhantes de água e o caminho seguia através da Lomba de Burro para a Corga da Água dos Vidros e Lameira das Ruivas, descendo então pela Sabrosa para a Mata de Albergaria no final de uma jornada de 26,4 km pela mais bela serra da Criação.
Ficam algumas fotografias deste memorável dia...
Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
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