O dia nasceu primaveril nos cheiros e no céu, azul polvilhado de nuvens apressadas a correr não sei para onde. Se a sombra fazia lembrar que os dias ainda são de Inverno, ao 'Sol' já se fazia sentir aquela sensação dos dias de Primavera onde o prazer da pela aquecida é de repente transmutada pela brisa que ainda vai soprando fria... que bom!
A neve desapareceu dos picos da serra, bom pelo menos olhando cá de baixo, e o cenário convidava a uma saída para algures, na verdade, naquele momento não interessava muito para onde, queria apenas sair! Mas como cada saída, como cada incursão na serra tem (ou deve... deveria!) ter o seu objectivo, nem que seja somente sair, lá consegui encontrar uma «justificação» para ir.
Bom, verdadeiramente, é que a "...tepidez dos lençóis..." levou à preguiça do "só mais um bocadinho" e do "quando tocar as nove, eu vou!" Isto para desculpar a Freya, mais preguiçosa do que eu e que se decidiu a dormitar no meu peito pela manhã. Logo, na manhã nada de serra. Assim, foi pela tarde, depois de algumas limpezas e de contemplar desde as escadas a dança das nuvens enquanto calmamente saboreava o café.
O objectivo, entretanto, estava escolhido! Mochila pronta com um rápido almoço só para juntar água quente e pés a caminho. Que bom sentir o calor do Sol na pele desnuda enquanto se caminha por entre as sombras do pequeno bosque a caminho da Barragem de Vilarinho das Furnas. Sim, o objectivo seria por aqueles lados, mas rapidamente o meu 'lado prudente' se punha a pensar nos obstáculos a transpor... quanto mais não seja, a chuva dos últimos dias deveria ter aumentado o caudal do ribeiro acima de Vilarinho da Furna... bom, haveria de se arranjar maneira de se atravessar.
De facto, a chuva destas semanas encheu bem a albufeira que esconde Vilarinho da Furna. A barragem não está na cora máxima, mas os limites estão ali e pouco se vê que em tempos via o céu. Passando a barragem, lá segui pelo caminho aberto pelos Furnenses para retirar os seus pertences quando as águas chegaram e em poucos minutos estava no silêncio de Vilarinho. Seguindo o traçado da GR34 Grande Rota da Serra Amarela, pensava que depressa estaria na base do meu objectivo. O traçado original da GR34 teve de ser alterado porque, com a cota das águas no máximo, o caminho entrava albufeira adentro e assim foi feito outro percurso para evitar o mergulho. Qual não é o meu espanto quando, já trepando rocha, apercebo-me que mesmo o novo traçado implica a utilização de um fato de pescador (!).
Nestas alturas não há muito a fazer, procura-se um outro local para passar, mas a inclinação da parede de granito que prometia um mergulho na água certamente fria, levou-me a decidir em poucos segundos a voltar para trás; "O almoço seria na zona de merendas de Vilarinho," pensei eu, até que de soslaio, pareceu-me ver um carreiro à minha direita. Olhando com mais atenção, de facto o carreiro estava lá e a decisão de ver para onde ia, foi quase imediata. Sabia que aquele traçado seria penoso ao regressar do meu objectivo, mas a curiosidade foi mais forte e lá segui o caminho. É nesta altura que decido ver as horas... ainda teria umas cinco horas de luz, o que deveria ser suficiente (com uma margem de segurança) para, pelo menos, regressar a Vilarinho da Furna.
De facto, aquele pequeno percurso pareceu-me ali feito para evitar aqueles poucos metros inundados pelas águas da barragem. Com o mato um tanto ou quanto 'fechado', o carreiro levou-me de volta ao traçado da GR34 um pouco mais adiante da zona onde este mergulha nas águas. Com vigor retemperado, segui a jornada, mas tendo sempre presente que, afinal, faltaria o obstáculo que poderia ser mais difícil de transpor.
Passei então o velho moinho e seguindo a marcações da GR34, de repente deparei-me com uma árvore de médio porte caída no caminho. Não foi difícil transpor a árvore que, curiosamente, apresentava já sinais de ter sido, pelo menos, um pouco desbastada por alguém que por ali havia passado «antes», pois as marcas de cortes nas ramadas, indicavam isso mesmo.
Chegava então ao ribeiro e, tal como previa, a corrente era forte. As rochas permaneciam húmidas à sombra que as árvores projectam sobre o porto. Curiosamente, sobre a zona onde usualmente se atravessa o ribeiro, foi feita uma «ponte» com a portada que impedia a passagem do gado e com umas ramas. A «ponte» é frágil, mas com cuidado e bom equilíbrio permite a passagem do ribeiro, se bem que o último passo é feito para as rochas húmidas e cobertas de musgo.
Confesso que fiquei ali uns segundos a pensar em todas as possibilidades. De facto, faltava o último passo, ou último passo para poder atravessar o ribeiro e prosseguir até ao meu objectivo. Mas são estes momentos que nos fazem crescer na montanha, pois bastava um pequeno deslize e a tarde poder-se-ia transformar em algo de desagradável. São estes momentos que nos avaliam quanto à nossa capacidade de saber distinguir o que se deve fazer e o que é possível fazer, pois, é sempre possível chegar aos nossos objectivos, mas os objectivos nem sempre valem aquilo que podemos. Na balança, na gestão do risco que me dispunha a correr, pesava o último passo para uma rocha escorregadia e o facto de ter de fazer algo parecido quando voltasse, já mais cansado, do objectivo que me havia proposto atingir nesta tarde, e a decisão de voltar para trás e tentar outro dia. Pois, foi isso mesmo que ali, naquele momento por entre o som do ribeiro, que decidi... voltar para trás, outros dias virão e a montanha estará ali, à minha espera.
Regressando pelo mesmo caminho, passando pela mimosa caída, reparo, um pouco adiante, num carreiro que sobre a encosta à direita. Pois, se não tivesse decidido voltar para trás, se não tivesse colocado nos pratos da balança a decisão entre passar ou não as águas turbulentas do ribeiro, não me teria apercebido daquele caminho que me levou a Vilarinho seguindo um percurso que, na emoção de outras caminhadas, me tinha passado despercebido desde sempre!
Quanto ao meu objectivo? Saberão qual é noutro dia...
Ficam algumas fotografias do dia...
Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)
Obrigado pela partilha. De fato um passo pode ser a diferença, e à frente de cada passo que ficou por dar outros dois poderão aparecer para que seja feita nova escolha. É incrível como o Gerês ainda tem conseguido oferecer—lhe novos caminhos
ResponderEliminarDecisão sábia!
ResponderEliminarHá decisões que valem uma vida...
ResponderEliminarBonita descrição do caminho trilhado!
Obrigada sr Rui.