A nossa história está cheia de lendas e milagres, principalmente nas aldeias serranas e mais isoladas, e muita da toponímia desses lugares está associada a esses factores tanto para o sagrado como para o profano, mesmo quando se consulta documentos antiquíssimos, e quando os mesmos se referem a sítios e lugares que lhes é difícil explicar a sua origem, logo são ligados à existências sobrenaturais, seja para o bem ou para o mal, ou simplesmente na linguagem popular"são antigos, são do tempo dos Mouros."
Se há lugar que contêm todos esses ingredientes é o lugar de S. Ane, uma pequena aldeia situada no vale de Cabril e encravada nas serranias do Gerês.
Segundo a lenda, S. Ane e o vale de Cabril tiveram como primeiros habitantes dois irmãos que andavam a cavalo a procura de terras férteis e desertas de gente, e quando chegaram ao Vale de Cabril, fizeram aí seu assento e repartiram o rio de Cabril, ficando um de um lado mais os cavalos, daí o nome da aldeia de Cavalos, e o outro em S. Ane em frente um do outro, mas o de Cavalos ficou com a melhor parte do Vale o que obrigou os de S. Ane a subir as montanhas do Gerês em busca de mais terrenos de cultivo, por isso não é de estranhar que grande parte dos currais da serra do Gerês sejam pertença de famílias do lugar de S. Ane e do Vale de Cabril.
O lugar de S. Ane deve o seu nome a S. João Baptista, segundo a lenda havia uma pedra entre Cavalos e chãos que continha manchas de sangue de S. João e nessa pedra em tempos os do Vale de Cabril, resolveram fazer a primeira capela dedicada à S. João, e lá colocaram a imagem do santo,mas no outro dia não o encontraram, mas sim do outro lado do rio,e voltaram a repetir a diligência, mas de nada adiantava, e então resolveram fazer a capela para onde o santo fugia, essa capela e o S. João, veio dar o nome a aldeia de S. Ane, que em vários documentos antigos é referida como Aanto Joannes ou Joane ou ainda St. Anne.
O S. João Baptista passou a ser venerado pelos de S. Ane e os lugares vizinhos do Vale de Cabril que tinham o seu próprio dia no mês de Julho em que veneravam e hospedavam nesse dia o melhor que podiam os inúmeros romeiros que iam visitar o S. João, a capela tinha mais dois Santos que era santo António de Lisboa e Santa Bárbara.
A capela tinha outra particularidade, é que tinha de estar sempre de portas abertas,tanto de dia como de noite, pois segundo a lenda estando de portas fechadas se ouvia barulhos estranhos e sinais de grande agitação e luta e com as portas abertas tudo se acalmava e ficava em paz.
A data da saída da capela do lugar de S.Ane não consegui apurar mas foi antes de 1756, pois não há ninguém que se lembre de ela existir, ou se lembre de conhecer alguém que se lembrasse.
Segundo a tradição oral a razão do seu desmantelamento é que S. João era efusivamente festejado pelos de S. Ane e restantes lugares do Vale de Cabril, com as típicas brincadeiras e patifarias de S. João e isso fazia com que dessem cabe dos milhais e das batatas e renovos das veigas de S. Ane e então os habitantes do lugar fartos disso tudo pegaram nos Santos e foram colocá-los na igreja matriz , o que é certo é que S. João gostou do seu novo lar, pois não voltou a fugir para S.Ane.
Registos históricos :
"[...]o lugar de cavallos assim chamado pella tra-/ diçao que há de dous irmãos que vinhao / cada um em seu cavallo a buscar terras dezoucupadas de outros moradores [...]chegando aquelle vale de Cabril ali fi-/zeram seu sítio [...]repa-/tindo a ribeira e ficando hum em/ cavallos e o outro em S. Anne defronte hum do/ outro donde falavam hum P(ar) o outro[...]"
[...] o lugar de São Anne chamado assim de S(an)to Joannes porque tem ali os moradores deste lugar / dentro nas suas terras que cultivam tapadas e junto / as ortas delles huma antiga capela dedicada ao sagrado procurçor s(enho) r S. João Baptista (...)que mistos com outros (lugares) visinhos festejao / no mês de Julho o seu proprio dia com m(ui)ta/ venda(eraç) am e amor[...] tem ali também /s.Antonio de Lisboa e s(an)ta Barbosa fica este lugar(a)r/ ao longo do rio de cabril que desse das entranhas do Gerês [...]
[...] he tradição que está cap (el) a foi feita p(ar)a s.joao /da outra p(art) e do rio de cabril e collocado nella / o não acharão o outro dia mas sim naquelle /lugar onde hoje se acha e assim repetiram a-/quella de o tornar a capela e tudo era/ em vão athe que se resolveram os daquelle valle de cabril a fazella no lugar de S. Anne /p(ar)a onde S. João Bapt(is)ta fugia e ali o venerao /de tempo emmemorial he também tradição q(ue)/não ali S. João que esteja a porta da sua/capella fechada mas patente aos romeiros que vão vez(it)ar porque estando a capella fechada/se ouve dentro huma grande bulha e ro-/boliço e abrindo-se a cap (el)a fica tudo quieto /e em pas /[...]
[...]he também tradiçam que junto ao lugar /de chaons, entre chaons e cavallos se acha /huma pedra antiga salpicada de/sangue que se não pode haver daquella /pedra se ali hera o lugar(a)r donde queriao que/fosse a capella antiga que tinham dedicada //a são João Baptista [...]
BAPTISTA, António Martinho a partir da transcrição de 1813 de Bernardo Antunes Pereira do manuscrito de 1744.
Texto e fotografias de Ulisses Pereira
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